A FEBRE

Foi em uma destas noites que, de tão sombrias, silenciam o cio dos gatos e o ladrar de cães arruaceiros. Primeiro, um som rouco, disforme, distante, despertou Nelita de seu sono costumeiramente enfadado e envolvido pela cansativa paz que povoa o coração daqueles que teimam em pensar que toda miséria da humanidade é algo irreal. Procurou organizar seus ralos pensamentos a fim de decifrar a natureza daquele som, semelhante ao grunhido de um animal moribundo e suplicante. O estranho barulho parecia vir de todos os cantos da casa e invadir debilmente o pequeno e mofino quarto de Nelita. São gemidos, constatou a jovem aprendiz de órfã, erguendo-se sôfrega e calçando com falsa energia suas gastas sandálias de couro. Pobrezinha, arriscou-se a palavra dentre lábios que pouco se abriam, enquanto Nelita observava a mãe enlouquecida sobre a cama, com movimentos cegos e desesperados, a resmungar palavras ininteligíveis.

A saúde de sua mãe debilitara-se sensivelmente. Sentada ao seu lado, Nelita tentou controlar em vão a luta daqueles braços que pareciam querer agarrar-se a algo muito precioso flutuando na claridade fosca do quarto. Crendo haver traduzido aqueles gestos violentos e angustiados, Nelita enfiou suas duas mãos na gaveta do criado-mudo e buscou dentre dedos trêmulos sentir o terço bento que há tempos havia se tornado o único artifício capaz de apaziguar as crises mais substanciais, depositou cuidadosamente o rosário nas mãos de sua mãe e apertou uma contra a outra, a fim de que a enferma percebesse que o auxílio divino estava a seu alcance e que seu febril coração já poderia se acalmar. Cessado o balbucio, Nelita esticou o braço a fim de secar o leitoso suor impregnado na testa materna, todavia, a convalescente agarrou com brutalidade o pulso da filha, ergueu da cama o corpo mazelento valendo-se de uma velocidade sobrenatural e atirou o rosário longe. Nelita encarou-a temerosa e pensou imediatamente em uma imagem do Diabo que havia visto retratada em um livro de religião da escola, procurou afastar tal pensamento com alguns cânticos nasalizados e concentrar-se em Deus. A mãe parecia ter reunido forças das profundezas abissais de seu corpo debilitado por um mal desconhecido quando, de um único fôlego, de cara atormentada e doentia, disse calorosamente à filha, lábios descascados, língua entorpecida, traz teu pai aqui, não quero morrer sem vê-lo, não sem ele, não posso morrer sem ele, vai, corre, maldita.

Nelita levantou-se de um salto e observou assustada o corpo de sua mãe novamente tombar sobre a cama encharcada de suor. Antes de correr, ainda recolheu do chão o terço e enfiou-o no bolso de sua camisola. Não conseguia parar de pensar no Diabo.

Era um sábado de festa e a cidade estava tomada por uma multidão de infelizes à procura de diversão imediata e barata. A menina, pálida e desnorteada, trajando uma camisola que ostentava um pudor de velhas viúvas, acabou por despertar o riso de umas pessoas e a curiosidade de algumas, por outras passou despercebida. Nelita, naquele momento em que deveria estar sendo acometida por uma canibalesca sensação de constrangimento devido aos olhares de desaprovação e comentários jocosos, acabou por sentir-se a mais elevada das criaturas que Deus já pôs sobre a Terra. Afinal, era sempre assim, apenas através do que julgava sacrifício, alcançava a idéia que fazia de prazer. Ser boa e dadivosa era sua aspiração mais obsessiva, amar aqueles que a ignoravam e aceitar sem ressalvas sofrimento, desprezo e insatisfação era o seu estranho modo de comungar com o mundo seu coração e espírito que ela própria julgava sem máculas. A doença da mãe apenas servira para intensificar sua tolerância ao padecimento diário, a dor era o único alimento capaz de saciar seu apetite frugal e a compaixão alheia por sua renúncia às delícias que apenas aquilo que é frívolo nos proporciona a transformavam na virgem, na santa, na mártir que ela cultuava em segredo.

Após muito perambular em busca do pai, acabou vislumbrando-o sentado a uma mesa de bar, acompanhado de uma jovem mulher. Timidamente, Nelita aproximou-se e, após alguns cuidadosos passos, petrificou no meio do salão, onde alguns casais embriagados tentavam dançar um desafinado forró. As pessoas a ignoravam como se ela não passasse de um fragmento frio e invisível de inexistência, a bondade em demasia a transmudara em um ser que não ocupava espaço algum, e isto, para Nelita, era o retrato fiel de sua própria beleza.

