SERMÃO DA MONTANHA

Escuto o bochincho dos fiéis lá fora, porém, ensurdecedoras são as vozes que gritam dentro de mim. Tornar-me padre sempre fora um sonho de infância, e agora, que realizado tenho o sonho, temo não merecê-lo. Acredito não ter sido eu completamente sincero e gentil com minha fé. Meu tutor alertara-me dias atrás que a tensão que antecede a primeira missa é coisa costumeira, que todos que possuem legítima vocação para o sacerdócio sempre questionam antes de debutar na celebração da eucaristia se realmente são merecedores de difundir a palavra de Deus na Terra. Sei que falhei no ato da confissão e um de meus supostos pecados ocultei de meu confessor, não por negligência ou vergonha, mas por não acreditar que de fato eu houvesse violado algum princípio religioso. Mas, esta mesma igreja a qual agora dedicarei minha vida, toma meu ato como algo tão ou mais grave que assassínios ou a pronúncia do santo nome de Deus em vão. Jamais reconheci como pecado o que me ocorrera no seminário porque não partilho da leitura universal e autoritária que é imposta à bíblia, experimento sua verdade não através de uma leviana aceitação, mas sim, de deliberações e questionamentos cujo peso ou leveza em meu coração é que me revelam quando estou certo ou errado. Estou em paz com Deus, mas a Igreja e eu duelamos dentro de mim e já não sei bem quem de nós dois possui razão. Enquanto a Igreja grita Pecado!, Blasfêmia! Aberração!, fecho meus olhos e a única palavra que pacificamente batalha contra aquelas que me condenam é ventura.

Eis que vos envio como ovelhas ao meio dos lobos. Portanto, sede prudente como as serpentes e simples como as pombas.

Eu estava lendo Mateus quando ele sentou-se ao meu lado. Tinha os olhos de uma doçura gritante, esculpidos em pedra-sabão, inquietos e acalentadores, uma epifania. Permaneceu emudecido enquanto observava fixamente minha leitura, até que acabei por sucumbir ao meu notório desconcerto e fechei minha bíblia, encarando-o com semelhante curiosidade. Disse-me então sorrindo ele:

_ Perdi minha fé.

Assustei-me com sua declaração, pensei em orientá-lo a procurar o auxílio de algum tutor, mas fui tentado a indagá-lo acerca daquela perturbadora revelação.

_ Perdeste a fé em Deus?

_ Não. – respondeu-me, simplesmente.

_ Na Igreja?

_ Não.

_ Em ti mesmo?

_ Jamais! – sobressaltou-se, quase alterando a voz.

Preferi calar-me e nada mais perguntar. Seus olhos assustavam-me tanto quanto o poço que ficava na fazenda de meu avô. Quando criança, eu olhava para dentro dele e uma estranha força parecia atrair-me para o seu fundo, suas águas turvas e frias. O poço queria que eu me atirasse, me afogasse, como aquele olhar.

_ Perdi a fé em ti. – gracejou-me, sorrindo.

_ Em mim?! – exaltei-me – Tu nem me conheces!

_ Tu que a mim não conheces, Paulo. Mas a ti conheço muito bem. E conheço-te porque te amo. Ou talvez te ame por conhecer-te. Não tenho mais fé em ti, pois creio que a possibilidade de uma recíproca em relação a meus sentimentos te levaria à loucura, como forma de penitenciar-te.

Seminaristas conversavam por todo o jardim no qual nos encontrávamos e a sensação que naquele momento experimentei foi a de que todos eles eram sabedores do que eu havia acabado de escutar e que parecera-me absurdo. De que espécie de amor estava falando ele? Apesar de tratar-se da mesma palavra, não parecia o mesmo amor para o qual eu estava sendo doutrinado. Era o amor que os sacerdotes diziam ferir a castidade e transgredir a natureza da qual Deus dotara os homens, uma profanação contra o sagrado, uma tara capaz de levar à devassidão nossa alma imortal. Levantei-me do banco de mármore e caminhei atemorizado até minha cela, sentia-me como se todos os sacramentos eu houvesse violado de uma única vez por ter ousado ouvir da boca de outro seminarista aquilo que ele apenas poderia ter revelado em um confessionário a alguém com rígida competência para orientá-lo sobre suas divagações acerca do amor. Procurei orar, mas o radiante par de olhos que me surpreendera no jardim havia domado todos os meus pensamentos, duas auréolas suspensas em um rosto de abóbada celeste. Deitei em minha cama a fim de que o sono livrasse-me da excitação alimentada por aquele êxtase. Porém, antes que eu dormisse, a porta de minha cela foi aberta e ele entrou. Blasfemei. Vi-me no deserto por alguns instantes, tentado.

_ Meu nome é Daniel. Há muito tempo venho lendo em segredo teus cadernos, descobri um deles por acaso na sala de estudos e li rapidamente algumas páginas, antes que tu retornasses a fim de recuperá-lo. Desde então, invado tua cela quando estás ausente e leio clandestino tuas brochuras. Teus pensamentos e poemas são lindos. Mais que na bíblia, encontrei verdades sobre mim em teus escritos, e a mais valiosa delas é a de que, mesmo que eu pusesse minha vida em risco, eu jamais seria capaz de negar teu nome. Deus dotou-nos com a dádiva do amor, mas apenas através de ti eu consigo realizá-lo. Não estou aqui a fim de instigá-lo para um desvio, Paulo. Cá estou na intenção de livrar-me do pecado de esterilizar forçosamente o que a fé incita-me a zelar pelo cultivo.

Dito isto, Daniel deitou-se ao meu lado e senti seu corpo junto ao meu como se uma parte de mim houvesse retornado de uma secular jornada. Suas palavras não foram sedutoras, foram honestas, seu amor por mim não nos desviava nem nos deformava, nos deixava ainda mais próximos daquilo para o qual estávamos sendo preparados. Nossa nudez não me pareceu criminosa ou abominável, na verdade, o contato íntimo entre nossas carnes nos vestira com uma beleza e sabedoria as quais eu nunca havia obtido em sua plenitude. Depois daquela tarde, a fé de Daniel em mim estaria para sempre restaurada.

_ Padre. Está na hora.

Diz-me o sacristão, quebrando o doce fio que me conduzia à mais terna lembrança de minha vida. Talvez Daniel não retorne de sua missão no Haiti, mas distância alguma impede que eu cada vez mais o ame, o respeite, o guarde em minhas orações que tanto lhe desejam felicidade e paz.

Ergo-me da cadeira e olho demoradamente para Cristo crucificado: Ama a teu próximo como a ti mesmo. Antes de sair da sacristia, deparo-me com o retrato de Bento XVI: Temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo.

Como iniciar minha primeira missa? Penso em Daniel e de imediato lembro-me de Mateus:

Bem aventurados os que sofrem perseguição.

Os fiéis reconhecem as sacras palavras e acomodam-se atentos. O amor e a fé uníssonos explodem dentro de mim, transformados em versos, flutuando dentre palavras, nas entrelinhas do Sermão da Montanha.

EMERSON BRAGA
Enviado por EMERSON BRAGA em 02/03/2010
Código do texto: T2115337
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