Relatos Rápidos Sobre a Clínica de Reabilitação

Internei-me por livre e espontânea vontade.

Em pleno gozo de minhas faculdades físicas e mentais cheguei à dura e amarga conclusão que na rua não conseguiria me livrar das drogas e dos problemas com os quais me debatia.

Dei baixa num dia cinza e gelado de junho. O ano não importa. Só sei dizer que foi a muito tempo atrás e que parece ser uma outra vida, hoje em dia. Imaginava que ia ficar hospedado num spa ou numa hospedaria de turismo. Ledo engano da minha parte. O pesadelo estava apenas começando. Cheguei lá pela hora do almoço. Cumprimentei os internos com a capacidade de quem havia passado a noite cheirando cinco gramas de pó e tomando anfetaminas e vodca para rebater. No dia anterior tinha feito todos os trâmites legais para que se concretizasse minha internação. Foi uma longa tarde e uma noite mais longa ainda. Pelo menos a comida da clínica era boa. Sete refeições por dia!

Fui apresentado ao grupo e ao regulamento do hospital. Como por todos os lugares que passei – seja escola, mosteiro ou trabalho – tínhamos mais deveres que direitos. Que dúvida. Deram-me um comprimido e uma injeção. Até hoje me pergunto o que era aquilo. Senti um torpor quase imediato. Agora eu era mais um proscrito no reino dos proscritos.

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Fui integrado ao grupo. E que grupo! Nunca tinha visto tantos loucos, malucos, retardados, limítrofes, coitados, pobres-diabos e cachorros sarnentos reunidos em um lugar só. Nem em shows de rock. Todos eles tinham problemas com álcool e com as drogas dos mais diversos tipos. Mas, analisando friamente, o único problema que tinham era de foro emocional. Falta de amor ou amor em excesso em casa. Auto-estima baixíssima. Mimos demais. Carência afetiva patologia e outros bichos. Loucura total.

Os profissionais (relutei em colocar entre aspas, então vai assim mesmo ) que nos tratavam não era muito diferentes. Um bando de idiotas arrogantes cagando regras nas nossas pobres cucas fundidas e entupindo todos de medicação. O problema do alcoolismo e da drogadição nesses lugares que nivelam todos por baixo. Uma vez que você faz uso de um baseadinho, de uma carreirinha de cocaína, de uma pedra de crack, de um antidepressivo qualquer, um drinque, você já era considerado portador de uma “doença progressiva e incurável”. Naqueles dias como hoje não havia uma literatura médica especifica para esse tipo de problema. Até quando vamos amargar essa vergonha?

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Naquela época cigarro era uma coisa muito mais aceita socialmente do que hoje em dia e podia fumar à vontade nas dependências do hospital, claro que em áreas ventiladas e restritas. Lá fui eu curtir meu filtro amarelo. Acendi, dei uma bela tragada e tentei relaxar. Se o estupro é eminente relaxe e goza, ditava o adágio popular. De repente um carinha sentou-se ao meu lado.

-Pode me dar um dos seus? Perguntou.

Sem olhar em seu rosto passei-lhe um cigarro e o isqueiro. Acendeu, tragou e aí quis saber:

- Porque você está aqui?

- Cocaína e anfetaminas. Respondi.

- Ora, isso não é nada. E começou a contar sua história de vida. Algo a ver com “ter começado a fumar maconha com treze anos e aos dezesseis já ter usado todas as drogas disponíveis e agora aos 32, depois de ter se envolvido com traficantes barras-pesadas estar dando um tempo aqui até as coisas esfriarem e que a esposa dessa vez estava fazendo pressão.”

Ao final mencionou ser seu nono internamento. Rato de clínica. Minha mão tremia no final dessa conversa.

