Dipirona Sódica

“Dipirona Sódica”

(Plantão de farmácia 24h. É madrugada.)

- Uma Dipirona Sódica, por favor...

- Só a Dipirona...?

- Acha pouco?

- Como...?

- Como...? Pergunto eu! O que o Sr. Quer dizer com “só a Dipirona?” Já não acha que é o bastante sair de casa a uma hora dessas pra comprar um analgésico?!

- Mas, eu só quero saber se o Sr. quer só a ...

- Decididamente, o Sr. é muito grosseiro! Pensa que eu acho graça em vir aqui, há esta hora? Não fosse essa dor de cabeça infernal, hedionda!!! É de matar qualquer cristão... Pois saiba, o Sr., que eu tenho sempre à mão, e bem guardado, o meu estoque de analgésicos. Nunca faltou. Nunca! Nunca, a não ser hoje... mas, é natural. Um dia tinha que acabar. E tinha de ser hoje... Veja o Sr., acabou e eu nem me dei conta. Não pense que não tentei outra saída, não. Veja que história, a minha: Tomei banho frio, morno, tentei bolsa de gelo, chá de carqueja, beladona 6CH, mantra da yoga, um baseado, o diabo! Mas, nada. A bandida permanece firme, renitente, latejante. Levanto-me, visto a roupa e me ponho à rua a achar uma drogaria de plantão... e me vem o Sr. e diz “só Dipirona?” Positivamente...

- Cavalheiro, eu só queria saber se o Sr. deseja mais alguma coisa...

- Mais alguma coisa? Mais alguma coisa!!? O que mais pode querer uma pobre alma, atoleimada pela dor de cabeça mais bandida desse mundo, Héin!? Um envelope de camisinhas!? Um esmalte para as unhas!? Não, o Sr. parece que não me entendeu... Eu não estou de brincadeira! Mas... essa dor... assim... é terrível... parece que trago um machado encravado na cabeça. E o analgésico... o analgésico acabou... Ora, eu devia saber que tudo um dia acaba. Foi assim com ela... a minha mulher... ela... nós terminamos, sabe? Mais de 7 anos juntos. Quase uma vida. Ela era uma boa mulher. ... e me amava. Eu sempre soube que me amava... até fugir com um contínuo da empresa. Mas é isso a vida... Tudo termina um dia. Tudo. Só esta maldita dor de cabeça persiste fiel, obstinada. Merda! Mil vezes merda! O Sr. tem idéia do que é isso?

- Uma enxaqueca...?

- Não, um acinte.

- O quê?

- Eu digo que é um acinte ser trocado por um contínuo. Um fedelho, um João ninguém. Um João ninguém, vinte anos mais jovem... Ah, as mulheres é que são uma verdadeira dor de cabeça! Um acinte! Pois, veja o Sr., se ainda fosse pelo vice-presidente da empresa, pelo contador, ou pelo diretor de marketing, eu não diria nada... seria, pelo menos... pelo menos...

- Compreensível.

- O que disse?

- ... disse... disse que seria compreensível...

- O quê que seria compreensível?

- ... disse que ainda seria compreensível, se fosse por um diretor de marketing...

- Do quê o Sr. está falando?

- De sua mulher...

- Da minha mulher!? E quem o Sr. pensa que é pra falar da minha mulher!? Olhe aqui, a minha mulher é uma pessoa muito honesta e respeitável...

- ... claro... eu só...

- ... e dona do seu nariz! Se ela quis fugir com um contínuo, o problema é dela. Ela que fugisse até com um ascensorista ou com o faxineiro, e o Sr. não tem nada que ver com isso!

- Claro... desculpe... eu só estava...

- Afinal, as mulheres são assim mesmo, tinhosas, provocativas, imprevisíveis... Quer saber de uma coisa? Não a censuro.

- Não?!!

- Não. Na verdade, não digo que não faria o mesmo. O tal contínuo não era totalmente desprezível. Acho até que tinha um certo estilo. Mas as circunstâncias...

