O OUTRO

Quantas voltas o ponteiro dos segundos já havia dado naqueles últimos tortuosos quarenta minutos de desgostosa espera, o homem não sabia. Suas mãos ensopadas de suor subiam e desciam pela calça de linho, pensando ele que, secas as mãos, também estaria seca toda e qualquer lágrima. Não, não era mais um homem. Triste engano das palavras adotar o vocábulo homem para definir aquela criatura acuada entre a porta da rua e o relógio da sala. Sofria feito bicho preso em arapuca enquanto divertem-se crianças sádicas a cutucá-lo com varas e gravetos. Temia sentir medo mais que qualquer outra coisa, e naquele momento parecia estar ele sendo acometido por todas as fobias do mundo. A casa ao seu redor, as paredes firmes e inabaláveis, as grades nas janelas, as duas voltas na chave, o muro de três metros, a cerca elétrica, o alarme, enfim, os artefatos que ele adquirira com o único fim de evitar que intrusos invadissem sua casa e dela roubassem autonomia e paz não funcionavam no sentido anti-horário, não impediriam que dele as pessoas fugissem e, consequentemente, autonomia e paz também fossem da mesma forma destruídas.

Ela não sabia mais dobrar roupas. Vivera cinco anos completamente dedicados à arte de dobrar e passar roupas e, naquele instante em que havia decidido abandonar sua condição de esposa e a aliança jazia reluzente no fundo do vaso sanitário, ela mal conseguia organizar blusas, calcinhas e pensamentos dentro das duas malas abertas que mais pareciam bocas gigantescas que a engoliriam e a levariam para fora do matrimônio. Ela também sofria, mas seu sofrimento derivava mais da dor por sentir-se tranquila que do temor ao medo. Finalmente, experimentava a perigosa felicidade de não sentir mais dúvida e, como as certezas haviam povoado por completo seu coraçãozinho antes repleto destes pequenos sonhos de mulherzinha bem casada, ela se encontrava firme como uma rocha, não havia mais motivos que a prendessem àquele casamento, tão perfeito que extrapolava os significados orbitais da palavra tédio. Toda harmonia não passa de um infeliz equívoco quando o que nos leva a ela é a falta de coragem de nos enveredarmos por caminhos mais líquidos, por destinos voláteis, por fugazes e múltiplas vivências. Mas para ela, que naquele exercício de despedida sentia-se uma ex-esposa e não uma ex-mulher, ainda havia possibilidade de salvar-se, e sua salvação se encontrava do lado de fora daquela casa que ela nem sequer mais enxergava como sua. Não lavaria as louças antes de partir. Mas a cama que dividira por tantos anos, esta ela deixaria impecavelmente arrumada.

Não sabia identificar direito aquelas formas e cores que ficavam sobre o lugar onde dormia. Não entendia porque mantinham algo tão atraente distante do alcance de suas pequeninas mãos. Assim passava seus minutos de lazer a menina deitada em seu berço, tentando tocar o inatingível móbile de bichinhos de pelúcia. Mesmo antes de ter a oportunidade de balbuciar qualquer palavra, a pequena já estava a assimilar um dos primeiros aprendizados de sua vida, o de que o belo é inalcançável. Mesmo limitada por seus poucos meses de vida, a pequena sabia que algo estava errado. Sua mãe a amamentara antes mesmo que ela chorasse de fome, provou do leite agridoce e de imediato rejeitou a mama por estar ela satisfeita e a mãe não. Vez ou outra a menina assustava-se com um forte estalido que ela ainda não conseguia identificar como o som das portas de um guarda-roupa sendo esvaziado, o orquestrar da despedida, o móbile parecendo mais longe, sem formas ou cores.

Segredos em família são matas-virgens, apesar dos prováveis e irreparáveis danos, um dia são descobertos, explorados e devastados. Por três longos anos uma quarta pessoa habitara como um clandestino sua cama e seu amor sincero, surgira ele como uma resposta para todas as perguntas, porém, quanto mais respostas temos, mais questões são levantadas. A eterna dúvida é o preço pago pelos que ousam saber. Era impossível evitar a companhia daquele outro homem. Mesmo pondo em risco seu casamento, sua ética e sua moral diante do olhar do mundo – este olhar sempre passível de leviandades – era necessário que se experimentasse através do torto meio do adultério a liberdade e a libido que em casa jamais haviam sido experimentadas. Apesar da culpa sentida devida a traição praticada contra alguém que muito estimava e que estivera a seu lado durante inesquecíveis momentos de alegria e dor, seria suicídio abandonar aquele outro homem que trazia tanta verdade para dentro de seu universo de falsas posturas e maçantes etiquetas, que mascaravam de gelo e neve aquilo erroneamente chamado casamento feliz. E, agora que o outro havia sido descoberto, que a fidelidade havia sido posta em xeque devido às cartas escritas em caligrafia masculina, falando de esperança, de futura e ansiada união, de saudades dos beijos, dos corpos afetados pela irrepresável necessidade de estarem juntos, a separação seria inevitável. Cinco anos de uma convivência pacata, de uma amizade sincera, de um amor fraterno, findados por aquela revelação que magoara a ambos, mas que fora necessária a fim de que, a partir da dor, tivessem oportunidade autêntica de encontrar suas próprias identidades e delas nunca mais se perderem.

Quando o táxi chegou, ela pediu ao motorista que entrasse por um instante e ajudasse com as malas. O homem permaneceu com os olhos fixos nos desgovernados ponteiros onde os últimos grãos de areia, antes do nunca mais, se esgotavam. A mulher pegou sua filha nos braços e, antes de sair do quarto da pequena, deparou-se com o semblante marejado daquela esfinge à soleira da porta. Ele aproximou-se humilhado e beijou a testa da filha, quase chorando pelos anos de saudade que provavelmente passaria a sentir a partir daquele segundo. A mulher também chorou e, como se ansiasse pelo golpe de misericórdia das mãos daquele intolerável, mas estimado carrasco, perguntou:

_ Quem é ele? Eu o conheço?

O homem então dela afastou-se e sustentou o peso do corpo na proteção lateral do berço de sua filha. A mulher bateu a porta do quarto e, minutos depois, o som rouco do motor do táxi distanciou-se na direção do nunca mais. O homem fitou o móbile e tocou os bichinhos multicoloridos, com eles brincou por alguns instantes e depois sorriu. Não planejara amar seu amigo, a mágoa de todos deveria passar um dia, e o belo, finalmente, poderia enfim tornar-se uma palpável verdade.

EMERSON BRAGA
Enviado por EMERSON BRAGA em 23/03/2010
Reeditado em 03/10/2013
Código do texto: T2154697
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