A VIAGEM

Para Marcos, aquela manhã estava diferente, muito diferente e ele não entendia o que estava acontecendo. Só sentia que estava diferente.

Como de costume acordou cedo para “caçar um emprego”, afinal fazia isso todos os dias ao longo dos últimos dois anos. Sempre saia esperançoso com um possível emprego e voltava sempre desolado,cabisbaixo,sentindo-se um lixo. Nessa manhã não sentiu fome, portanto não tomou seu parco cafezinho preto, e nem poderia fazê-lo porque na sua casa não tinha mais pó de café nem o açúcar sequer ele tinha.

Mas aquela sensação estranha continuava a sentir. Era um misto de angustia, euforia, medo e também sentia frio apesar do dia ter amanhecido com um calor insuportável.

Já vestido e pronto para sair, sentiu forte desejo de ver sua esposa. Dirigiu-se ao quarto onde ela dormia ,beijou-a no rosto, acariciou seus cabelos e saiu apesar dela nem sequer esboçar qualquer reação com aquele gesto carinho. Ele estranhou sua atitude, pois nunca durante os dez anos que estavam casados ele fez um gesto desses. Isso porque achava que carinhos e palavras de amor não eram coisas de homem e que a mulher estava ali somente para servi-lo.

Marcos pegou sua velha pasta de documentos e saiu.

Chegando ao portão encontrou Dna. Célia, uma vinha muito simpática e prestativa, e que estava sempre pronta a ajudar a todos aqueles que batiam a sua porta, mas que ele considerava insuportável, achava que ela fazia tudo isso para aparecer. para se promover. Mas como aquela manhã estava diferente, sentiu vontade de cumprimentá-la, coisa que nunca fez nos muitos anos que vivia naquela casa. Ele a cumprimentou e estranhou porque ela não respondeu, insistiu novamente e ela nada, era como se ele não estivesse ali,era como se ela não o visse.

Dirigiu-se ao ponto de ônibus que ficava a quatro quadras de sua casa.

Marcos estava angustiado com aquela sensação estranha que sentia, mas seguiu seu caminho, encontrando várias pessoas. E o que mais estranhava é que todos o ignoravam.Sentia-se como se estivesse invisível.

Foi assim quando passou o padeiro, o leiteiro, o Sr. Miguel bicheiro, enfim, todos pareciam não vê-lo.

Durante o trajeto até o ponto de ônibus, começou a pensar, pensar e começou a relembrar alguns fatos de sua vida.

Lembrou-se, por exemplo, daqueles pobres coitados que tinha despedido da empresa que trabalhava quando era chefe de seção, lembrou-se também do João, seu antigo chefe e um grande amigo que tinha na empresa, mas que para tomar seu lugar de chefia armou-lhe uma armadilha para que ele perdesse o emprego e tomar o seu lugar.

Marcos lembrou-se que era capaz de tudo, até de prejudicar outros para subir na vida e isso hoje o incomodava.

Sobre-saltado com esses pensamentos que o atormentava nesse dia tão estranho, começou a se desesperar.

Mas sua consciência não o perdoava e continuava a lhe bombardear com fatos do passado, como por exemplo, o dia em que expulsou de casa sua filha de 16 anos grávida e por conta disso tornou-se prostituta no centro da cidade. Era uma menina prendada,muito meiga,mas devido a falta de informação ,entregou-se a um antigo namorado. E Marcos ficou ainda mais angustiado quando imaginou que se ele a tivesse apoiado talvez tivesse continuado os estudos, se formado ou talvez ter casado com um rapaz de bem, quem sabe.

E assim Marcos continuou a esperar o ônibus, naquele dia tão diferente, que apesar do sol, ele parecia ver tudo nublado, cinzento e o que era pior ninguém parecia vê-lo.

Seus pensamentos continuavam a recordar fatos e percebeu que até aquela data, nada fizera de bom nem para ele nem para os outros, e tudo que conseguira na vida foi às custas de falcatruas, de atos ilícitos, abuso de poder, falta de consideração com o semelhante, enfim... E, da mesma maneira que o dinheiro fácil veio ele fácil se foi, deixando-o sem nada e o que é pior, desempregado.

Punição divina? Talvez. Lei da causa e efeito? Quem sabe.

Diante desse conflito que o atingiu , não se conteve, entrou em desespero e caiu em prantos copiosamente.

Marcos ficou tão desesperado com a cobrança de sua consciência que, sem olhar o direito, pegou o primeiro ônibus que apareceu.

Ao subir no coletivo, notou algo estranho, mas a principio não deu importância. O motorista, de aspecto frio e macabro mal olhava para os lados e se limitava apenas em dirigir o coletivo.

O ônibus estava com quase todos os bancos ocupados e somente um lugar no banco traseiro estava livre.

Marcos então foi dirigindo para o assento vago percorrendo o corredor do ônibus e reparando a fisionomia dos demais passageiros. Era estranho mas ele notava que todos os passageiros tinham uma feição triste,sombria, com olhares fixos em ponto cego e que ninguém ao menos se importou com sua presença.

Apesar de se sentir incomodado com aquela situação, acomodou-se na cadeira vaga e o ônibus seguiu seu itinerário.

Mas muita coisa perturbava Marcos, aqueles pensamentos sobre suas atitudes do passado remoendo sua mente, a indiferença das pessoas que encontrara logo cedo, aquela manhã estranha, o ônibus, o motorista e os passageiros de aspectos sombrios que mais pareciam zumbis, enfim tudo era estranho e confuso.

Nesse momento, porém algo terrível e assustador tomou conta do seu ser ao sentir uma leve pressão no peito.

Lembrou-se que durante a noite tivera essa mesma dor e muito mais forte. Lembrou-se que tentara levantar e acordar sua esposa, mas não encontrou forças, não conseguia se mover ou ate mesmo falar porque a dor era insuportável. Também se lembrou que a dor foi tão intensa que sentiu suas energias se esvaírem ao ponto de perder os sentido.

Diante dessa lembrança o medo assumiu o controle e ai então percebeu tudo que estava acontecendo.Percebeu porque sua esposa não sentiu seus afagos pela manhã, porque as pessoas não o viam nem o ouviam, aquele ônibus macabro, porque aquela sensação de frio quando lá fora beirava os 35 graus,aquela névoa meio londrina ,apesar do sol escaldante ,enfim, descobriu o óbvio.

Aquele ônibus só tinha a viagem de ida. Os passageiros tinham o mesmo destino de Marcos , o outro lado da vida.

Marcos percebeu afinal que estava morto, vítima de um ataque cardíaco fulminante durante a noite...

Carlos Alberto Omena
Enviado por Carlos Alberto Omena em 24/03/2010
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