JORNADA PARA" HOMENS"

- Olha, se você se acha homem suficiente, então pega o que é teu e vai a tua vida! Falou o pai a Binho. O menino nem pestanejou. Respondeu dizendo:

- É pra já. Foi tratando de arrumar as coisas o mais rápido possível. Queria acabar logo com aquela discussão. Então, Binho pegou tudo que achou que era necessário e saiu. Deixando em prantos sua mãe, que exclamava com olhos debulhados em lágrimas:

- Marido, pra aonde o Binho vai. Ele é uma criança! Mal completou quatorze anos! Não tem pra onde ir! Você esta doido, homem, colocando uma criança dessa na rua! Seu Pedro olhou pra mulher e falou:

- Creusa, não amola! Afinal, se ele for mesmo essa criança que você diz. Ele não vai nem passar duas horas fora de casa. Vai voltar rapidinho, com o rabinho entre as pernas. E se ele for homem vai arrumar um jeito de se virar sozinho. Então deixa o moleque ir! Ele vai aprender a ser homem!

Binho ao cruzar o batente da casa, sentiu que aquilo era um caminho sem volta. Deu uma última olhada para trás, como analisando tudo o que estava deixando. Viu sua mãe aos prantos. Voltou-se para ela, deu-lhe um abraço e um beijo, falou-lhe ao ouvindo:

- Mãe, não esquenta eu vou ficar bem. Aonde quer que eu vá, estarei sempre levando Deus e a senhora dentro do meu coração. Dito isto, Binho partiu.

... E agora pra aonde vou. Pensou Binho: ... Norte, sul, leste ou oeste. Não importa, só sei que pra aonde quer que eu vá... Eu vou me dar bem. Maceió me deu régua e compasso... o resto eu arrumo pra esse mundo de meu Deus!

E lá foi Binho, com uma mochila nas costa e uma enorme vontade de se dar bem. Tomou o rumo da Av. Assis Chateoubriand, descendo rumo a Marechal Deodoro. A cada passo afastava-se mais e mais daquilo que lhe fora tão bem conhecido, para entrar num universo inteiramente novo e desconhecido. O quintal de sua casa de repente pareceu milhas e milhas distante de si.

Algo, porém, não lhe deixava o pensamento. Era lembrança de Dora ou D. Dora, como costumava chamar sua agora ex-sócia. Dora era uma mulher vistosa de uns trinta e seis anos, aproximadamente, morena de cabelos longos e pretos, era uma mulher bastante bonita ainda, apesar de sofrida, estava separada do marido há alguns anos e teve que se virar sozinha. Era uma doceira de mão-cheia. Ela fazia os doces e Binho os vendia. Ele costumava percorrer toda orla de Maceió, vendendo os doces com uma “piruliteira” – uma espécie de porta-pirulito, um tabuleiro cheio de furos onde eram acomodados os pirulitos em forma de cone. Tinha uma cinta que se prendia as extremidades do tabuleiro, e estendia até a altura da cabeça dando uma volta por trás do pescoço e tendo como apóio parte da barriga.

Era um vendedor de pirulito diferente. Fazia um som difuso ("Ô-ôô!"), mas que o diferenciava dos outros pregoeiros. Além disso, ele sacudia uma matraca (tabuinha, com uma espécie de arco de arame preso pelas pontas), que ao ser sacudida produzia um som pelo ir e vir do arame em contato com a tábua. Aquele som era música para os ouvidos da criançada. Vendia quase tudo o que Dora fazia. Mas o pirulito em forma de chapéu de palhaço é que era mesmo o carro-chefe da produção de doces. Porém quando era dia de matinê lá no cine São Luiz, no velho centro de Maceió, vendia mais coisas, além de pirulitos. Balas de coco, quindins, beijus, quebra-queixos e por aí vai.

Todavia, o que não lhe saia mesmo do pensamento era a lembrança do dia em que Dora chamou-lhe para sentar ao seu lado, na beirada da cama de seu quarto, cômodo da casa onde jamais pisara. Ali, Dora num acesso de desejo voluptuoso o agarrou, dando-lhe um ardente abraço bastante apertado e um beijo na orelha, que pela volúpia do beijo e intensidade parecia querer tragar-lhe sua essência através do ouvido.

Binho era muito criança, na verdade não conseguiu entender nada do que se sucedera naquele momento específico. Lembra-se apenas de que, Dora balbuciando palavras quase ininteligíveis do tipo: - Ai, meu Deus o que estou fazendo... E, mordendo os lábios entre os dentes, espremendo-se pela sofreguidão do desejo que lhe percorria toda a alma, dizia Dora: - Ai! Me Deus que pecadoooo... que pecadoooo!!! Ahhhh! Enquanto beija e mordia a orelha da criança alucinadamente.

