Solidão

Olá, meu caro.

Anos, anos se passaram. Tempo bom aquele em que estávamos sempre juntos, compartilhando segredos, aventuras, paixões tão passageiras quanto um sopro do vento.

E, hoje, estou aqui e me sinto tão sozinho como um grão de areia no oceano. Os anos me mudaram, me mostraram um lado da vida até então desconhecido, que, se eu tivesse escolha, continuaria sem saber que existia. Lembra aquela alegria, aquela felicidade só de saber que estava vivo? Pois é, o tempo tirou de mim da forma mais dolorosa possível. Ah! Como é doce a ilusão da juventude. Ilusão que não me acompanha há muito, meu caro.

Bom, acho que, assim como eu, você também passou por diversas coisas, sejam elas boas ou ruins.

Devo lhe dizer que conheci o inferno, no sentido mais terrível da palavra, com dores, perdas, desilusões. Ah! Tantos momentos de solidão. E o pior tipo de solidão que existe: aquela em que existem pessoas por perto, mas você se sente perdido, confuso e só.

Bom, por enquanto, me resumirei a isso, mas, em breve, voltarei a lhe escrever, contando detalhes importantes de uma vida desimportante.

Abraços.

J.C

Ao terminar de escrever a carta, João Carlos se levantou de sua escrivaninha e foi em direção à janela. Ao olhar para o céu, com um aperto no peito, lembrou-se de sua juventude, de sua família e amigos, todos a sua volta, sorrindo e felizes. “O que a vida era capaz de fazer a um homem?”, pensava ele, em meio a seus devaneios.

Depois de tudo que passara, João tornou-se muito sozinho, um pouco melancólico e uma pessoa bem desconfiada. Levava dentro de si todas as lembranças bem vivas, fossem elas boas ou ruins, e as vivia a cada instante: o sofrimento de perder seu pai, sua mãe e sua irmã em um acidente, a dor por ter sido abandonado e traído quando mais precisou de alguém e a tristeza infinita que nada nem ninguém conseguia tirar de dentro dele.

Ele sempre se perguntava se alguma coisa valia a pena, se algo poderia compensar tudo aquilo, e sempre chegava a uma única conclusão: não, nada nunca irá amenizar a inquietude de sua alma.

Pelo menos, ele ficava feliz por seu irmão não estar no mesmo acidente que lhe custou parte de sua família. Ele estava longe, viajando, quando tudo aconteceu, então não guarda as piores lembranças, como o desespero de todos no momento que viram o que ia acontecer. Leva uma vida mais feliz e isso, de certa forma, era reconfortante para João. E ele sabia que tinha alguém com quem poderia contar em todos os momentos, pois seu irmão sempre o apoiou, embora a distância entre eles prejudicasse um pouco.

João saiu da janela e foi para a cozinha, bebeu um pouco de café e acendeu um cigarro. Há quanto tempo ele estava perdido? Há quanto tempo ele estava no escuro? Sentia-se tão só. Era sua própria companhia. Lágrimas brotavam em seus olhos enquanto esses pensamentos lhe vinham à cabeça.

Há uns anos, ele se considerava um homem de sorte, satisfeito e completo. Ele tinha uma esposa por quem era apaixonado e ambos tinham uma vida boa. João sorria e era feliz ao lado dela. Ela lhe dava forças, e ele havia suportado a perda de sua família graças ao apoio dela. Porém, tudo desabou quando, há um ano, ele descobriu a farsa: ela tinha outro e o enganara durante muito tempo. Quando descobriu, seu mundo pareceu ruir. Sua vida ficou vazia e ele se sentiu muito perdido. Nada do que ele fazia tinha sentido. Sentia-se estranho em todos os lugares, sentia que não fazia parte de nada, nem mesmo dos lugares que sempre freqüentou. Eles se separaram e, com ela, havia ido toda a paz e alegria dele. Tudo que havia acontecido desmoronou sobre ele, e ele não tinha mais ajuda. Seus problemas caíram como uma bomba em sua cabeça, ele havia perdido os parentes há pouco tempo e agora, para completar, descobriu a traição da mulher. Como poderia ficar bem?

Com esses problemas, João mudou de cidade. Embora soubesse que suas dores não seriam deixadas lá, achou que seria melhor tentar recomeçar.

Sonhos, pensamentos, fotos, tudo o assombrava. João trabalhava em uma grande empresa, mas estava de férias, e tudo parecia cada vez pior. A intensidade de seus sentimentos confusos parecia aumentar a cada dia.

Resolveu assistir televisão. Sentou-se no sofá e ligou. Passava por todos os canais e não encontrava nada: novela, desenho animado, programa de culinária, filme de terror. Desligou a TV. Sua vida já era um filme de terror, ele não precisava assistir para saber como era.

Enquanto estava sentado, pensamentos invadiram sua cabeça: todos foram embora, todos os que estão vivos, estão longe, e eu estou aqui.

Resolveu ligar para o irmão. Uma mulher atendeu, a esposa dele, e lhe disse que Roberto havia viajado e ela não sabia quando ele voltaria. Ele agradeceu e desligou o celular, mais triste.

