Dor e luta

Ela estava parada ali há horas. Perdera a noção do tempo. Estava sozinha, isolada do mundo, imersa dentro de seus pensamentos e problemas. Ela queria fugir de tudo. Fugir para algum lugar onde nunca ninguém a encontrasse. Ela queria correr, queria que alguém lhe desse colo e lhe dissesse que nada poderia atingi-la e ela seria sempre feliz, mas sabia que aquilo era apenas vontade e era impossível.

- Que horas são? – perguntou Alice a uma senhora que passava. Sua voz estava embargada, ela não sabia se era pelo choro ou pelo tempo que ficara sem falar.

- São sete e vinte, minha querida. – respondeu a senhora, com um sorriso simpático.

- Obrigada. – Ela tentou um sorriso, mas não conseguiu. A senhora ficou olhando um instante para seu rosto jovem e triste, e logo partiu, com uma alegria que parecia estranha, pois Alice não sabia como era mais sentir aquilo.

Ela respirou fundo e ficou olhando quem estava ali na praça, naquele momento. Havia muita gente: crianças que brincavam, riam, andavam de bicicleta, que eram felizes; havia uns adolescentes andando de skate e conversando, um casal de namorados abraçado e outras pessoas, e ela estava ali há horas, alheia a tudo que acontecia a sua volta. Parecia ter estado sozinha durante aquele tempo todo, parecia que não fazia parte da vida que pulsava naquela praça.

Levantou e começou a caminhar. Sentiu suas pernas formigarem um pouco, mas não deu atenção a isso. Era tudo tão pequeno diante da vida, diante do que ela passava. Alice achava que a vida não passava de um jogo cruel, onde pessoas são tiradas de nós sem mais nem menos, sem que chegue alguém e diga: “Olha, hoje eu vou levá-la porque...”. Mas ela sabia que nada adiantaria, nenhum motivo tornaria aquilo mais leve, mais aceitável. Nada era aceitável.

Uma lágrima involuntária escapou de seus olhos e escorreu pela sua face. Alice a limpou, pois não queria que ninguém a visse chorando.

Enquanto caminhava, ela foi acometida por uma raiva tremenda, por um ódio anormal. Por que tinham feito isso com ela? Por que tinham levado a sua irmã, a sua companheira, para outro lugar?

- Ninguém pediu permissão, não podiam ter feito isso comigo. Maldito destino! – Alice chorava como uma criança e queria gritar, mas se controlava, falando baixo. Sabia que não adiantaria, que nada mudaria o que havia acontecido.

Caminhou por mais um tempo pelas ruas desertas, apenas com sua dor a acompanhando e a cortando por dentro.

Entrou na rua onde morava e avistou sua casa, mas não quis entrar. Naquele momento, queria ficar longe de tudo o que pudesse lembrar o que havia acontecido. Resolveu ir até um bar que havia ali perto e comprou uma lata de refrigerante. Avistou uma mesa vazia e se sentou ali.

Ana tinha 17 anos e morava com Alice. Desde pequenas, elas eram inseparáveis. Amigas para tudo, não havia um segredo de uma que a outra não soubesse.

Quando seus pais se separaram, elas se tornaram ainda mais amigas, mais unidas. Moravam com a mãe, mas, quando Alice tinha 14 anos e Ana tinha 7, sua mãe morreu e elas foram morar com o pai. Devido aos problemas que elas tinham com o pai, Alice e Ana foram embora de casa. Alice já havia se formado e trabalhava para manter a casa onde morava com a irmã. Elas eram tão felizes, tão amigas! Por que o destino havia pregado essa peça sem graça?

Uma lágrima caiu e Alice bebeu seu refrigerante.

Ana havia combinado de viajar com uns amigos, teria uma festa na casa de uma amiga, na praia. Ana foi com a aniversariante, Luísa, e seu pai, e iria ficar na casa dela. Ana estava muito feliz, pois havia ajudado a comprar tudo para a festa e ia um dia antes para ajudar nos preparativos.

Saiu de casa com um sorriso enorme, agitada e ansiosa para organizar tudo. Ela adorava preparar festas para os amigos, e aquela seria uma festa muito divertida, pois todos os amigos estariam lá.

Quando saíram, Alice lhe deu um abraço e desejou que a festa fosse boa. Ana entrou no carro, sorrindo, e deu um aceno para a irmã. A moça pegou suas coisas e saiu para o trabalho, feliz pela irmã.

Ao voltar do serviço, no final do dia, viu que tinham 20 ligações do celular da amiga de Ana, e entrou em desespero. Sabia que havia acontecido algo grave. Ligou para Luísa, tremendo.

- Luísa, o que aconteceu? – perguntou,desesperada.

- Ah, Alice... – Luísa começou a chorar e Alice ficou tonta, mas manteve a voz firme.

- O que houve? Fala agora! – ordenou, muito nervosa.

- Um acidente de carro. Estamos todos no hospital. Mas a Ana... – Luísa começou a chorar mais ainda. – A Ana está muito mal, Alice.

Alice sentiu suas pernas fraquejarem e puxou uma cadeira.

- Mal? Como assim? – perguntou, sem a menor vontade de ouvir a resposta. Luísa não conseguia falar, estava chorando muito. – Onde vocês estão? Eu vou encontrar vocês agora!

