Todos de olho

(a Cris Nicolotti)

Durante toda a sua vida, Gabriel aprendera a decifrar olhos. Aprendera que os olhos dizem mais eficientemente do que a boca. Tudo começou com sua mãe, que sempre lhe dizia que estava todo mundo olhando para ele porque ele chorava, ou porque ele brincava, ou porque ele se lambuzava com um picolé. À medida em que foi crescendo, foi aprendendo ele mesmo a entender que as pessoas o olhavam sempre, e que sempre lhe diziam mais claramente com olhares do que com palavras.

Logo na escola, muitos olhos lhe disseram muitas coisas. Em um primeiro dia de aula qualquer, por exemplo, ele foi à escola com uma roupa inédita e, já no corredor, alunos, professores e pedagogos disseram com os olhos:

- Isso não é roupa que se vista. - e ele nunca mais usou nenhuma roupa inédita.

Houve um episódio em que, após uma aula de educação física, ele terminou de tomar banho e saiu do banheiro descalço; foi calçar o tênis em um saguão onde havia vários de seus colegas reunidos, conversando e merendando, todos de banho tomado e tênis calçado. Eles todos disseram a ele, com os olhos:

- Aqui não é lugar de calçar tênis. - e ele nunca mais calçou tênis em um saguão.

Aos vinte anos de idade, Gabriel abdicou de comer pimentinha em função de olhares. Sempre tinha um saco de pimentinhas para comer enquanto esperava um ônibus. Era uma paixão que trazia consigo desde a infância; adorava o sabor, o ardido, a crocância; pegava pimentinha por pimentinha dentro do saco e levava à boca, mastigava com todo gosto e engolia. Um dia, num ponto de ônibus, logo que ele começou a comer, observou que tanto os transeuntes quantos os esperantes lhe diziam com os olhos:

- Você não tem mais idade para comer isso. - e ele nunca mais comeu pimentinha.

À medida em que Gabriel foi ficando mais velho, foi aprimorando mais seu entendimento de olhares. Certa feita, em um fim de semana, aproveitou que os filhos não tinham aula, que tanto ele quanto sua esposa, os dois estavam de folga do trabalho, e chamou todos para jantar fora. Foi naquela noite que ele segurou o garfo com a mão fechada, pela primeira e última vez. Os garçons, os outros fregueses do restaurante e sua família recriminaram o gesto, dizendo-lhe com os olhos:

- Isso não é jeito de segurar o garfo. - e ele nunca mais segurou um garfo com a mão fechada.

Até que chegou um dia em que ele voltava do trabalho cansado, exausto, cheio de preocupações. Estava sentado no último banco do fundo do ônibus. Era fim de tarde. Por não se sentir muito bem, não ter dormido direito na noite anterior, recostou na traseira do ônibus e cochilou por alguns minutos. Despertou com os chacoalhares da estrada, já na hora de descer; mal tomou consciência e já reparou os olhares dos outros passageiros a ele direcionados. Todos eles lhe diziam com os olhos que ali não era lugar de dormir.

Dessa vez, porém, ele não acatou; mais do que isso: tratou de responder a todos, não com os olhos, mas com a boca, e como nunca havia respondido a ninguém antes. Levantou, pediu ponto e falou bem alto:

- Vão se estourar nos infernos, rebanho de miséria! Vão tomar no cu vocês todos! - e foi embora.

Ninguém entendeu nada. Oxe, que cara doido! Levanta e sai chingando todo mundo assim, do nada. Deve ser falta de sexo ou anda trabalhando demais, tá precisando de umas férias. Espanto geral dentro do ônibus.

Daquele dia em diante, nenhum par de olhos mais lhe disse sequer um morfema. Parecia finalmente ter aprendido a emudecê-los e a ensurdecer a si próprio, essa habilidade tão mágica e rara com a qual muita gente sonha até hoje.