APRENDIZ DE FETICHISTA

Meus queridos, desculpem-me a ausência, mas é que ando trabalhando muito e envolvido em alguns projetos literários. Talvez minhas aparecidas no Recanto fiquem momentaneamente escassas, mas, sempre que possível, estarei desnudando vossos textos! Forte abraço!

UMBERTO ERÊ

Troca de olhares, palavras em sintonia, pensamentos simbióticos, não, não, nada disso, sem clichês românticos, sem os banais lugares comuns que sempre encontramos expostos nas prateleiras da paixão. Tudo começou com um mamilo. O mesmo mamilo que nos sacia e primeira fome, o mesmo mamilo que ferimos a piercing na adolescência, o mesmo mamilo que nos arranca gemidos erógenos. O mesmo mamilo.

Não, não foi a chuva, foi ele, teso, em riste, ferindo a camiseta branca feito uma ameaçadora adaga. Chovia. E a chuva umedecia sem trégua aquela enfadonha segunda-feira repleta destas pequenas melancolias que se seguem desde o despertar até o voltar a adormecer sem que se saiba ao certo se o dia existira ou se não passara de um desmotivado sonho. Enquanto o ônibus tremulava inquieto devido ao asfalto que se desintegrava sob a precipitação da água a banhar crianças, lavar almas e arrasar barrancos, eu me distraía com a espera de chegar até meu ponto de descida. Minha mente seguia apática, em estado de pupa, sem pressa alguma, pois não havia tempo, apenas a espera enfadada, aborrecida, abatida.

Não sei bem como aconteceu, foi um destes eventos cósmicos que nos entorpecem e, passado o êxtase, nos deixam incapazes de discernir entre o que fora delírio ou real de fato. Como pudera o sol adentrar aquele ônibus em uma segunda-feira chuvosa? E as leis da física? E as verdades universais, imutáveis? Duas, três gotas d’água sobre As Cartas Portuguesas posto sobre meu colo fizeram com que eu erguesse meu semblante e me deparasse com um amanhecer íntimo, singular, que iluminou minhas desbotadas planícies, meus pouco viçosos vales, a despontar por detrás do véu de uma camiseta levemente umedecida, um pouco de suor, um pouco de chuva. Fui imediatamente arrebatado por aquela visão que me arrancara da letargia e me atirara em um frenesi de calor e luz, tão aconchegante, como se de repente eu houvesse retornado àquele lugar seguro que dizem lá vivemos antes de sermos concebidos.

A um olhar vulgar, aquela coisinha indecente e mimosa pareceria apenas um bico de peito, mas não era. Era mais. E, de repente, eu também não era apenas eu, eu era a água a refrescar aquele vívido mamilo, a camiseta branca a envolvê-lo de puro algodão, antes de mordiscar-lhe impetuosamente, antes de lamber-lhe as extremidades nervosas para que sua irradiação iluminasse o céu de minha boca.

Quanto tempo perdi com pernas, quanto tempo perdi com bundas. Não quero sequer lembrar-me das incontáveis vezes que me envolvi por alguém só por causa de suas mãos, seus pés, barriga, braços, nuca. Por toda a vida me dediquei com afinco a bocas, olhos e lóbulos auriculares, desperdicei minha saliva, que deveria envolver não outras línguas, mas apenas aquele mamilo. Aquele.

Quando desci em minha parada, a chuva já havia cessado, mas, desde então, o sol jamais voltou a alvorecer.

EMERSON BRAGA
Enviado por EMERSON BRAGA em 09/04/2010
Código do texto: T2186808
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