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Cai nesse universo de loucura por puro vacilo. Já fumava meus baseadinhos e tomava meus porres fazia um bom tempo. Nunca tinha atrapalhado nada. Podia estudar, ler, trabalhar, escrever. O que viesse. Mas um casinho amoroso complicado e falta do que fazer me fez querer experimentar esse tal de pó. Fazia uso uma vez por semana. Deixava-me num bom estado de euforia e podia beber o que quisesse e quanto quisesse que o bagulho segurava a onda. Depois comecei a fazer uso da substância duas vezes por semana. Três vezes. Quatro vezes. Cinco vezes. Fiz essa merda durante três anos. Até o momento em que queria cheirar e me picar todo dia. Toda hora. E para conseguir dormir e tentar relaxar de tanta paranóia tomava anfetaminas. Esses baratos causavam o inverso em mim: ao invés de emagrecer violentamente, engordei como um porco de ceva. Por incrível que pareça quando comecei a cheirar cocaína abandonei a erva imediatamente. Que erro! Chegava a fazer apologia desta bosta aos meus amigos! Uma roubada em cima de outras roubadas. Quando a situação estava no fundo do poço a ponto de não conseguir honrar nenhum compromisso profissional ou pessoal e de minha conta bancária estar indo ladeira abaixo é que resolvi que somente internado numa instituição eu conseguiria me livrar desse vício. Claro que eu sabia que tinha ficado dependente. Ingenuidade não está entre minhas virtudes. Se fiz certo ou errado nem eu mesmo sei julgar. Aliás, porque o ser humano precisa faz julgamentos e ter preconceitos. Imperfeitos todos são. Você não?

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Rotina é uma coisa indispensável nesses lugares. Acordar seis e meia da manhã e arrumar sua cama para as sete horas tomar o café e descer para um cigarro e os remédios até as oito, horário em que começam as reuniões de grupo. Depois aturar a papagaiada de um babaca que acha que tem alguma experiência de vida só porque é psicoterapeuta. Até as onze da manhã porque os burros de carga aqui têm que arrumar o refeitório para ser servido o almoço. Repouso até a uma da tarde e aí um périplo de palestras desinteressantes até as cinco e meia. Como a ala em que eu estava internado era mista, as frangas eram trancadas às nove da noite para no dia seguinte começar tudo de novo. Eu iria ficar trinta dias nesse confinamento. Se eu não fizesse nenhuma bosta...

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Clínica não passa de mão de obra escrava. Nada além disso. Quem você acha que varre as folhas do pátio? Arrumam mesas e cadeiras no refeitório? Limpam os quartos (com dois pacientes), lavam banheiros, aparam a grama, limpam os cinzeiros, passam pano de chão nos corredores? Os doidinhos aqui. Óbvio. Só não vê quem não quer e os hipócritas que acham que isso é “terapia ocupacional”. Somente a comida é feita por profissionais. Mas depois de uma semana ou dez dias você não consegue mais nem sentir o cheiro. Só que se você parar de comer vai receber alimentação intravenosa que realmente não é uma boa. Ficar dois ou três dias na “Unidade de Desintoxicação” não é nenhum passeio no parque ou piquenique de família. O pesadelo em sua expressão máxima. Além do odioso “Grupo dos Oito”. Se você nunca ouviu falar vou tentar resumir em poucas palavras: oito internos louquinhos escolhidos a dedo pela administração da clínica para fazer a contenção dos demais... louquinhos da ala. Surreal o negócio, não acha? Surreal nada, meu caro amigo, pura verdade. Os rotos falando dos esfarrapados. Esse é mais ou menos o ambiente que se respira nesses lugares. Realmente, a paranóia, o delírio persecutório e outras loucuras coletivas são tão densos que se pode cortar com um machado. São nessas condições subumanas que os doutores querem curar nossa dependência. Conversa fiada! As recaídas são freqüentes e é muito comum um paciente ter alta e voltar para lá dez dias depois. Não foram um nem dois que vi acontecer isso...

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Cadeias, hospícios e tribunais têm muitas coisas em comum. Quando esses lugares estão muito silenciosos, com muita obediência, desconfie. Coisas terríveis estão para acontecer a qualquer momento. Em questão de horas ou até mesmo de minutos a tranqüilidade dá lugar para o pandemônio total.

Fazia uns doze dias que estava lá dentro quando na calada da noite fugiram quatro internos. Muito simples e rápida a ação. Arrombaram um portão que dava acesso aos muros do hospital que tinha – no mínimo – seis metros de altura e ganharam a rua. Nunca mais foram avistados. Resumo de todo esse tumulto: contagem diária como se fosse um presídio.

