Alma Partida

- Ele não vai voltar! – João gritou, nervoso. – Parece que você tem alguma esperança. Você sabe que não há volta!

- Eu sei! Mas eu preciso vê-lo, pelo menos mais uma vez, João. Você deveria entender isso, já que diz que sente o mesmo que eu. – disse Simone, com lágrimas nos olhos.

Ao dizer essas palavras, ela se dirigiu para o quarto, sentindo seu coração cada vez mais despedaçado. Não adianta, ninguém nunca conseguiria entendê-la. Nunca conseguiriam saber o que ela sentia por dentro, a dor que estava corroendo toda a sua alma, todo o seu ser.

- Abre essa porta! Não adianta ficar assim, você sabe. – disse João, tentando manter a calma.

- E como você queria que eu ficasse? Como você, que parece não sentir metade do que diz? Faz um favor? Some daqui! – gritou Simone, chorando.

João, percebendo que não tinha jeito, resolveu sair e deixar Simone se acalmar. Sentou no sofá e olhou a foto que tava ao lado. Sentiu uma pontada no coração. Doía tanto! Era cruel o modo como a vida conduzira seu destino e o de sua família. Por que certas coisas acontecem? E a lei natural das coisas? Agora ele sabia que essa lei ou não existia ou, assim como muitas outras, também não era cumprida

Olhou a foto por um tempo. Nela estava ele, sua esposa e seu filho Pedro, ainda pequeno. Dava tanta saudade olhá-la! “Por quê? Por quê?”, ele se perguntava sempre. “Vida maldita! Como eu a odeio!”

Colocou o retrato na mesa e deitou no sofá, suspirando.

“Onde as coisas mudaram de rumo? Onde a gente perdeu a alegria? Por que a vida nos deu essa rasteira? Ah, eu sinto tanta saudade da minha vida, aquela normal, onde todos estavam juntos e felizes. Ah, como dói.” Uma lágrima caiu sem que João pudesse impedir. Ele fechou os olhos e quis dormir, desejando que seus fantasmas não o perturbassem mais.

No quarto, Simone chorava, cada vez mais inconformada, desejando que sua vida acabasse junto com a da pessoa mais importante para ela. Para que viver? “É inútil querer viver com a alma amputada. Não há sentido.”

Parte de sua alma morrera naquele dia, no pior dia de sua vida. Pedro, seu filho, havia levado a maior parte dela, havia levado toda a sua alegria com ele, quando, por uma fatalidade, morreu.

Naquele dia, Simone havia preparado tudo direitinho. Ela desejava que seus planos dessem certo. Preparara com todo amor e carinho. Em sua cabeça, os planos já estavam traçados: levaria Pedro ao colégio e prepararia o almoço, para que, quando Pedro e João chegassem, ela já estar com tudo organizado para eles viajarem, pois teria um longo feriado naquela semana. Mas algo desandara, alguém havia mexido no seu destino, alguém havia atrapalhado seus planos. “Maldito destino!” pensou Simone, em meio as suas lembranças dolorosas.

Pouco depois de deixar Pedro na escola, ela recebeu um telefonema da diretora.

- Eu poderia falar com Simone, mãe do Pedro? – perguntara a voz, que era estranha, o que preocupou Simone.

- É ela. Quem está falando? – perguntou, começando a ficar nervosa.

- Bom dia. Aqui é da escola do seu filho. Tivemos um pequeno problema com ele.

- O que aconteceu com o meu filho? – perguntou, sentindo um aperto estranho no peito

- Ele se sentiu mal e tivemos que levá-lo ao hospital, ao lado da escola, já que não havia ninguém especializado no local para atender o seu filho. – falou a diretora. Simone ouviu um suspiro e isso a preocupou, mas ela não queria perguntar mais nada, ela queria ver seu filho.

- Ok, eu estou indo para lá agora. – e desligou o telefone, tão atordoada que nem se despediu.

No meio do caminho, sentia uma sensação muito ruim, sabia que algo de mais grave estava acontecendo. Tinha certeza. “Sexto de sentido de mãe sempre me apavorou.”, pensou, cada vez mais nervosa.

Ao chegar ao hospital, ligou para João, dizendo o que acontecera. Ele pediu que ela o esperasse para que fossem ver o filho juntos, pois ele estava bem perto do hospital.

Pouco tempo depois, João chegou, nervoso e impaciente.

- Poderia me dizer em qual quarto está Pedro Souza? – perguntou a mãe, tentando manter a calma.