A boca de seu pai descia dos lábios da mulher até o roliço pescoço, enquanto suas mãos de mestre-de-obras corriam os seios flácidos e as pervertidas ancas. Nelita permaneceu estática e com seu olhar bovino posto sobre o adultério do pai como uma mão que absolve. Se ousasse odiá-lo, iria corromper a virtude arquitetada e cultivada por toda a sua vida, não poderia se permitir perder tanto. Procurou visualizar mentalmente a imagem do Diabo a fim de canalizar sua ira para a única criatura cujo ódio a ela direcionado é perdoável e isento de desnecessários remorsos. Porém, a figura da hedionda entidade abandonou-lhe a memória como se ela jamais a tivesse visto, enfiou a mão no bolso e apertou com força um punhado de mistérios do rosário, odeio o Diabo.

Despertado do êxtase voluptuoso por um grosseiro safanão de sua companheira de ébrias madrugadas, o pai de Nelita pôde vislumbrar a filha que o fitava com olhos de perdão eterno. Tomado por uma carranca de aspecto grotesco, o homem entornou de um gole seco o copo cheio de cachaça e sentiu pela filha um repúdio ainda maior que o que passara a sentir pela esposa que não saciava mais seus apetites. Sem demonstrar o menor acanhamento, o pai de Nelita arrastou para junto de si o corpo da amante e sapecou-lhe na boca um beijo carregado um de libidinoso desejo que se manifestaria por qualquer mulher que não fosse a morta-viva prostrada sobre a cama de seu quarto ou o fantasma de camisola que ousara absolvê-lo pelos pecados que ele não se envergonhava da prática rotineira.

Nelita retornou para casa sentindo explodir dentro de si a sublimação de seus sentimentos. Conseguira quase sem esforço algum manter paixões vis adormecidas dentro de seu peito, fora mais forte que qualquer outro santo do qual ouvira falar, Deus prefere o meu martírio. Havia um espelho metafórico diante de si onde ela enxergava a imagem de Cristo crucificado, resguardando no rosto uma expressão de deleite etéreo. Sabia que o Diabo, sim, poderia ser odiado. Apenas o Diabo.

Ao entrar no quarto de sua mãe, Nelita encontrou-a inerte sobre os lençóis ensopados pelos sucos da tortuosa moléstia. Caso não se percebesse o movimento de um leve respirar em seu abdômen, qualquer pessoa certamente a julgaria morta. Nelita sentou-se ao lado do corpo esquálido e sua mãe então abriu os olhos delirantes e estampou um doloroso sorriso em sua face cadavérica, Lázaro, meu marido Lázaro. E, novamente, tomada por uma energia incompreensível, a mulher abandonou seu estado de torpor e envolveu a filha em um abraço apaixonado, aplicando-lhe um beijo adolescente na boca que, em sua torpe excitação mental, ela julgara ser a do esposo. Jamais um beijo lésbico e incestuoso fora tão puro, Judas havia traído o maior de todos os seus amores com um beijo, mas Nelita, Nelita estava salvando sua mãe ao valer-se do mesmo bíblico artifício. Julgara-se naquele instante um esposo melhor para a mãe, pois em seus lábios só havia ternura e em sua alma a mais profunda entrega. Satisfeita, crédula de que realizara a derradeira vontade de sua vida, a mulher desprendeu os débeis lábios dos da filha e aproximou-os do atento ouvido de Nelita, por ti, Lázaro, eu não me permitirei morrer.

Difícil entender o que se passou no dia seguinte, esta linha tênue que separa os milagres das maldições. A mãe de Nelita, misteriosamente, acordara refeita de seu estranho mal, sua sanidade e vigor físico haviam retornado como se, por determinação divina, ela houvesse despertado de um pesadelo que durara anos. Todavia, a morte inexplicável e repentina da filha ainda tão moça não permitiu que ela ousasse sentir-se feliz naquele primeiro instante em seu miraculoso despertar. Nelita morrera durante o sono, talvez não houvesse sofrido com a chegada precoce de seu passamento, quem sabe ainda sonhava. Sua mãe, inconformada, velou seu corpo por horas e horas, enquanto o marido tentava consolá-la, posto a seu lado como um colosso, tocando-lhe o ombro com a segurança que a mulher tanto prezara durante todos aqueles anos de matrimônio, não lembrava ela do abandono, desconhecia completamente o adultério.

Com algum esforço, a mãe de Nelita conseguiu retirar o rosário das mãos rijas de sua amada menina e abraçou-se desolada ao marido, àquele homem perfeito, chorando a morte da filha que só vivera por ela.

Foi a febre, disse o homem a olhar desconfiado o corpo da filha acomodado em um pobre ataúde, falam por aí que tem uma febre que mata a gente assim, dormindo, deve ser coisa do Diabo.

EMERSON BRAGA
Enviado por EMERSON BRAGA em 05/03/2010
Código do texto: T2121160
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