Ana, só

- I regret, mademoiselle, but we’ve waited as long as possible. Excuse moi.

A frase que gelou seu estômago foi dita numa língua quase ininteligível, com todas as palavras com a última sílaba tônica. Como, ela perguntava, e agora? Seu inglês sofrível provavelmente também não estivesse lá muito claro, dado o nervoso. Que merda, ela gritou em bom português. E nem se incomodou caso alguém pudesse ter compreendido, pois tinha certeza de que não havia brasileiros ali.

Enganara-se. Mais um brasileiro também havia perdido o vôo que faria a conexão para São Paulo, mas este não estava mais lá: já havia ido ao balcão da companhia aérea e resolvido seu problema. Eram bem mais de onze horas da noite, de uma noite fria e cansativa, pois a viagem anterior, que deveria ter durado três horas, na verdade prolongou-se por quase seis. Uma nevasca havia atrasado aquele vôo; e, mesmo sem ter tido a menor culpa pela perda de sua conexão, a ela restava encostar a barriga no balcão da companhia e esperar por uma luz.

Tudo certo, apesar do transtorno e da dificuldade de comunicação: a companhia aérea providenciaria o hotel para aquela noite. O vôo para São Paulo sairia em outro portão daquele mesmo aeroporto na manhã seguinte, às 10. Um cupom para o jantar, outro para o café da manhã, um cartão telefônico, uma pequena bolsa com produtos de higiene em miniatura e um mapa do aeroporto indicando como chegar ao hotel. Era perto, não haveria problemas.

Inconformada, imaginando que àquela hora poderia estar minimamente confortável sentada em sua poltrona no avião a caminho de casa, ela andava lentamente em direção ao banheiro do aeroporto. Lavou as mãos e o rosto e continuou sua busca à saída correta do aeroporto que a levaria ao hotel. A única coisa que queria naquele instante era tomar um banho quente. E talvez uma sopa.

O aeroporto era gigantesco, porém muito bem sinalizado. Inúmeras placas com grandes letras coloridas indicavam caminhos, ainda que a língua local não a auxiliasse. Porém confundiu-se com relação às tantas alas e, após ter andado bastante, resolveu olhar o mapa para se localizar... mas o mapa não estava em nenhum lugar. Sorriu de sua desatenção; porém, quando se virou para voltar ao ponto de partida para buscar outro no balcão da companhia aérea, percebeu que não sabia mais retornar. Não lembrava da letra e do número do portão e as alas eram todas absolutamente idênticas. Mais de meia-noite e nenhuma alma por perto - a não ser um varredor. Que não falava inglês.

Andou por quase quinze minutos até avistar o logotipo da companhia. Quase correndo, chegou ao local para constatar que o balcão estava fechado e não havia mais ninguém por ali.

Percebeu-se, então, sozinha e perdida no imenso aeroporto deserto de um país cuja língua não dominava, portando apenas sua agora inútil bolsa - já que as malas haviam sido anteriormente despachadas para o vôo cuja conexão havia perdido.

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A primeira coisa que veio à sua cabeça foi a lembrança dos seus pedaços que ficaram distantes: o marido e os filhos, estes sob a guarda da avó, que esperavam seu retorno para a manhã seguinte. Já estava longe de casa por tempo suficiente para que a preocupação com eles povoasse amiúde seus dias de ausência. Fez as contas do fuso horário, considerou que ainda podia telefonar sem incomodar o sono deles e imediatamente sacou de seu celular – para constatar, inconformada, que estava sem bateria. E o carregador na mala que já seguia seu caminho para casa.

Olhou para o cartão telefônico que havia recebido da companhia aérea e leu as instruções, mas não as entendeu. Olhou em volta, não viu telefones públicos e estava um tanto cansada (e assustada com a ausência de gente) para sair sem rumo e ir procurá-los. Começou a entrar em pânico, imaginando os parentes preocupados e ansiosos, as tantas coisas para fazer quando chegasse, a casa de pernas para o ar, o trabalho que deveria organizar... até que o desespero cedeu lugar ao bom senso: considerou que tanto faria, àquela hora, avisar ou não alguém, já que seu atraso só seria percebido muitas horas depois.