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Se você é burro ou preconceituoso vai achar que dentro das clínicas de reabilitação você vai encontrar toda sorte de loucos assassinos cruéis, drogados em pleno surto de abstinência suando em bicas, bandidos e traficantes perigosos e marginais de todas as ordens. Engano seu. Tem muita gente normal como eu e você lá dentro. Pode ter certeza disso. Boyzinhos de classe média alta que caíram em vício caro qualquer ou até mesmo porque foi encontrada uma prosaica “beata” de erva entre suas roupas ou pertences. Pais de família respeitáveis que abusam da bebida e com o passar do tempo adquirem um monte de problemas de saúde. Policiais de todas as jurisdições que estão jurados de morte pela bandidagem ou respondendo um inquérito administrativo qualquer. Senhoras de alta sociedade consumidoras de altas doses de antidepressivo ou pílulas para emagrecer que lhes caia nas mãos. Advogados, médicos, engenheiros que trabalham em grandes corporações e que com dinheiro têm acesso a toda sorte de bagulho ilegal e que faz a cabeça. Funcionários públicos mal intencionados que estão ali somente para tentar aposentar-se antes do tempo de serviço. Escritores malucos que deveriam ficar na sala acolchoada e entupidos de thorazine em tempo integral porque representam perigo para eles mesmo ou para as pessoas ao seu redor. E até patricinhas deslumbradas que parecem que estão indo ao shopping com suas roupinhas da moda e cigarros mentolados. Não existem clichês lá dentro. Ninguém pensa que é Napoleão ou Jesus ou Gandhi. Isso é coisa de cinema. Um dia posso te levar lá dentro para conferir.

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Uma hora ou outra, nesses lugares, o caldo desanda. É inevitável. Muita gente confinada e sem muita atividade. Volta e meia alguém entra em surto. Volta e meia o “G8” é acionado para tentar desvencilhar a mão de um interno do pescoço de uma psicóloga. Volta e meia os colegas trocam sopapos, pescoções, chutes e socos. Volta e meia um enfermeiro metido a bacana leva um pau de um paciente. Eu mesmo caí nessa última. Nem me lembro o que cara disse para mim. Sei que o pé voou em seu peito logo em seguida. O cara rolou a escada e quando foi se levantar já tomou um belo chute na cara. Um pênalti batido sem nenhuma categoria. E aí não levantou mais. A última coisa de que me lembro era de uma seringa na minha bunda e depois tudo ficou preto. Acordei três dias depois, na Unidade de Desintoxicação e com a calça jeans toda molhada. Urinei em mim mesmo enquanto estava apagado. E ainda levei quinze dias de gancho. Minha caminhada lá dentro começava a ficar bem mais difícil...

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Meus colegas de infortúnio não gostavam de mim porque diziam que eu era “arrogante”. Eles apenas confundiam “reserva” com “arrogância”. Não me misturava as sua conversas e brincadeiras. Preferia ficar sozinho, lendo e fumando meus cigarros do que bater papo. A conversa era tediosa. Só falavam em álcool, drogas e loucuras. Marcavam encontram para quando estivessem fora dali para agitar uma parada qualquer. Parecia um bando de homens sedentos que só falavam em água. Faziam piadas e trocadilhos com nomes de tóxicos. Uma noite um garoto se aproximou de mim e pediu para ver meu livro. Eu andava lendo o “Uivo” de Allen Ginsberg, mas não estava gostado muito. Ele pediu o livro emprestado e eu emprestei no ato. Afastei-me e voltei para meu quarto. O tédio de ter que conversar quase me enlouquecia. Nunca mais ele me devolveu o livro e muito menos eu cobrei.

