Blues for Gabe

E ela que nem gostava de se vestir de amarelo. Quando o dia se recolhe, vem aquela quietude e, naqueles minutos cambaleantes e assustadores que precedem o adormecer, é impossível não sentir que o rio abre seus braços vertiginosamente, marulhando baixinho e grave, dividindo-se em dois; e as duas correntes, a do leste e do oeste, seguem para o sul, solitárias e plácidas, como se preparassem-se para banhar as pernas pudicas de moçoilas a lavarem em suas tábuas. Vão através de tortuosos vales e declives, irrigando terras áridas, inférteis e porosas, encontrando-se com outras águas, de outras fontes, de outras naturezas; descobrindo, encobrindo e deformando as ruínas que já viram tantos outros rios passarem. Até mesmo mares. Os pequenos caudais agora vão perdendo a força no meio de seus percursos por onde trafegam barquinhos a motor em cujos conveses, à luz dos lampiões, resplandecem as faces desencantadas das meninas ribeirinhas do Zé Mauro que se vestem da cor da flor do Ipê para serem devidamente distinguidas: servidoras do rio, prostitutas e nada mais. Os regatos perpassam lentos pelos pés desta bucólica montanha adunca, inundando as crateras feridas e desviando-se dos montículos de uma terra que tardiamente adolesce; vão se enroscando na vegetação imperfeita em ambos os lados, penetrando e fazendo transbordar este pântano avermelhado sob a luz do entardecer para, enfim, reencontrarem-se após tamanha jornada, tornando-se novamente um só rio de águas piscosas de melancolia e amansadas pelos ventos da conformação e do silêncio; e, mesmo assim, o rio seguirá fraco, porém persistente, até pender, em forma de uma acabadiça e bolhante cachoeira, na boca do abismo de meu queixo, hesitando entre saltar ou ser secado pela fronha florida do travesseiro.

... E nossas vozes lamuriosas se misturavam na escuridão, cantando o blues febril dos escravos que suam suas almas ao escavar as terras deste maldito senhorio. Éramos trabalhadores malemolentes a serviço do... Desse God damm Love. Nunca vimos a cara dele, mas bem que sentimos suas chicotadas e achincalhes.

Tom Waits, aquele que engoliu o rabecão, me faz lembrar que o mundo permanece girando, mas, ultimamente, a cada volta que ele dá, quando chega à noite, eu me encontro na mesma curva, na mesma cama, vendo os mesmos rios de lágrimas se cruzarem à luz do abajur, lembrando daquela outra cama, onde ela, nua, iluminada pelo fulgor de velinhas aromáticas, dizia: “Não gosto de me vestir de amarelo”, como se não soubesse que, naquele mesmo instante, o fogo já a vestia assim.

Hoje, só queria clamar “Gabe” enquanto todos calam e nem mesmo as gaitas farfalham. Só queria saber se é ela mesma que me espia pelo espelho do outro lado da escuridão. Só queria adorar sua face de boneca, adormecida e palpitante em sonhos. Só queria lhe desejar boa-noite. Só queria falar essas coisinhas simples e, então, dormir ou morrer, tanto faz. Mas a chuva volta a estourar sobre meu telhado. Uma tempestade viril rompe o som de minha voz.

Nú e irracional, subitamente me estendo na parede rústica, sentindo o frio dos tijolos perfurar meu peito quente e suado, executando o balé da solidão. Meu olhar de piedade e cansaço se recolhe lentamente e sinto em mim uma leve ausência, uma desolação suave como um arrepio na nuca, um ímpeto que, como o sopro que leva longe a pena do travesseiro, me joga aos braços dela que hoje vibra entre as ondas etéreas, escondida atrás da luz e do tempo, pulsando em meus neurônios e mediando os conflitos entre os átomos. Viagem leve e fugaz. "Mas não há ninguém. Nunca houve." - Diz a vidraça, salpicada de gotas cintilantes.

Antes de depositar meu porto seguro e todas minhas esperanças dentro de um baú e enterrá-lo no fundo das poças celestiais de seus olhinhos, acho que nunca disse a ela, mas costumava ser uma dessas pessoas que preferiram a solidão e a confortante sensação de sentir-se miserável, a chorar por si com uma guitarra no braço e um copo de Bourbon na mão, consolando-me com as palavras que somente eu (e todos aqueles negros safados) saberia proferir para mim contra os males que eu mesmo me permitia. Era fácil viver nessa época. Mas sou sobra confusa do puritanismo e minhas roupas ainda rescendiam a coral de igreja aos domingos: pisei em sua alma e pedi perdão a Deus. Éramos tão parecidos, né? Praticamente iguais. Respirei tanto sua vida que a mesma se impregnou em meus ossos e se tornou a minha própria de modo que, hoje, sou uma dessas pessoas que... Nem sequer pode olhar-se no espelho, pois, diante do reflexo, o que sobra de mim mesmo é somente um par de riachos: regatos de dor onde me batizo diariamente para ter meus pecados contra ela expiados.

Sabe, desde que Gabe se foi, não raro, minha mente projeta um sonho: há sempre, de início, uma situação tenebrosa como, sei lá, uma morte. E, finalmente, quando a tormenta se vai, no caminho para casa, fumando pall mall com mãos trêmulas e cantando spirituals, numa longa estrada de terra margeada por canaviais, me lembro que há, em alguma das estantes de livros de minha velha biblioteca, um pequeno livro de capa dura e folhas envelhecidas; uma espécie de promessa de livro sagrado, dono de uma beleza imensurável, como se tudo de mais lindo e perfeito já escrito pelo homem tivesse sido liquefeito, misturado num cadinho e de lá nascesse a tinta que grafaria tais páginas carcomidas. O sonho é tão real que toda vez acordo com a certeza de que o livro estará lá e que me bastará ler um de seus pequenos capítulos para sentir meu corpo ser enxugado, minhas culpas redimidas e meus olhos revividos. Mas ele não está - O livro perfeito é o amor que se vai na calada da noite sem deixar vestígios, platonizando-se ao som do canto funéreo dos mochos - Não está porque, no sonho, ele tinha em sua capa cor de ovo, em letras garrafais, o nome “Gabe”... Lamentavelmente (e novamente) ela, que não gostava de se vestir de amarelo.

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(Texto livremente inspirado nas paisagens bucólicas de Flannery O'Connor, Coen Bros., Zé Mauro de Vasconcelos e no universo das canções de Skip James e Tom Waits)

Otto M
Enviado por Otto M em 22/05/2010
Reeditado em 04/06/2010
Código do texto: T2272771
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