O tempo das coisas

Ela acordou com os raios de sol entrando pelas frestas da persiana. Espreguiçou-se lentamente na cama, seguindo um ritual particular: primeiro estica os pés como no balet, depois abre bastante os braços como o Cristo e por último se abraça com os joelhos unidos ao tronco.

Bocejou devagar, abriu os olhos novamente com dificuldade. Talvez tenha bebido demais ontem à noite. Senta-se na beirada da cama, a cabeça girando, observa seu quarto. Móveis brancos, limpos, novos, todos como se nunca tivessem sido usados. Repara no quadro no alto da cabeceira da cama que teima em pender para o lado esquerdo como se quisesse olhar pela janela a vista do 12º andar.

Percebe que tudo está como antes. Sem nenhum toque estranho. As sandálias jogadas na porta do banheiro, o batom vermelho aberto ameaçando cair da penteadeira, o roupão de seda displicentemente lançado na poltrona...Tudo como ela deixou.

Levantou-se e caminhou até o único móvel que destoava da decoração do cômodo, um guarda-roupas de madeira escura e aparência bem pesada e nova, como se tivesse sido feito há pouco tempo. Tocou nas portas grandes e maciças sem reentrâncias, lembrando o longo tempo que o possuía. Vinte anos! Uma vida inteira praticamente.

Leva o braço já cansado até os cabelos, tão cinzas quanto as persianas. Sempre quisera saber como ficaria após os quarenta anos...

Tocando o rosto percebe a diferença entre sua pele e a do guarda-roupas.

“Para quê tantas rugas, tantas marcas, tantos sulcos denunciando o tempo que temos?” -ela pensou.

Caminhou até a poltrona, recolheu o roupão, o vestiu e pôs a ordem nas coisas espalhadas no momento da embriagues.

“- Era disso que eu precisava!”.

O vinho a deixava livre, mente aberta, jovem de novo. Era como se a solidão não lhe pertencesse. Não possuía amigos íntimos. Sempre foi solitária, trabalhava melhor individualmente, sua profissão pedia isso. Adaptou-se a viver consigo mesma durante anos e agora apercebeu do que havia perdido.

“O tempo não cumpre por completo o seu dever. O tempo passa, amadurece as frutas, envelhece as pessoas... E o tempo das coisas?” – ela sempre se perguntava isso.

Tinha medo dos anos que iriam chegar. Destinou-se a comprar somente objetos que durassem menos que ela. A gastar com experiências efêmeras o dinheiro que havia ganhado durante anos.

Era uma mulher de meia idade que tinha medo. Talvez na juventude procurasse coisas sólidas, duráveis como o guarda-roupas.

Caminhou pelo quarto, abriu as janelas grandes de vidro, e lá em baixo a vida passava. As pessoas num vai e vem frenético não viam o que somente ela depois de anos podia ver. Ela ali parada na vista de um andar alto do prédio, concluiu que tudo foi em vão. Acumulou muito, gastou muito também e, para quê?

Se o tempo passa para nós... Ele sempre teima em passar...