- Quais?

- Quais, o quê?

- Quais as circunstâncias?

- Quem falou em circunstâncias?

- O Sr..

- Eu? Ah, vejo que o Sr. zomba... Quanta insensibilidade! Vê-se, logo, que nunca passou por uma situação dessas...

- Bem, é verdade... eu nunca fui casado.

- Como? Falo da dor de cabeça, homem. Horrível, lancinante! Vê-se que o Sr. não dimensiona. É uma tortura. É positivamente, uma tortura. Uma locomotiva que me trespassa os miolos.

- Ann... O Sr. vai querer logo o remédio...?

- Como?

- O remédio...

- E que remédio que há, meu rapaz? Ela quis ir, eu não a impedi. No início, confesso, pensei em cometer uma loucura. Me jogar do 1o andar, beber loção após barba, ir atrás dela, surpreender os dois na cama de um motelzinho de subúrbio e, após o festim de pólvora e sangue, me entregar à polícia, não sem antes registrar tudo na minha câmera fotográfica - presente dela- só pra ela ressuscitar de vergonha. Pensei, sim. Nisso tudo, e em coisas bem mais terríveis que, juro, não confesso aqui por pura caridade. Mas, à medida que o tempo passava, tudo isso parecia tão distante... As noites de ódio, frustração, orgulho ferido, eu curava, lentamente, com boas doses de whisky. Sim, eu bebia até cair. E acordava como se nada, além de uma boa ressaca, existisse. No início, foi difícil suportar o escárnio tácito, de alcova, dos colegas de trabalho... A conversa sempre cessava quando eu entrava na sala. Eu fazia que não ligava... Os ofice-boys se dirigiam a mim sempre com um risinho irônico nos lábios, os meus superiores com desprezo, os colegas de sessão com um misto de pena e nojo, mas os contínuos... Ah, os contínuos sempre me olhavam com um ar de infinita superioridade. Eu a tudo suportava com estoicismo. Até que um dia, poucas semanas depois, me despediram alegando contenção de despesas. Eu entendi e não disse nada. O melhor, é que esse isolamento me fez sentir livre. Mais que tudo, a sensação de impotência deu lugar à auto-indulgência. Que culpa tinha eu em não ser suficientemente bom? Se ela não me queria mais... se eu não servia mais... Sobrou-me a liberdade, a liberdade dos inúteis.

- Ah, Sr., (sinceramente consternado) eu nem sei o que dizer...

- Nada. Não diga nada. Escute, isso não foi, exatamente, mal. Ao menos, foi uma separação sem dramas. Um seco bilhete: “Alceu, fui embora. Não dá mais. Pode ficar com tudo. Adeus.” Assim... Não houve processo, não pago pensão, não temos filhos, não lhe devo nada... Em algumas semanas, a lembrança dela se parecia cada vez mais a uma sombra, uma ficção. Algo irreal, como se pertencesse a um passado, o mais longínquo. Aos poucos, tratei de me desfazer dos seus objetos que me restaram, bem como todas as coisas que me traziam recordações suas. Eu as incinerei para que não houvesse risco de cair nas mãos de outro. De alguém que pudesse, por alguma magia improvável, presumir o que se passou entre nós. Gradativamente ela se transformara num fantasma. Não nesses fantasmas patéticos que nos arrastam, vez por outra, aos divãs de analistas. Mas, por uma névoa tênue, um retrato esmaecido, uma visagem sem forma definida, uma sombra... sim, uma sombra de algo que já houve... e se foi... para sempre. E hoje... hoje, é como se eu não sentisse nada. Nunca mais senti mais nada. Nada. Nada, a não ser essa terrível, indefectível, inexorável, imensurável dor de cabeça. Cruel! Desumana! É como se todos os ossos do meu crânio estivessem se expandindo e querendo romper... Oh, é infame que eu tenha que suportar tudo isso enquanto o Sr. permanece aí parado, sem tomar a providência...