Caminhou para o seu quarto, deitou-se na cama e pegou o livro que estava lendo. Abriu e voltou sua atenção para a leitura, mas não conseguiu se concentrar. Pensamentos soltos surgiam em sua mente. “Será que estou enlouquecendo?”, ele se perguntava enquanto palavras, frases, lembranças passavam em sua mente. João respirou fundo e foi até o banheiro. Ele estava com uma sensação estranha, como se alguém estivesse ali com ele. Ele sentia alguém perto, mas não havia ninguém. Olhou para o espelho e viu como havia envelhecido. A beleza de sua adolescência e a inocência de seu rosto na infância haviam sumido e dado lugar a um rosto maduro e triste. Lembrou-se de um poema de Cecília Meireles.

Olhando para o espelho, João começou a ver sua infância e adolescência: o sorriso puro, um olhar amedrontado, um choro desesperado, seu crescimento extremamente prazeroso, o primeiro beijo, a primeira namorada, o sorriso de seu pai, de sua mãe e de sua irmã. De repente, sem nenhum aviso, sentiu uma dor cortante no estômago, sua cabeça rodou e a última coisa que viu foi algo ao seu lado. João caiu no chão. Havia acabado de morrer.

Algum tempo depois, Roberto, irmão de João, estacionou seu carro na porta da casa do irmão, com um largo sorriso. Há muito tempo não se viam.

Roberto desceu do carro e tocou a campainha, com o peito cheio de ansiedade misturada com felicidade. Ao perceber a demora do irmão, ele tocou mais uma vez a campainha. “Ele deve estar dormindo”, pensou Roberto, sorrindo e pegou o seu celular para ligar para o irmão.

Depois de chamar várias vezes, Roberto começou a ficar preocupado. Tocou a campainha, dessa vez com mais insistência e começou a gritar o nome do irmão, cada vez mais nervoso.

Com medo de ter acontecido algo, ele resolveu chamar o corpo de bombeiros. O desespero começava a tomar conta dele.

Depois de vinte minutos, eles chegaram. Roberto contou o que havia acontecido e acrescentou que o irmão não costumava sair de casa.

Os bombeiros tocaram a campainha e chamaram João mais uma vez, mas logo decidiram arrombar a porta.

Roberto foi o primeiro a entrar na casa. Correndo e gritando o nome do irmão por todos os lados, Roberto chegou ao banheiro. Ao entrar, um frio aterrorizante passou pelo seu corpo e ele deu um grito tão alto que parecia cortar a alma daqueles que ouviram. Os quatro bombeiros subiram e se depararam com Roberto chorando e chamando o irmão.

Quando conseguiram retirar Roberto, começaram a examinar João e confirmaram que ele já estava morto desde antes da chegada deles ao local. Chamaram um perito.

Enquanto o perito avaliava o corpo de seu irmão, Roberto sentou na escrivaninha, chorando como uma criança, com um desespero de dar agonia.

Ao olhar para os papéis, Roberto reparou que havia algo escrito em uma folha, e viu que era uma carta. Ia pegar a folha quando um bombeiro entrou no quarto para informar que o corpo de seu irmão seria retirado do local naquele momento.

Roberto acompanhou todos até a porta, mas apenas seu corpo estava ali. Seus pensamentos estavam na folha que tinha acabado de ver na escrivaninha de seu irmão.

Ao voltar para o quarto, Roberto resolveu telefonar para sua mulher, com a intenção de informar o que acabara de acontecer. Com lágrimas caindo sem controle algum, ele contou tudo a ela, que disse que estava indo ao encontro do marido. Roberto agradeceu e desligou o telefone.

Sentou-se novamente na escrivaninha de seu irmão e voltou sua atenção para a carta. Começou a ler. A cada palavra lida, Roberto se sentia muito mal. Foi um choque tão grande ler aquilo! Ele nunca soube como seu irmão se sentia. Ele era sempre tão misterioso, mas, aparentemente, feliz. Nunca ouvira queixas de João, nunca soubera o quão atormentado era ele. Não, ele nunca mostrara a ninguém.

Aquilo deixou Roberto com uma sensação muito ruim, uma sensação de impotência, sensação de que ele fracassou com a única pessoa que restou para ele. A dor da perda se misturou ao sentimento de fracasso que ele sentia agora em relação a João. Começou a chorar e a desejar sua vida como era antigamente, com toda a sua família por perto, com todos sempre juntos e unidos.

Roberto respirou fundo e tentou se acalmar. De repente, começou a pensar na vida triste de seu solitário irmão, pensou no que acabara de descobrir sobre os verdadeiros sentimentos dele em relação à vida e começou a achar, embora isso não aliviasse em nada a sua dor, que o acontecido tinha sido o melhor para João. Com um sentimento de conforto, imaginou João reencontrando seu pai, sua mãe e sua irmã, e desejou profundamente que isso estivesse acontecendo naquele momento.

Roberto pensou no que viria pela frente e resolveu que era hora de sair dali e agir o que estava pendente.

Fechou todas as janelas, organizou algumas coisas e saiu, trancando a porta.

Entrou no carro e partiu, sabendo que deveria enfrentar tudo com força e coragem, mesmo que, por dentro, desejasse mesmo que alguém tivesse no seu lugar e resolvesse tudo por ele, e que ele estivesse longe daquilo, apenas sendo paparicado e amado, como em sua infância, durante os momentos difíceis.

Paula Vigneron Azevedo

Paula Vigneron
Enviado por Paula Vigneron em 26/04/2010
Reeditado em 16/06/2015
Código do texto: T2221559
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