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Se você diz que se sente entediado algum dia da sua vida você não sabe de nada. Só quem caiu atrás daqueles muros de pedra o verdadeiro significado dessa palavrinha. 27 dias de abstinência e confinamento realmente tinham conseguido me deixar entediado. É um rotina idiota e brutal e as seis horas da tarde, depois do jantar, o tédio e a solidão batem com mais força. Você fuma montes de cigarros e nada resolve. Você toma café e nada resolve. Você anda trinta vezes de um lugar para o outro e nada acontece. Você não consegue mais ler, ver TV, fazer palavras cruzadas, coçar o saco. Devido ao salitre colocado na comida seu desejo sexual desaparece em pouquíssimos dias. O relógio se move devagar. O tempo é uma lesma. As palestras são chatas, entediantes, carregadas de mágoa e preconceito. A segregação é moeda corrente. Bêbados com bêbados. Drogados com drogados. Alguns fazem planos para o futuro. Planos é modo de dizer. Estão apenas mentindo para os médicos e o que é pior, para si mesmo. Chega uma hora que nem os remédios fazem efeito. É nesse momento eu começava a ficar preocupado.

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O paradoxo mais gritante do mundo das drogas é que quando você interna eles querem combater sua dependência lhe dando mais drogas. A medicação não ajuda e os debates e reuniões de grupo muito menos. Todo drogadicto tem uma tendência natural a sentir que o mundo gira em torno de seu umbigo de suas necessidades. Eles acabam com qualquer coisa que esteja ao redor deles. Seja família, estudos ou trabalham. Troca toda sua vida por uma pedrinha de crack ou uma cafungada na branquinha. Não percebem – ou não querem perceber – que tudo gira em torno de droga. Um viciado à dez anos em qualquer substância química sabe que passou sete anos da sua vida esperando. Esperando o quê? Esperando qualquer coisa. A boca de fumo abrir, o patrãozinho chegar, esperando a hora certa de morder algum dinheiro de um familiar, amigo ou mero conhecido. Foi só no momento que comecei a perceber isso eu sentia que poderia receber alta.

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Você somente vai sair de uma clínica de reabilitação na hora em começar a falar exatamente as coisas que os psiquiatras, médicos, psicólogos, assistentes sociais e agentes de saúde, querem ouvir. Demora um bocado de tempo para sacar isso. Demorei quase trinta e cinco dias. Daí em diante comecei a usar desse ardil para ser contemplado com a liberdade. Nunca mais iria me meter com drogas. Só para nunca mais parar em tão deprimente lugar em tão medíocre companhia. Eu olhava os internos de longe e percebi que aquilo não era lugar para mim. A cocaína estava me fazendo perder meus valores. Não que eu quisesse ser um cidadão de bem, muito pelo contrário. Mas eu estava perdendo amigos fiéis, a música, a literatura, a escrita, meu jogo de cintura, meu suado dinheirinho e talvez o trampo que eu sempre odiei, mas ajudava no vinho, nos cigarros e no condomínio. Nas reuniões familiares agora eu era um eloqüente defensor da sobriedade a qualquer custo e sempre recitava a oração da serenidade antes de começar meu discurso. Olhava em volta e via pessoas com lágrimas nos olhos quando eu proferia certas palavras. Os médicos se entreolhavam misteriosamente. Fiz isso durante duas ou três reuniões e logo fui comunicado que minha alta seria agendada. Fui para meu quarto e chorei de felicidade. Eu iria voltar para a rua! Não podia acreditar. Tinha, inclusive, imaginado que eu ficaria minha vida toda ali apodrecendo sem nenhuma dignidade. Em três dias eu estaria em casa. Não tinha muito para o que voltar, mas eu queria voltar. Nem que fosse para trabalhar. Eu me sentia um trambolho, um traste inútil naquele hospital. Um escravo lavando banheiros e sendo pago em comida ruim e antidepressivos que poderia matar um sujeito menos resistente que eu. Saí num domingo gelado de agosto. Esse mês eu nunca mais esquecerei. Peguei a mochila com meus pertences, me despedi da turma e ganhei a rua. Fazia 45 cinco dias que eu não via nada além daquele hospital. Nunca a rua foi tão bonita. Caminhei, um pé na frente do outro. Encontrei um bar. Pedi uma carteira de cigarros e uma taça de vinho seco. Dei um bom gole. Acendi o cigarro. O atendente do balcão perguntou para mim:

- Quais são as novidades?

-Tudo velho. Respondi.

Matei o vinho. Paguei e comecei a andar em direção ao meu apartamento.

Boa sorte, meus amigos, se você está do lado de cá ou de lá do muro.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 26/04/2010
Código do texto: T2220768
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