- Eu...!?

- A providência de me trazer a maldita Dipirona...

- Mas... Sr.... o Sr. é que me falava... e eu...

- Que espécie de homem é o Sr.? Não vê que estou sofrendo... que estou prestes a estourar?!

- Vou lá dentro e trago já a... (faz o movimento de entrar)

- Espere...! (o homem volta-se) Sobre o quê eu falava?

- Como...?

- Diga-me, sobre o quê eu estava falando? De súbito, não me lembro... Onde foi que eu parei...?

- O Sr. dizia... que não sentia nada.

- Sim, isso! É verdade. Eu não tinha mais sensações, fossem elas quais fossem. Não sentia fome, comia. Não tinha desejo, arrastava o meu decadente corpo pelas esquinas sombrias, intangível e livre... Era como se eu vivesse em uma constante analgesia, sim, era isso! Como se eu estivesse permanentemente sob efeito de um poderoso, mas, delicado analgésico, ministrado em prolongadas doses... Sim, como se meu corpo, como se eu todo fosse só um analgésico, fosse só uma... uma... só uma...

- ...só uma Dipirona Sódica...!?

- Como!!!??? O Sr. insiste!? Ora, mas que ousadia, que intromissão! “Só uma Dipirona Sódica... só uma Dipirona Sódica...” Não sabe dizer outra coisa!? Já lhe disse que me é o bastante sair de casa a uma hora dessas...

- Mas... o Sr. está equivocado... eu...

- Equivocado!? Equivocado, eu!? Quem? Diga-me, quem de nós dois estará equivocado!? Pois, se um pobre desgraçado não tem o direito de adquirir um lenitivo para as suas agruras sem ser importunado por um...

- Calma! O Sr. está muito exaltado...

- Calma!? Calma!!?? Pois, de quem é a cabeça que dói!? A minha ou a sua? Vamos, diga-me! O Sr. é muito insolente! E mal educado. Se eu fosse outro, juro que...

- Escute, eu não quero aborrecê-lo... Se o Sr. quer conversar, tudo bem, eu lhe ouço...

- Conversar!?? Mas, que pretensão! O Sr. faz-me rir! Eu nem lhe conheço. Acha mesmo que eu contaria algo de minha vida a um balconista de drogaria? É muita petulância. O que o Sr. Pensa que é? Médico, psicólogo, padre?

- Não penso nada... eu...

- Vê-se logo que não pensa. Ora, francamente... Aiii!!! Minha cabeça... parece que vai explodir! Isso é uma praga! Uma condenação!

- O Sr. vai querer, ou não, o remédio?

- Porra, mas que pergunta!! É claro!!! Ou o Sr. pensa que vim aqui jogar baralho, ou comer jiló!? Ai, é insuportável! É como se algo quisesse se romper, furar de dentro para fora. Como dentes rompendo a gengiva... como se meu couro cabeludo fosse rasgar e... É horrível!

- Eu vou buscar o remédio. O Sr. quer em gotas, ou em comprimido?

- O quê...?

- A Dipirona. O Sr. prefere como?

- Ah, homem, no estado em que estou já não sei se servirá de alguma coisa. Dê-me a que for mais rápida e eficaz, pronto.

- Vou trazer em gotas... (faz que vai lá dentro)

- Espere um pouco!(sussurrando) Você sabe onde ela está?

- A Dipirona...?

- A minha mulher. Não, não sabe... Eu sei. Descobri por acaso. Vive só, num pulgueiro da rua do Catete. Reconheci pela lingerie que usava. Como a vida é engraçada... Veja só o Sr., como é interessante... Ora, não acha interessante? Ela, tão poderosa, tão segura de si... tão voluptuosa... Ela, que me deixou por um auxiliar de administração...

- Não era um contínuo?

- Como...?

- O Sr. disse que foi por um contínuo...

- O que era contínuo...?

