SÂNDALO

Quando a campainha tocou, achei que fosse o rapaz da farmácia trazendo minhas ampolas de insulina. Ergui-me de minha velha poltrona, exausto de tanto descansar inutilmente de minhas eternas fadigas e caminhei até a porta. Respirei extenuado e concentrei minhas senis forças a fim de conseguir desempenhar com sucesso a simples missão de girar uma maçaneta. Ainda não sei com certeza o que me destruíra o vigor, se a diabetes, minha falta de amor à vida ou o infeliz casamento destas duas enfermidades. Senti-me humilhado por mais uma vez a energia me abandonar o corpo diante de uma tarefa vergonhosamente rotineira e simples, todavia, para evitar que o tilintar importuno repetisse seu irritante eco em meus tímpanos, que só teimavam em escutar sons que me despertassem enxaquecas, abri a porta com a máxima vivacidade da qual eu ainda dispunha e, para minha triste surpresa, encontrei o corredor vazio. Lamentei a demora na chegada de meu medicamento e odiei todas as crianças do mundo, pois julguei ter sido aquilo nada além de uma tola traquinagem infantil. Enervado, baixei meus olhos e percebi com pouca nitidez uma magra varinha deitada diante da soleira de minha porta, mais uma vez vasculhei com dificuldade os dois sentidos do corredor e não avistei ninguém, novamente fitei a vareta e então percebi que algo de atraente e sensual dela emanava, como se possuísse vida. Com tremendo cuidado, curvei-me e lentamente desci ao chão até a distância necessária para que meus trêmulos dedos segurassem o fino objeto. Ergui com gigantesca cautela a minha vulnerável carcaça e, ao ver-me completamente de pé - o que em meu caso significa semi-curvado - lancei no ar um suspiro dolorido e destilado em meus pulmões adoecidos pela bronquite, e, quando o ar retornou lento e mórbido através de minhas narinas a fim de oxigenar meu sangue quase que por completo envenenado por mil moléstias da idade, senti o delicado odor de sândalo flutuar tranquilo e suave ao meu redor, como um espírito brincalhão. Logo constatei que a varinha deixada diante da entrada de meu apartamento por algum estranho tratava-se de um incenso de delicioso e fino aroma, extraído de uma sagrada árvore indiana. Excitado, retornei para dentro de minha casa e tranquei a porta, como se eu temesse que algo no mundo exterior me roubasse aquele instante. Alguém havia me presenteado com um perfume, isto fez com que eu me tornasse novamente menino e transformasse o incenso em meu maior e mais valioso segredo. Estranhamente esquecido de meu cansaço, caminhei frenético até meu quarto onde, dentre um amontoado de quinquilharias, encontrei meu antigo incensário. Sem ousar perder nem mais um único segundo, acendi o incenso e aguardei com uma ânsia desabalada que o primeiro fio de fumaça surpreendesse meu olfato. De um único trago aspirei por completo a alma de um sândalo perdido em uma floresta da Índia, não tardou muito para que o quarto inteiro se impregnasse da essência fina e majestosa, fazendo com que um milagre me contaminasse por dentro. O riso tomou conta de minha boca muda e o ritmo da fumaça dispersa pelo interior do quarto me levou a dançar. Eu, inspirando uma felicidade antes adormecida e expirando as enfermidades causadas por minha preguiça em viver, nascendo e morrendo enquanto o sândalo ardia, exalando seu doce espírito, cercando-me por todas as direções, abraçando com carinho meu corpo e insuflando-o de robustez e alegria plenas.

Por quantos dias continuei sendo presenteado com as varetas do miraculoso e rejuvenescedor incenso? Já não me preocupava em descobrir quem as trazia, contanto que eu continuasse a recebê-las sempre e sempre. Todavia, um profundo sentimento de ingratidão acabou botando em meu peito que se tornara jovial e inquieto, era necessário que eu agradecesse à criatura que me trazia às escondidas aqueles pedaços perfumados de vitalidade, eu precisava demonstrar o quanto estava grato pela dor e abandono que eu havia deixado de sentir. Enfim, acabei por arquitetar a armadilha que terminou por afastar-me definitivamente de meu nobre e bom salvador. Em nosso derradeiro dia, sentei-me diante da porta de minha sala, talvez mais ansioso pelo presente que pela necessidade de surpreender quem o trouxesse, e aguardei com pueril excitação. Meus dentes rangiam e meu coração palpitava com loucura, há tempos meu sangue não corria tão veloz e quente como se comportou naquele dia.

Ao escutar o som da campainha, rapidamente abri a porta na esperança de encontrar um corpo em fuga, porém, o que vi diante de mim foi a face de um jovem belo, mas de semblante cansado e vazio, tendo em uma de suas mãos uma varinha de incenso. Seu olhar me arrebatou de um modo indescritível, enquanto lágrimas pesarosas banhavam seu magro rosto quase infantil. Ele dizia em seus olhos que me amava e que estava sacrificando sua vida para salvar a minha. Antes de partir, entregou-me o incenso, pôs as mãos nos bolsos de sua gasta calça jeans e caminhou vagarosamente, cabisbaixo, na direção da escadaria, como um fantasma ao qual eu jamais tornaria a encontrar. Quando ele fugiu do alcance de meus olhos, retornei para dentro de casa e tranquei a porta a fim de proteger-me de uma responsabilidade que não estava lá fora, procurei fugir de meus pensamentos, mas minha consciência atenta e vigilante acabou por derramar a dolorosa verdade dentro de meu espírito, eu estava drenando toda a jovialidade daquele rapaz, pois a vida que queimava no incenso e se desfazia em sândalo era a sua. Aquela última varinha em minha mão queimou-me os dedos como se o incenso estivesse aceso e exalasse vergonha, delatando meus egoísmos. Por amor, ele me entregara sua vida tão nova e recente, disposto a renunciar seu duradouro futuro apenas para presentear minha existência com alguns anos menos sofridos, mesmo estando eu tão perto do fim. Quem era ele afinal? E por que me amaria? Logo eu que sempre fora medíocre e rancoroso, detestável homenzinho desde minha juventude. Sem receio algum, decidido, com minhas duas mãos parti em duas aquela fina esperança de juventude, meu corpo então viu-se repentinamente adoecido, preso à condição anterior. Porém meu coração, este parecia não ter se deixado abater pela quebra do feitiço, apesar do incenso despedaçado, meu peito continuou dotado de uma leveza tão tranquila como a fumaça do incenso e inquieto como o coração de meu subtraído amante.

EMERSON BRAGA
Enviado por EMERSON BRAGA em 09/03/2010
Código do texto: T2128721
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