PUDORES

CONTO DEDICADO À MINHA BOA AMIGA E GRANDE ESCRITORA ANA MARIA MARUGGI, CUJAS PALAVRAS DE AFETO INPIRAREM-ME A ESCREVER ESTE CONTO MAIS DOTADO DE GRAÇA E LEVEZA, DIFERENTE DOS OUTROS, EM SUA GRANDE MAIORIA MELACÓLICOS E DENSOS, QUE JÁ POSTEI AQUI. UM BEIJO, MENINA LINDA!

Chegaram tarde à praia naquele dia em que mudariam para sempre a história da vida em sociedade no planeta.

Não havia mais lugar para instalarem o sombreiro que imitava a metade de uma laranja úmida e madura, a areia quente e branca já se encontrava devidamente invadida por famílias inteiras que disputavam um lugar ao sol a fim de perderem suas cores de concreto, adquirirem uma tonalidade de pele menos urbana e mais photoshop. Maldito Fusca 68, praguejou ele enquanto tentava enxergar as ondas através daquele mar de gente seminua tomando sorvete, correndo atrás dos filhos, exibindo corpos perfeitos ou nem tanto, nunca mais compro nada que tenha pertencido ao Raul, deveríamos ter vindo de ônibus. Ela, que naquele instante ainda sofria por não ter sido agraciada com a sorte de amar um homem que possuísse um carro possante, preferiu não se aventurar dentre os abrutalhados jogadores de frescobol e muito menos aproximar-se aos metros quadrados de areia destinados às loiras gostosas, saradas e bronzeadas, vamos para aquele cantinho ali, falou sem esperar pela resposta do namorado e já se pondo em deslocamento na direção de um quiosque abandonado, longe da multidão perturbadora, mas também do mar e de toda diversão.

Estenderam a toalha tamanho casal com motivos marinhos, que sempre tivera uma aspereza sobre a qual jamais comentaram, e sentaram-se lado a lado, ainda meio encabulados pelo constrangimento causado pelo temperamental veículo que havia empacado em plena Avenida Beira-mar, em um dia de domingo, ainda pego o Raul, como ele me vende uma lata-velha daquelas, ainda mudo de namorado, como ele pôde me trazer à praia de fusca. Passa protetor nas minhas costas, amor, disse ela entregando-lhe a bisnaga de creme na tentativa de quebrar o gelo, sendo prontamente atendida por aquele rapaz que apenas comprara o carro surrado do melhor amigo para não vê-la sendo esmagada dentre dois marmanjos, eles de sunguinha e ela de biquíni, em um ônibus suburbano qualquer. Permaneceram assim, em silêncio, a escutarem o som do vento e das ondas misturado ao barulho dos banhistas que riam como se o sol lhes fizesse cócegas, como se o dia seguinte não fosse uma segunda-feira. Silêncio. Pensamento. Risos. Ela tentou segurar os lábios com as duas mãos, mas a risada frouxa parecia bem mais determinada que seus delicados dedinhos, ele perguntou do que ela ria, ora do que, claro que era do fusca, então riu ele também, e se abraçaram e deitaram sobre a toalha de repente macia e se beijaram e se cheiraram e disseram gentis sacanagens e mordiscaram os lóbulos um do outro e deixaram o calor tomar conta de seus corpos, o sol a fazer-lhes cócegas também. O que você tá fazendo, disse ela fingindo um pudor que jamais tivera, aqui não, tá maluco, aqui não. Mas aquele calor, ai, aquele calor. Tudo bem, não foram tão longe, não fizeram o que realmente queriam fazer, mas, para aplacar a frustração, decidiram tirar as peças de banho que já eram tão mínimas e tomar banho de sol assim, nuzinhos, nuzinhos. Aqui ninguém nos vê e, se nos virem, que se danem, foi o sol, foi o sol, diremos.