- Só um minuto, senhora. – respondeu a secretária, levantando e indo para o final do corredor. Aquela atitude deixara Simone e João extremamente nervosos. Sabiam que estava acontecendo algo muito estranho. A situação não estava tão calma quanto a diretora tentara mostrar com aquela tranqüilidade na voz.

Algum tempo depois, a secretária voltou com uma médica ao seu lado. Simone sentiu sua cabeça rodar. Agora tinha certeza que havia acontecido algo.

- O que houve com meu filho? – perguntou João, antes que a moça chegasse perto dele e da esposa.

- Poderíamos conversar na minha sala? – perguntou a moça, de forma educada

João e Simone acompanharam a médica até uma sala no final do corredor. Com um olhar perdido, eles se sentaram.

- Bem, o filho de vocês está aqui e está sendo bem tratado. Mas infelizmente a situação não é boa.

- O que está havendo com ele? – perguntou João, alterando a voz.

- Disseram-me que ele se sentiu um pouco mal. Agora ele não está nada bem... não estou entendendo nada. A senhora pode me explicar? – pediu Simone, educadamente e cada vez mais confusa.

- O seu filho tem um sério problema no coração. – nesse momento, Simone e João fizeram cara de espanto e começaram a ficar mais desesperados. – Quando o seu filho chegou aqui, ele estava desmaiado. Não sabíamos o que era e fizemos os exames e um deles acusou um grave problema cardíaco e... – nesse ponto, a médica parou e olhou para os pais de Pedro.

- Doutora, continua. Você está me deixando cada vez mais aflita. – pediu Simone, começando a chorar.

- E, infelizmente, o seu filho está em coma. – nesse momento, Simone gritou de uma forma tão desesperada que a médica ficou com os olhos cheios d’água.

João olhava da médica para Simone, com uma cara de quem não havia entendido o que acabara de ser revelado. Ele parecia uma criança perdida, e era assim que ele se sentia: como uma criança que acabara de ouvir algo que não tinha a capacidade de entender.

Passou algum tempo até que algum dos três voltasse a falar

- Doutora, e como ele está agora? – perguntou Simone, tentando manter a voz firme.

- Bom, ele está na UTI e não sabemos o que pode acontecer. Só posso dizer que a situação dele não é estável e não é nada boa.

- Ele pode receber visita? – perguntou João, que parecia estar alheio a tudo.

- Posso abrir uma exceção para vocês. Esperem um pouco, por favor. – falou a médica, saindo da sala.

João e Simone ficaram em silêncio. Um silêncio que falava mais que mil palavras juntas. Eles apenas se olhavam, compartilhando uma dor terrível. Ambos choravam discretamente.

A doutora voltou e chamou os dois para irem ver o filho, mas apenas por pouco tempo, pois as visitas estavam proibidas.

Ambos estavam nervosos. João tentava conservar uma expressão dura, enquanto Simone chorava, embora estivesse um pouco mais calma, sem se importar com quem passava.

Ao entrarem, qualquer traço de calma se desfez. Ambos choravam como crianças. A médica retirou-se e disse que voltaria logo. Eles chegaram perto do filho inconsciente. Como aquilo era ruim! Ambos desejaram estar no lugar do filho. Um sentimento de desespero extremo tomou conta deles, eles queriam fugir, queriam que alguém dissesse que aquilo não passava de um pesadelo, de um terrível sonho, e que já estava na hora de acordar e ver que a vida continuava como antes. Mas não era assim. Aquilo era realmente um pesadelo, mas um pesadelo da vida real.

- Filho, filho, você consegue me ouvir? – perguntou Simone, baixinho.

- Ele não ouve, Simone. Não é possível. Você sabe.

- Não custa tentar.

Eles ficaram olhando o filho, fazendo carinho em sua cabeça. Desejavam fugir da realidade, mas não era mais possível. A realidade se mostrava cada vez mais dura e cruel e não havia como fugir.

A médica entrou no quarto, fazendo com que os dois despertassem de seus pensamentos.

- Está na hora de sair. Vocês não podem mais ficar aqui. – disse a médica, delicadamente

Ambos deram um beijo no filho e saíram, com um sentimento de tristeza maior que tudo.

Antes de fechar a porta, foi possível ouvir o barulho do aparelho que estava ligado ao coração de Pedro. O barulho que indicou o fim da felicidade e da vontade de viver de Simone. O barulho que indicou o fim do mundo para João.

A médica, que também ouviu, voltou correndo para ver o que havia acontecido. Dois enfermeiros estavam por perto e impediram a entrada de Simone e João.