Bom... Resultado de tanta volúpia, acabou causando uma seqüela no ouvido esquerdo de Binho de forma irreversível. Até hoje sente as dores daquele ataque voluptuoso de desejo. Algumas freqüências sonoras, quando entram ressonância com o espectro da lesão, provocam pequenas dores que costumam incomodar bastante o ouvido esquerdo do rapaz.

Claro, que na ocasião longe de sentir prazer, Binho sentiu foi mesmo um profundo desconforto que lhe fez escapulir dos braços de Dora. Afinal, apesar de muito esperto, era ainda inocente para compreender o que estava ocorrendo, e o que significava aquele ataque inesperado. Porém, agora um pouco mais velho, tudo parecia fazer sentido. Sabia que tudo o queria era encontrar Dora novamente, precisava satisfazer aquele desejo de estar com ela, pois, agora tinha plena certeza do que ela estava querendo com aquele ataque. Já tinha até ensaiado como se portaria diante daquele monumento de mulher.

Absorto em pensamentos, não se apercebia que já ia deixando a velha Mandaú para trás. Em momento algum havia pensado em voltar. Avançava mais e mais naquela jornada, que seria um verdadeiro rito de passagem para a idade adulta. Todavia algo o despertou daquele transe que estava imerso. Era o roncar de seu estômago. Começara a sentir fome. Então, lembrou-se que era época de manga, bem como da mangueira que existia na saída da Mandaú, próximo ao condomínio da laguna.

Ao chegar de baixo da mangueira, Binho encontrou um verdadeiro banquete a sua espera. Aquelas mangas rosas ali, generosamente ofertadas, eram como a visão do Oásis para o viajante do deserto. Não fez nenhuma cerimônia, comendo-as, gulosamente até se lambuzar. Depois de comer bastante manga, colocou algumas mais num saco plástico que encontrou no local para levá-las consigo. Após, já saindo do local, pediu um pouco de água ao vigia do condomínio. Então, seguindo sua jornada prosseguiu em frente no firme propósito de ir embora de Maceió.

Saciado da fome e da sede. Percebeu que já estava caminhado a horas pela Al 101. Foi aí que conseguiu uma carona numa camionete que transportava cocos, que o deixou no trevo de Marechal Deodoro. Havia percorrido pelo menos quase uns trinta e cinco quilômetros. Afinal, havia saído de casa por volta das dez horas e agora já eram seis da tarde. Logo, logo iria anoitecer, precisava pernoitar em algum lugar. Viu então, um posto BR e dirigindo-se pra lá, procurou logo o gerente do posto.

- Ei, senhor, meu nome é Fábio. Estou vindo de longe... Lá das bandas de Paripueira. Estou indo para Penedo morar com meus tios. Meus pais morreram... E, lá em Paripuera não tenho parentes. Eu poderia fazer qualquer coisa que o senhor quisesse. Arrumar alguma coisa, lavar o pátio, louça, limpar os banheiros, qualquer coisa mesmo, em troca só lhe peço um prato de comida e um lugar para passar a noite. Amanhã bem cedo eu lhe prometo que não vou mais amolar o senhor. Disse Binho ao gerente.

O homem coçou a cabeça olho fundo os olhos do menino de corpo franzino, e disse:

- Oh, rapaz! Quem pensa que você quer enganar?! Não nasci ontem não! Você tá é fugindo de casa!

Binho olhou para homem, e com olhar sereno bem convincente. Disse-lhe:

- Se tivesse uma casa pra morar, por que estaria aqui agora lhe pedindo pousada? A única coisa que tenho agora é uma dor profunda que me corta a alma pela perda de meus pais, e ter que ir morar com os meus tios que mal conheço. Não estou mentindo. E, se o senhor achar que estou lhe pedido algum absurdo, eu vou embora, posso dormir em qualquer lugar, até mesmo na beira da estrada. E foi saindo, tomando o caminho da auto-estrada.

O homem vendo Binho se afastar gritou-lhe:

- Oh, oh, oh, rapaz! Como é mesmo que disse que se chamava?

Respondeu Binho:

- Fábio, senhor, mas pode me chamar de Binho. É como todos me chamam.

- Volta aqui. Meu nome é Rozendo. Eu tenho um lugar pra você dormir. Eles aqui servem a janta às sete. Você pode jantar comigo se quiser. E, querendo me ajudar. Tá vendo ali aqueles baldes? Estão cheios de óleo queimado. Você pode pegá-los e despejá-los lá naquele tonel, que está lá diante daquele Box de descarga.

