A TENDA

Quando criança, vivi em uma destas pequenas cidades onde quase nada acontece e os fatos mais banais são estranhamente transformados nas mais hilariantes sessões de conversa de comadres. Todas as noites, minha mãe e suas amigas reuniam-se na modesta calçada de minha casa e ficavam a tagarelar sobre os mesmos assuntos da véspera. Eu, metida sempre em pobre vestido de chita e tranças apertadas a esticarem-me a pele da face, sentava-me sobre o grosso tronco de jacarandá e me perdia sonolenta dentre a dança das línguas que rolava sobre os simplórios detalhes a respeito da vida das mulheres ausentes ao costumeiro sarau de frivolidades. Inutilmente, eu tentava compreender em meus oito anos de idade aquele tão medíocre contentamento, apesar de ainda não passar de uma menina com o cabelo trançado, eu já era capaz de sentir pena das mulheres ignorantes e alheias ao universo que as gerou e que move tudo que é feminino, era como se algo na escuridão silenciosa de meu quarto me revelasse coisas fantásticas sobre mim mesma, coisas que nenhuma daquelas pobres senhoras jamais experimentará durante toda uma vida de risos sem graça e repletos de cândida malícia.

Após as longas e despropositadas conversas, as velhas amigas despediam-se sem a necessidade de confirmar as devidas presenças no dia seguinte e depois e depois. Antes que minha mãe ordenasse que eu me recolhesse, eu suspirava cansada não só daquela noite, mas de todas elas, das passadas e das futuras. Rapidamente meus incansáveis olhos corriam o mundo na inútil busca de que algo se modificasse naquele cenário de moscas. Porém, a voz firme de minha mãe acabava rompendo o delicado fio de liberdade que me conduzia em segredo para avalons e xangrilás e, então, restava-me apenas a servil obrigação de deitar, mas o sonho nunca vinha. Em meu assombro, apenas me deleitavam os sinais que eu enxergava tendo os olhos bem abertos e o coração em brasa, como fantasmas sem cabeça, eles se arrastavam pelas paredes tentando dizer algo que a infância tornava ininteligível. Assim, eu sempre acabava por dormir traída. Uma leve mordida no lábio inferior. Uma perna fora da cama.

Em uma destas enfadonhas noites de troca de feitiços entre fadas gordas e habituadas ao próprio rancor, uma gritaria na rua tapou a boca das comadres faladeiras e, rapidamente, voltamos nossos olhares na direção do alarde, só então vimos o povaréu seguindo um grupo de ciganos que estava chegando à cidade. Antes que passassem por nós, mamãe sugeriu que entrássemos sob o pretexto de que eram todos bandidos e ladrões. Do portão de minha casa, pude devorá-los com meus olhos quase cegos pela monotonia, finalmente eles haviam chegado, era como se eu houvesse aguardado por eles minha vida inteira, eram lindos, mágicos, deuses que quase pereciam por eu jamais tê-los alimentado com o meu desejo de tragar suas almas.

A razão da balbúrdia das pessoas era uma das ciganas trazida na vanguarda do bando. Estranhamente, seu próprio povo a agredia com pedradas, enquanto rogavam terríveis maldições contra ela, apesar de serem todos eles ciganos. Mamãe tentou tapar meus ouvidos, mas recusei seu gesto com um inquieto balançar de cabeça, eu precisava ouvir a melodia daquelas vozes de fogo, impregnadas de palavras novas e atraentes. Procurei compreender a razão daquela lastimável tortura, o que fizera ela, que mal praticara, o que justificaria aquele espetáculo grotesco. Enquanto em seu corpo brotavam chagas penosas e de sua cabeça escorria o sangue que lhe banhava a face, a cigana mantinha-se impassível, de semblante desafiador, seu olhar trazia sentimentos que eu ainda não entendia, ao encará-la, experimentei sensações semelhantes às que me provocavam as imagens que eu via no breu de meu quarto, senti-me atraída por seu sangue, por sua dor, por seu olhar de navalha, dois gumes.

Acalmada a rua, minha mãe ordenou que eu entrasse enquanto se despedia de suas alarmadas amigas. Deitada em minha cama, pude ouvir mamãe a fazer mil recomendações a todas elas, cuidado, são um bando de cães. Quando a casa silenciou de vez, sentei-me sobre o colchão de estopas e esperei que os sinais surgissem, tatuando as paredes de meu quarto com novas revelações. Uma, duas, três horas passaram e nada, nada aconteceu. Senti-me desconfortável, abandonada, comprimida entre aquelas asfixiantes paredes, porém, um enigmático chamado transformado em suave brisa acariciou-me os cabelos e só então pude ver a janela de meu quarto entreaberta. Lá fora, a noite me esperava para o vertiginoso passeio, não ousei desobedecer a mãe de toda a maldade, pulei o peitoril, rodeei a casa e saltei a mureta do quintal.

Ofegante, corri desesperada na direção que os ciganos haviam tomado, eu precisava encontrá-los, exigiria minhas visões de volta. Terminado o percurso da rua, entrei na mata e segui a trilha de uma picada. Onde eles estão, devolvam minhas visões. Desorientada, caminhei instintivamente na direção do rio, mantive meus olhos fechados a fim de que galhos secos e traiçoeiros não tornassem física a cegueira que há tempos me atormentava.

A primeira visão que tive foi de vaga-lumes às margens do rio, petrificados no ar como tristes estátuas de luz. Ao acostumar-me ao negrume da noite, pude ver as tendas armadas em círculo e algumas pessoas ainda acordadas, confabulando, conspirando aos sussurros. Experimentei uma estonteante felicidade, mas contive a explosão sensorial para que nenhum deles adivinhasse minha presença, segurei meu peito com força e respirei todo o ar do planeta e, mesmo assim, quase desmaiara sem fôlego.

Aproximei-me do bando com meticuloso cuidado, pé ante pé, aproximei-me do aglomerado de barracas, porém, para minha surpresa, a mesma brisa que me arrancara de meu quarto fez com que eu olhasse na direção do leito do rio, onde encontrei aquela infeliz tenda abandonada a uma grande distância das outras. O resto do bando não me despertava interesse algum, o que me pertencia estava sob a lona daquela tenda excluída e insular. Caminhei apressadamente em busca da barraca iluminada por um pobre lampião artesanal e tomei-o em minhas mãos, iluminando o interior daquele sarcófago, antes que ele evaporasse no ar e dele não restassem sequer sombras. Encontrei tremendamente ferida, arquejante, prostrada sobre o chão, a cigana que há poucas horas havia sido apedrejada, iluminei sua face cadavérica e detive-me a dissecá-la como meus olhos outrora infantis de fato. Vê-la morta nem por instante despertou-me qualquer sentimento de piedade ou temor, na realidade, senti-me vingada. Retirei seus anéis, suas pulseiras e todos os outros acessórios de sua massacrada beleza e enfeitei-me com vaidade. Com um gesto simples, apaguei a chama do lampião e, de um salto fantasmagórico, os sinais que antes estampavam as paredes de meu quarto surgiram no interior da tenda e só então eu pude perceber sua enigmática mensagem. Aquela mulher havia sido assassinada pelos outros ciganos por ter ousado usurpar um lugar que não era seu.

Após tantas noites em claro de angustiosa espera, eu finalmente havia encontrado meu povo.

EMERSON BRAGA
Enviado por EMERSON BRAGA em 16/03/2010
Código do texto: T2141699
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