Sem perceber o que estava fazendo, João empurrou o enfermeiro e entrou na UTI, vendo a pior cena da vida dele: o fim de todos os seus sonhos, de um amor, da grande paixão da sua vida. Enquanto via a médica cobrindo o corpo de seu filho, João lembrou-se de seu primeiro passo, do seu primeiro sorriso, do primeiro “papá” dito por aquela doce voz, de um doce beijo e de um gesto de carinho. Lembrou de tudo o que haviam passado juntos. Lembrou também que, de agora em diante, sua vida não tinha mais sentido, seu mundo havia caído, não havia mais chão sob ele.

O enfermeiro tirou João de dentro da UTI, praticamente o arrastando.

- Cadê Simone? – perguntou ele, de forma brusca.

- Não sei. – respondeu o enfermeiro. – Quando você entrou, ela correu e sumiu.

João saiu para procurar a esposa e a encontrou do lado de fora do hospital, em um canto, chorando. Decidiu deixá-la naquele momento, decidiu não a atrapalhar naquele momento.

Simone estava chorando, não acreditava no que haviam feito com ela. “O que eu fiz para merecer isso? Por que, maldita vida, você me tirou a coisa mais valiosa do mundo?” Enquanto fazia essas perguntas, ela chorava de forma desesperadora, mas as lágrimas não conseguiam mostrar nem metade do que se passava dentro dela, da dor que cortava a sua alma.

Ela, mãe, que esperou seu filho por nove meses, que o segurou pela primeira vez com lágrimas nos olhos, que cuidou dele, que abriu mão de toda a sua vida para isso. Aquele amor que nunca ninguém conseguiria compreender. Em sua cabeça, estava passando um filme: o nascimento, o choro, o sorriso, os brinquedos, o crescimento, o jeito com que ele a chamava, o primeiro cachorro, o que ele gostava de comer, seu último aniversário, de 15 anos, onde ele aproveitara tudo o que tinha direito, o jeito com que ele dizia:” Ah, mãe, não esquenta, tá? Eu sei me cuidar.”. O jeito malandro de seu sorriso ao dizer essas palavras.

Sem aviso, Simone deu um grito extremamente alto, querendo que toda aquela dor pudesse sair de sua alma.

Ao ouvir o grito, João foi ao seu encontro e a abraçou. Queria dizer tantas coisas a ela. Queria dizer que a amava, que ele sempre estaria ali. Mas nada saía.

Dando um suspiro, Simone fechou os olhos, desejando do fundo de sua alma esquecer aquelas lembranças, esquecer o que passara. Ainda chorando, foi ao banheiro e lavou o rosto. Ela sabia que estava errando muito em relação ao marido, pois ele sempre estava por perto enquanto ela precisou. Mas parecia que ninguém entendia essa necessidade de querer ver o filho mais uma vez, de dar mais um abraço e um beijo, de dizer que o amava com todo o amor do mundo.

Voltou para o quarto, sentou-se um pouco na cama, respirando profundamente, tentando colocar a cabeça no lugar. Depois de ficar um pouco mais calma, foi até a sala e olhou, por instantes, João dormindo. Sentiu-se mal por ter brigado com ele, por ter falado coisas que não deveria, que ela mesma sabia que não era a realidade. Seu marido sentia o mesmo que ela, não era justo ela fazer isso.

- João, João. – ela o chamava, de forma delicada

Ele se sentou e a olhou por um tempo.

- Está mais calma? – perguntou.

- Estou. Desculpe-me. Eu não estava bem, eu fui irracional. Nada do que eu disse representa a verdade. Você não merece isso de mim, você sempre está ao meu lado, mesmo quando nem você tem mais forças. – disse ela, com toda a sinceridade.

- Tudo bem, eu entendo. Eu sei o que você sente, eu sei exatamente, porque eu também sinto. Agora vamos esquecer isso? Não é a primeira, nem é a última vez. Todas as suas vontades, em relação ao nosso filho, também são minhas, mas são coisas impossíveis.

- Eu sei, João. Vamos esquecer e vamos dormir. Teremos que nos unir cada vez mais a cada dia, eu preciso de você. – falou Simone, com lágrimas nos olhos.

- Os dias, desde aquele dia terrível, não foram fáceis. Nenhum dia será fácil, mas devemos ficar juntos. – João levantou do sofá e deu a mão a sua esposa.

Antes de apagar a luz, olhou a foto dos três, que estava ao lado do sofá. O sorriso de seu filho não seria mais visto, mas também nunca seria esquecido.

Paula Vigneron
Enviado por Paula Vigneron em 11/05/2010
Reeditado em 25/07/2012
Código do texto: T2251189
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