- Estamos na cidade, Alice, vem para cá. Estamos nesse hospital perto da casa de vocês, eu esqueci o nome dele...

- Estou indo.

Alice desligou o telefone, pegou a chave do carro e foi para o hospital.

Ao chegar lá, ligou para o celular de Luísa, que lhe disse o local em que estava. Alice foi até o quarto e abriu a porta. Quando entrou, viu que um médico estava conversando com o pai de Luísa, que tinha apenas alguns cortes nos braços e no rosto. Viu que Luísa também estava machucada, com o braço esquerdo engessado.

- A outra menina... é sua filha também? – perguntou o médico, com uma expressão indecifrável.

- Não, é amiga da minha filha. – respondeu

- Onde está a família dela?

- Eu sou a irmã. – respondeu Alice, tremendo.

O médico olhou Alice, e respirou fundo. Ela estava cada vez mais apavorada, não sabia o que estava havendo, não sabia de nada. Os olhares direcionados a ela estavam fazendo com que ela ficasse cada vez mais desesperada.

- O que está acontecendo, doutor? Pode me explicar? Cadê a Ana? Ela está bem? – ela disparou uma pergunta atrás da outra. Nem ela estava se entendendo mais.

- Olha, a sua irmã, no acidente, bateu a cabeça e sofreu um traumatismo craniano. Ela está em coma, não está bem.

Alice começou a chorar, desesperada. Mas como? Ela estava tão bem antes de sair, como havia acontecido aquilo? Não, não era possível... não pode, é impossível. “Ela está bem, não é, doutor? Isso não passa de um engano. Você se enganou. Ela está bem, está me esperando lá fora, não é? Eu sei, ela está louca para me contar as novidades da festa, ela adora isso, ela está me esperando...” Seus pensamentos ficaram cada vez mais confusos, e a última coisa que ela viu foi uma sombra negra que tomou conta do lugar.

- Alice, Alice? – chamava Luísa, nervosa.

- Mas o que...? – de repente, ela se lembrou de tudo o que estava acontecendo. Lembrou-se de tudo, enquanto, na verdade, queria mesmo esquecer tudo, queria que alguém lhe dissesse que tudo era mentira.

Levantou-se e olhou a sua volta. A mãe de Luísa também estava no quarto, olhando-a com uma piedade amedrontadora. Olhou mais uma vez e percebeu que o médico não estava mais lá.

- Onde está o médico?

- Ele foi ver a Ana... vieram chamá-lo aqui. – respondeu a mãe de Luísa, com lágrimas nos olhos.

Nesse momento, o médico entrou no quarto, mais uma vez com a expressão indecifrável, cada vez mais sombrio.

- Doutor, e a minha irmã?

- Bem, senhorita... – ele respirou fundo – Lamento, mas sua irmã não resistiu.

Alice perdeu o ar que lhe restava, e começou a chorar desesperadamente. “Lamento, mas sua irmã não resistiu”. Essas palavras latejavam em seus ouvidos, pareciam facas cortando a sua alma. “Como não? Ela tem que resistir, ela não pode ir embora, ninguém pode levá-la de mim. Não pode, não é pra ser assim, não é possível. Ninguém tem o direito de levá-la de mim. Sem minha permissão?” Em meio a pensamentos incontroláveis, Alice pegou sua bolsa e saiu andando pelas ruas.

Depois de organizar seus pensamentos, ela voltou ao hospital para agir o que deveria e resolveu que não haveria cerimônia de nada. Não queria prolongar sofrimento, queria que ficasse a lembrança de uma Ana alegre, como ela sempre fora.

Havia uma semana que isso acontecera, e, desde então, Alice perdeu o chão. Trabalhava por trabalhar, nada mais a interessava, ninguém fazia diferença. Uma semana. Alice não sabia dizer se a semana passara rapidamente ou se tinha demorado. Sabia apenas que a dor crescia mais a cada dia e nada era capaz de curá-la.

Pagou a latinha de refrigerante que tinha bebido e foi para casa. Ao entrar, seu coração ficou apertado e lágrimas brotaram em seus olhos, mas ela sabia que não poderia mais fugir, que teria que enfrentar a dura realidade. “Se a vida vai ter que ser assim, de agora em diante, é melhor eu me acostumar a ser sozinha, a me ter como companhia.”.

Acendeu a luz da sala e foi direto para o banheiro. Tomou um banho lento, demorado, sentindo cada gota d’água atingir seu corpo. Percebendo cada sensação, tentando distrair sua cabeça com qualquer coisa, com qualquer bobeira.

Ao terminar, foi para o seu quarto e mudou de roupa. Olhou pela janela, tomando consciência do mundo a sua volta, das pessoas que por ali andavam. Olhava para cada uma delas e não podia dizer absolutamente. Achou estranho olhá-las e nem desconfiar do que cada um levava dentro de si, das dores de cada um, sem saber nada sobre ninguém. Olhou o relógio, eram nove horas. Apagou as luzes e deitou. Resolveu que iria tentar melhorar, resolveu que ia viver cada momento como se fosse o último, mesmo com toda a dor e toda a saudade que nunca abandonariam sua alma.

Paula Vigneron

Paula Vigneron
Enviado por Paula Vigneron em 26/04/2010
Reeditado em 25/07/2012
Código do texto: T2221563
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