- O Sr. havia dito que a sua mulher...

- Lá vem o Sr., de novo, a falar de minha mulher. Ora, o Sr. ocupe-se de seus assuntos: Bulas, receitas, aviamentos, perfumarias, estes estão bem para o Sr.. Mas, por caridade, deixe a alma de minha mulher em paz!

- Alma!!?? Mas, ela está morta!?

- Morta ou viva, que diferença faz? É só uma questão de tempo... Aiiiii!!! Que dor de cabeça terrível!! Isso é um martírio, um castigo, uma execução!! É como se todos os miolos enrijecidos se quisessem brotar do fundo do encéfalo!

- Talvez o Sr. precise de um analgésico mais forte, a base de...

- Ardósia!

- Ardósia?

- Ardósia... a minha mulher. O nome dela é Ardósia. Não era um nome feio. Era diferente. O Sr. não acha um nome diferente?

- É... diferente...

- Eu gostava de dizer seu nome quando fazíamos amor. Ela tinha os olhos verdes. Isso, naquele tempo... ontem, quando a vi, já estavam castanhos... Ela me amava... Ardósia me amava como a mais ninguém poderia! Foi justamente por isso... Foi por isso que ela ... Ela não suportou. Ardósia era fraca. Era bela, voluptuosa, ambiciosa, mas, fraca... não podia suportar um amor tão grande. Por isso ela me traía todos os dias durante todos os vinte anos: Por amor! Por isso, me deixou por um escriturário da fazenda...

- Escriturário da fazenda...?? O Sr. ... ah, não compreendo mais nada...

- Foi, foi exatamente isso: Excesso de amor. Era tão grande, tão intenso que ela teve medo de estourar. Ela... Ardósia tinha muito medo, eu sentia isso nela. Era como um grande tumor... Como uma dor de cabeça absoluta que ameaça se expandir para os genitais.

- Oh! Sr., por favor, não diga essas coisas tão alto...

- Digo. Digo, sim. Digo que foi por amor. (pausa) O Sr. me julga um... O Sr. acha que eu deveria... deveria ter feito alguma coisa, não é?

- Olha, eu... prefiro não me meter nesse assunto...

- Responda. Lhe chocou a minha... passividade? O Sr. acha que eu... que eu deveria... tê-la matado, não é?

- Não! Não acho... Não acho nada...

- E, se eu lhe dissesse... se eu lhe dissesse que matei...? Que matei Ardósia...?

- Bem, eu... eu vou buscar o seu remédio...(vai para dentro)

- Não! Espera! Não me deixa aqui sozinho! A dor está piorando... acho que não vou agüentar...

- Mas, Sr... (voltando-se) O que o Sr. tem, afinal!?

- O que eu tenho...? Como vou saber!? Só sei que é insuportável! Um suplício! Uma imolação! O Sr. entende...?

- Eu... acho...

- Não, não entende... Ninguém entende! Ninguém pode entender...! É como se os pensamentos se tornassem dardos e quisessem trespassar meu pobre cérebro...!!

- O Sr. quer que eu chame um médico?!

- Médico...? Para quê? Que sabem os médicos dos tormentos da carne? Nada. Ares de sábio, diploma de doutor... vestem branco, passam em branco, sublimes, incólumes, alheios à tragédia dos homens... Ademais, meu caro, de quê valeria, agora, um médico? Ela está morta... Nada poderá mudar isso. Nem médico, nem cirurgião, padre, curandeiro... nada!

- ...!!?

- Quer saber como foi...?

- O quê...? Não! Não precisa...