Binho nem pestanejou, foi tratando logo de apear suas coisas ali mesmo num canto da gerência e saiu correndo para fazer o trabalho.

O homem ficou observando, por instantes, o empenho daquele corpo franzino em executar o trabalho que lhe fora recomendado. O rapaz era puro entusiasmo. Parecia que vibrava de felicidade fazendo um trabalho que ninguém gostava de fazer. Então, Rozendo voltou-se para os seus afazeres rotineiros. Precisava fechar o caixa com as férias do dia.

Binho terminou logo o trabalho. Por sua conta lavou a sujeira em torno do Box. Faltando uns quinzes minutos para o jantar. Ele prestou conta daquilo que fizera ao gerente:

- Seu Rozendo, terminei o trabalho, aproveitei e acabei lavando o pátio.

O homem olhou para o rapaz todo respingado de óleo, voltou o olhar para fora e viu que o trabalho fora executado direitinho. Disse-lhe, então:

- Binho. É esse o seu nome. Não é? O rapaz balançou a cabeça confirmando que sim.

- Toma aqui este sabonete e pega ali aquela toalha, pode se banhar no banheiro dos fundos, lá tem uma ducha forte que vai te tirar rapidinho todo este óleo. Depois venha pra cá, que iremos juntos pro refeitório.

O garoto tomou um banho como há muito não tomava. Já de banho tomado voltou até a gerência e saíram os dois para jantar. A janta foi realmente generosa. Comeu feito um rei. Depois de algum tempo, já satisfeitos, ele e Rozendo saíram do refeitório. Foram para fora. Fazia uma noite bastante agradável. O ar ameno refrescado pela brisa do mar, a noite feito uma princesa debutante, coroada por estrelas e com seu extenso véu de via láctea, exaltava os poetas, os amantes, os filósofos e os contadores de estórias. Ao mesmo tempo, dava uma sensação de regorjeio e satisfação por estar imerso dentro daquela profunda poesia que desenhava a vida naquele momento.

- Então, rapaz! Você vai embora amanhã mesmo? Indagou Rozendo.

- Sim, senhor! Amanhã bem cedo eu pego a estrada. Tenho que encontrar logo meus tios. Respondendo, Binho ao homem. Rozendo, não sabendo explicar, guardou uma estranha simpatia pelo menino que tinha ânsia de se tornar homem. Afinal, o Rapaz fê-lo lembrar de quando ele também era menino. E se dirigindo a Binho, disse-lhe:

- Olha aqui, rapaz, não estou te dando isto, você fez por merecer. Toma aqui cinqüenta pratas. Amanhã se eu não te ver mais... Tenha uma boa viajem e boa sorte. Ali, naquele quarto em frente tem uma cama, onde você pode dormir. Boa Noite! E foi saindo.

- Muito obrigado por tudo. Nunca vou me esquecer do que senhor fez por mim. Boa noite, pra senhor também. Disse Binho, encaminhando-se para o quarto.

No dia seguinte, Binho acordou cedo. E, antes mesmo que o sol raiasse, pegou suas coisas e partiu. Afinal, teria que seguir em frente, pois, essa era uma jornada que ao final um homem deveria sair forjado. E assim se foi, parando em vilas e lugarejos. Arrumando sempre o que fazer. Ganhando um pouco de dinheiro aqui e acolá. Fazendo pequenos trabalhos e arrumando amizades, pois, Binho sempre tinha alguma história engraçada para contar. Que o transformava numa espécie de menestrel, uma vez que costumava sempre poetizar suas histórias.

Após atravessar duzentos quilômetros, entre Maceió e Penedo, numa jornada que demorou, aproximadamente três meses. Binho, agora não era mais criança. Havia se transformado em homem, apesar da tenra idade, porém, agora era hora de lapidar-se. Apreender uma profissão que realmente pudesse lhe garantir o sustento onde quer que estivesse.

Penedo era o lugar perfeito para isso. Conseguiu um lugar de aprendiz na oficina do seu Hanz, um Srº alemão, que trabalhava com galvanoplastia. Em pouco tempo, Binho já era oficial, sabia dar um tom nas cromagens que ninguém mais conseguia.

Após seis meses de oficio, já tinha dominado todo o segredo da profissão. Tinha plena certeza de que Penedo fora importante na sua formação, porém não era o seu destino final. Sabia que a hora de partir já se avizinhava. Precisava ir além, atravessar o velho “Chico” e ganhar outras fronteiras para sua vida. Então, no final daquele mesmo ano, despediu-se de todos e partiu rumo à outra jornada.

(Fábio Omena)

Ohhdin
Enviado por Ohhdin em 16/02/2010
Reeditado em 17/02/2010
Código do texto: T2090320