E num relance, sentada num banco frio de um enorme aeroporto a milhares de quilômetros de sua casa, absolutamente só e sem nenhum vínculo imediato – filhos, pais, amores, amigos, subalternos, superiores, suas coisas, sua língua – pode enfim perceber-se como talvez jamais se houvera percebido: pertencente a si mesma. Naquele lugar, ela não era a mãe, a filha, a esposa, a profissional, a colega, a amiga de ninguém: ela era Ana. Apenas Ana. Uma Ana que tinha identidade própria, mas que podia ser qualquer pessoa ali, sozinha, num lugar em que ninguém a conhecia, ninguém a cobraria, julgaria ou repararia em seu cabelo ou unhas. Ana era, enfim, apenas Ana, revisitando sua identidade como numa comédia romântica que vira uma vez, ou num conto que lera... ou teria sido um sonho recorrente?

Ana começou a rir. Ria alto, mesclando desespero e alegria profunda; uma sensação de estar bêbada. Sentia-se livre. Ensaiou uns passos de dança, deitou-se no chão. Tirou da bolsa seu espelhinho e passou batom, desfez seus cabelos com os dedos e, ignorando o frio, dobrou as barras de sua calça até a altura dos joelhos. Tirou os sapatos, arregaçou as mangas. Colocou as pernas para o alto, apoiando-as no banco. Abria e fechava os dedos dos pés, segurando os tornozelos com as mãos, como se estivesse vendo seus pés pela primeira vez. Depois examinou as costas das mãos - partes do corpo traiçoeiras, pois indicavam sem clemência a passagem do tempo – e em seguida as palmas daquelas mesmas mãos que tanto cozinharam, acariciaram, trocaram fraldas, apertaram afetuosamente outras mãos, escreveram, deram adeus, cobriram o rosto, enxugaram lágrimas (suas e de outros), carregaram sacolas e malas, fizeram brutos e delicados trabalhos, deram e desataram laços e nós...

Ana acariciou as partes expostas de suas pernas e braços com suas mãos polivalentes, sentindo que o calor delas a apaziguava. Pensou nos vínculos, os quais julgava consistentes, que havia construido em sua vida e que a haviam atado de forma aparentemente indissolúvel, mas que o frio ou um ataque súbito do coração poderiam dissolver em minutos - e nem por isso a vida deixaria de continuar, com ou sem ela. Entendeu que os vínculos eram, de fato, tênues, como tênue era a linha que separava sua importância e sua insignificância. Ana percebia-se um ser completo, total e único e, ao mesmo tempo, ninguém especial - pois se morresse ali, de fome ou sede, não haveria uma pessoa sequer naquele aeroporto, naquela cidade ou naquele país que lhe chorasse a falta. Pensou no varredor que viria cutucá-la com o cabo da vassoura, diria “está morta” naquela lingua estranha e iria ligar para a polícia. Por outro lado, não havia ali também ninguém a cobrar-lhe nada: comida na hora certa, trabalhos entregues no prazo, carinhos em horas de sono, compreensão na TPM. Ana não precisava dar carona, fazer sobremesa ou telefonar para o cliente. Ana não estava certa nem errada, não era boa nem má, não era linda nem feia, nem gorda nem magra, nem jovem nem velha, nem educada nem ignorante. Ana era tudo e era nada: Ana era Ana. E Ana não era ninguém além dela mesma.

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Ana está adorando as caras de espanto que vê quando diz “não”, sorrindo, a uma solicitação absurda. Adora os olhares de reprovação ao seu cabelo curto e pintado. Está adorando a vida de ex-assalariada, a vida de solteira, adorando a faculdade, adorando o espelho...

Quando lhe perguntam o que aconteceu, ela responde apenas: “C’est moi”. Também está adorando o curso de francês.