Em branco

Não lhe guardou rancor. Não lhe guardou mágoas. Não lhe guardou sentimentos ruins, os quais procurava banir de sua vida de forma total, pois sabia que qualquer sentimento voltava a quem o lançava, como um bumerangue tardio.

Não quis buscar culpados: preferiu relevar, que dedos em riste são perigosos entre seres humanos. Sabia da força de seu amor que tudo suportara, que tudo consentira, que tudo minimizara em prol de sua própria preservação. Esqueceu as injustiças e as deslealdades, os dias de solidão, as mentiras monstruosas...

...mas esqueceu também seu rosto, seu jeito, o dia em que se conheceram. Esqueceu-se do primeiro beijo, do último encontro. Não se lembrava mais dos bons momentos, das risadas entre lençóis, das manhãs em que acordavam abraçados. Perderam-se para sempre as palavras doces, os filmes que viram juntos, as noites de vigília... Certo que propositadamente eliminou de seus arquivos físicos telefones, endereços e fotos, mas já não conseguia mais se recordar de como havia sido sua vida com ele. Apagou-o de forma eficiente. Se o controle racional de seus sentimentos forjara uma amnésia produtiva que permitiu evitar a dor e o sofrimento, selou também o destino de suas melhores lembranças.

Na guerra contra o ódio, uma bala perdida destruiu suas memórias. E, em tendo enfim dado cabo dos motivos de sua ira, ela já não fazia mais sentido. Sentia-se mais leve, porque mais vazia. Pois não era como se ele houvesse morrido: era como se nunca houvesse existido...