- Foi ontem, enquanto eu dormia. Ouvi um barulho... um barulho estranho. Fui ver... era tarde. Pensei que fosse alguém que invadia a casa. Corri para o interruptor, a luz não acendia. Pensei em procurar pela arma e fui até o armário. Foi quando senti um toque quente em meu corpo... como se um corpo de mulher me envolvesse. Um corpo de mulher que eu conhecia... o corpo de... de Ardósia... ela me beijava... ela me queria... eu não podia ver o seu rosto, mas eu sabia que era ela... Ardósia! Quis gritar o seu nome... perguntar onde ela esteve, porque não me avisou que viria... porque... havia tantos porquês, mas... ela... foi quando ela se posicionou sobre mim... você entende...? E nós... nós nos amamos ali, como nunca... intensos... profundos... misteriosamente... como dois mascarados amantes nos becos insalubres de um cais...

- Mas... como ela entrou? Ela tinha a chave?

- ... chave? Ardósia não precisava de chave... Não! ... era absoluta. Todos os obstáculos cediam ao seu desejo, fosse ele qual fosse... eu apreciava isso. E ela voltara... Ardósia não podia viver sem mim... ela me adorava... eu sempre soube que me adorava... Ardósia me adorava com todas as forças... e de tal maneira, que eu a sentia derreter quando fazíamos sexo... ela sempre derretia um pouco... eu percebia, mas nunca disse nada. Tinha medo de que ela não gostasse de saber que eu percebia. Mas, nesse dia... ontem... terá sido mesmo ontem...? Ardósia... ela... ela se derreteu em meus braços... eu devia saber que isso aconteceria... eu sabia que ela era fraca... eu sempre soube... ela não pôde... eu... eu não resisti e derreti Ardósia com minha... com minha volúpia... entende? eu matei... eu matei... Ai!! Eu estou sangrando! Eu sei que estou... sangrando! Olha... olha aqui... vê se estou sangrando!

- Sr....? não! Não vejo nada...

- Mas, eu sinto! O que é isso que está escorrendo?!

- Não sei... deve ser suor... o Sr. está nervoso...

- Nervoso!? Nervoso!? Quem!? Quem está nervoso!? Pois se eu digo que sangro... que meu couro cabeludo foi rasgado por uma lâmina inclemente...! Uma, não! Mais que uma! Veja..., não há nada aqui?

- Onde...?

- Não há um caroço, um tumor... um osso protuberante...? Digo, dois... dois ossos, um de cada lado que me atravessam como lanças... Ai!!! É horrendo!

- Sr., eu vou chamar um médico...

- Não!! Não me deixa aqui...! Eu não vou agüentar... Ai! Está furando! Ah, minha cabeça... que dor mortal! Não consigo... não consigo ficar de pé... minha coluna parece curvar-se para a frente... é como se meu corpo tomasse uma nova forma...

- Sr., não vejo nada... deve ser uma síndrome nervosa...

- Síndrome nervosa!? É cruel ouvir isso! Síndrome nervosa?! Se estou a estourar de dor, e meu corpo... ah... é um tormento...! Ardósia! Ardósia, por que deixei que derretesses... que derretesses em meus braços...? Ah, maldição!

- Mas, como o Sr. sabe que era mesmo ela?

- O quê...?!

- Sim, como sabe que não foi tudo... tudo um sonho..., um delírio... uma alucinação...?

- O que você está dizendo!!!?

- O corpo... sim, o corpo... onde ele está? Deve existir um corpo, não?

- Corpo... o que disse!?... corpo...?! Você me enlouquece com sua arrogância!!! Corpo!!! Não lhe disse que Ardósia derreteu!? Como pode, numa morte por derretimento, haver um corpo!? O Sr. é desprezível! Abjeto! Zombar de um homem em meu estado...! Não há corpo... Não há pedra, nem pó de Ardósia! Ardósia desapareceu, para sempre, sem deixar qualquer vestígio... eu, de certa forma, causei... eu causei isso... nada mais existe... é o fim. O meu desejo a matou para sempre... Ai! Que pontada lancinante!!! Está rompendo... está rompendo! Meu corpo parece tão pesado... e a cabeça... quase não posso mais suportar seu peso... Veja... diga-me, há algo na minha cabeça?!

- Sr.... eu já olhei e não havia nada. É melhor...