Adormeceram. Tiveram tempo de sonhar? Foram acordados pela abordagem policial pouco gentil e pela pequena multidão que havia se formado ao redor dos dois. Não tô a fim de me vestir, eu também não, disseram, não sabiam por que haviam dito aquilo, não sabiam por que decidiram teimar em desobedecer à ordem pré-estabelecida, apenas tinham a certeza de que não iriam se vestir. Nuzinhos, nuzinhos. Primeiro tomaram um banho de areia dos bem polidos coturnos, depois foram erguidos à força pelos braços repressores dos dois policiais que precisavam com tremenda urgência provar diante dos curiosos que a farda pode mais que a nudez. Deixa o casal em paz, só podem estar drogados, não tão fazendo nada, dupla de imorais, a moça é até jeitosinha, prende logo esses dois, solta os dois ou vai ter porrada. Ninguém sabe de onde veio o coco que atingiu a nuca de um dos representantes da lei e da moral que veste a camisa do Estado, mas foi justamente aí onde a pancadaria generalizada começou, prós e contras se estapearam, divididos pela nudez inocente que ferira algo invisível. Antes que a briga terminasse na delegacia mais próxima, a imprensa já havia caído de pau sobre o tumulto, fotografando principalmente aquele Adão e aquela Eva tropicais, expulsos de seu pequeno paraíso construído com amor e calor atrás de um quiosque abandonado. Foram julgados, condenados e presos por atentado violento ao pudor. Mesmo incomunicáveis, cada um em seu próprio presídio, tiveram a mesma idéia, não usariam roupas no cárcere. Não deu outra, solitária neles.

Após aquele dia na praia, um movimento silencioso começou a invadir os orkuts, blogs, twitters, msns, salas de bate-papo, torpedos de celular e toda a parafernália da qual nos valemos hoje em dia para estabelecermos comunicação e acabou ganhando as ruas. Primeiramente foram alguns grupos solitários, mas em pouco tempo se tornaram uma massa de dezenas e depois de centenas de pessoas, invadindo shoppings, feiras, praças, lojas, churrascarias, igrejas e principalmente balneários e praias, todos do jeito que vieram ao mundo, nuzinhos, nuzinhos. A coisa tornou-se um fenômeno mundial, até mesmo os estudantes universitários de Seul começaram a frequentar suas faculdades trajando sumariamente nada, desafiando o exército que golpeava sem dó nem piedade inúmeros pintos e xoxotas com cassetetes, balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo. Muita gente em todo o mundo apanhou, foi xingada, presa, viraram motivo de várias documentários, talk e reality shows, estamparam as capas das revistas mais famosas do planeta, se transformaram em letras de música, teses de mestrado, tendência fashion e ponta de linha da nova esquerda.

Com o passar dos anos, a nudez acabou se tornando algo tão banal quanto ofender idosos ou molestar crianças, passara a ser tolerada como qualquer outro mal-estar da sociedade. Ronald Mcdonalds, Mickey Mouse, Tio Sam e muitos outros ditadores dos regimes que governam a vida das pessoas em todos os continentes passaram a aparecer em suas campanhas publicitárias assim, bem à vontade, nuzinhos, nuzinhos. Algumas minorias ortodoxas ainda resistiam e andavam vestidas, uns poucos da velha-guarda, alguns generais, uns religiosos e outros mais que sempre são os últimos a ceder às inevitáveis mudanças sociais que permeiam a história dos homens, apesar de insistirem em vestir a gandola ou o hábito, uma exceção lhes foi concedida por serem eles senis ou poderosos demais. Era uma época de glória, despida de velhos preconceitos, ninguém se incomodava mais em sentar no banco do ponto de ônibus ao lado um gordo bem adiposo, um emo todo carente ou uma bichinha muito afetada, contanto que estivessem devidamente despidos. Quem não andava nu, não encontrava emprego, não conseguia namorar e perdia o respeito da própria família, acabava na rua com os outros mendigos, que cometiam a indecência de vestirem-se com o descabido fim de protegerem-se do frio. O mundo nu derrubava menos árvores, cuidava de suas águas e poluía menos o ar. Era uma Nova Era, um Novo Tempo, judeus e palestinos, brasileiros e argentinos, nuzinhos, nuzinhos.

Hoje, ao ligar minha tevê simbiótica holográfica de realidade virtual interativa, deparei-me com um noticiário relatando o caso de um homem que havia ido à praia no começo desta manhã de paletó e gravata, mas que, felizmente, não teve tempo de se aproximar das crianças e assombrá-las com sua medonha tara de andar por aí assim, vestido, vestido. Sorte um grupo de policiais ter abordado o terrorista despudoradamente trajado para uma cerimônia de casamento de outros e primitivos tempos antes que ele traumatizasse alguns inocentes.

Não teve tempo de explicar que aquilo se tratava de um pacífico protesto. Apanhou. E feio.

EMERSON BRAGA
Enviado por EMERSON BRAGA em 23/03/2010
Código do texto: T2154686
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