- Pois, olhe... olhe, de novo... veja...!

- Ah!!! (aterrorizado) Sim... Jesus... e todos os santos...

- Diga!! Diga!! O que você vê...?!!

- Sim...! Há duas... duas protuberâncias... como dois ossos que... que não haviam, ainda a pouco... é estranho.. eu... eu nunca vi nada assim...!

- Eu disse... eu disse... Ai! Meu corpo se avoluma... já mal posso mantê-lo ereto... E essa dor... Sangue! Estou perdendo sangue!!

- Vou... vou já chamar um médico...

- Não! Eu não quero médicos...

- Mas... Sr., isso pode ser perigoso... o Sr. pode ter uma hemorragia...!

- Não! Dê-me... dê-me apenas... apenas... uma Dipirona Sódica... tudo que eu desejo é só uma Dipirona Sódica...

- Eu vou telefonar para a ambulância... Meu Deus! (entra e volta, logo em seguida trazendo o frasco do remédio e um copo com água.) Aqui está, Sr., tome e sente-se um pouco, enquanto eu chamo a ... Sr.... Sr.? Mas... onde ele está? Sr....! ... ... É estranho... ele foi embora... estava tão mal... e nem sequer tomou o analgésico...! Bem, que Deus o proteja... Ai, que dor de cabeça! Que noite estranha...

- (um segurança noturno que se aproxima) Ei, companheiro! Posso usar seu telefone? O nosso não liga.

- Claro, mas... aconteceu alguma coisa..?

- Não é nada muito grave. Só quero ligar para o zoológico...

- Zoológico...?

- É. Um animal... um belo espécime. Só pode ter fugido do zoológico. Passou a galope pela guarita. Quase derrubou um guarda... (ligando o telefone) Nada. Eu sabia... Ninguém de plantão.

- Ainda é cedo... Quem sabe mais tarde...

- Bem, ele agora já deve estar longe. Não parecia perigoso. Só estava um pouco assustado. Obrigado. Vou voltar pro meu posto...

- Pode usar de novo, se precisar... mas... espere! Me diga uma coisa, que espécie de animal era?

- Não sei bem. Não entendo de bicho... mas, era... era assim mais ou menos do tamanho de um cavalo... pelo escuro, focinho grosso... e, na cabeça, dois enormes... assim... dois enormes... Olha, lá vai ele de novo...!!!

- Meu Deus... será que...? não. Não é possível... Como ele corre!

- Eu vou chamar o corpo de bombeiros...

- Espere!! Veja, como ele parece livre... como parece feliz nesta condição... é realmente um belo animal... deixe-o, ele vai em direção ao parque. Deixe que se vá. Não vai fazer mal a ninguém.

- É, talvez... mas o meu dever é notificar as...

- É como se fosse uma alma sofredora que se liberta da consciência... e, com isso, da vergonha, do remorso... Como parece livre agora... e que bela galhada ele tem!

- O companheiro está passando bem...?

- Ahn...!? Sim... estou bem, exceto por uma dor de cabeça... mas... deixe-o ir, por caridade! Estou certo de que não fará mal a ninguém.

- Está bem. De qualquer modo, já vai estar muito longe, mesmo... e fora de minha jurisdição. Boa noite, ou melhor, bom dia. (se vai)

- Que noite estranha... Já começa a clarear... Como dói a minha cabeça. Bem, (abrindo o frasco e despejando algumas gotas no copo com água) o que me resta...? Vou tomar. Talvez alivie a dor e eu possa dormir e esquecer essa noite... estranha... confusa como um sonho... e não terá sido mesmo um sonho...? Não... tanta coisa... estou confuso... tanta coisa... e, no entanto só o que me resta é este frasco... só este frasco de Dipirona... nada mais... só uma Dipirona Sódica...

Rio, 23 a 31/12/2002

Antonio Sciamarelli
Enviado por Antonio Sciamarelli em 03/08/2006
Código do texto: T208503