Viação Gabriela

Certa vez, num ônibus que vinha de Olivença, Júlio e Ana, casal de namorados, jovens, estudantes, apaixonados, deram um beijo selinho.

Cláudia, romântica, que adora livros e filmes de amor, presenciou a cena e ficou comovida. Quando chegou em casa, comentou o que tinha visto com Fernanda, sua prima, nada romântica e muito zombeteira. Fernanda apenas riu.

Uma semana depois, Cláudia e Fernanda estavam sentadas no fundo de um ônibus HERNANI DE SÁ–IGUAPE quando Júlio entrou. Cláudia comentou com Fernanda:

– Foi aquele rapaz, Fernanda, que eu vi beijando no ônibus aquele dia. Que beijo apaixonado!

Fernanda apenas disse, zombando:

– O amor é lindo.

Tereza, discreta, sempre se interessando pela conversa alheia, estava sentada em um banco à frente das duas. Ouviu tudo. Avistou Júlio; era aquele rapaz que, todos os dias, entrava naquele mesmo ônibus, naquele mesmo horário e naquele mesmo ponto. Bem que ele tinha cara de apaixonado.

No dia seguinte, aquele mesmo ônibus parou naquele mesmo ponto, naquele mesmo horário. Júlio entrou. Tereza conversava com Pedro. Ele não a conhecia, porém conversava com ela porque era muito tagarela e sempre conversava com todos que se sentavam ao seu lado.

– Aquele rapaz que acaba de entrar deve ser muito romântico. – comentou Tereza, bem baixinho – Aquele estudante ali. Ouvi dizer que ele deu um beijo na namorada aqui no ônibus.

– E daí?

– E daí que pelo que eu soube foi um beijo muito apaixonado. Imagine um beijo muito apaixonado. Pena que eu não estava para ver, deve ter chamado atenção de todo mundo. Ele sempre tá por aqui, todo dia de manhã, é o único passageiro que entra com essa farda azul.

Três dias depois, Pedro estava dentro de um ônibus da mesma linha, naquele mesmo horário. Tagarela como era, batia um papo com um desconhecido, Henrique, que também gostava muito de conversar. No meio da conversa, Pedro perguntou:

– Você vem sempre nesse ônibus?

– De vez em quando.

– Então você deve saber quem é o estudante de uniforme azul.

– Não, não sei. O que tem ele?

– Nada. Ele só é o único estudante de uniforme azul que entra nesse ônibus de manhã. Estou sabendo que ele andou beijando a namorada na frente de todo mundo.

– E...?

– E foi um baita beijo. Beijo de perdidamente apaixonados.

– Caramba! Com direito a sacanagem e tudo mais?

– Isso eu não sei, só sei que foi um beijo muito apaixonado.

– Com certeza, foi com direito a sacanagem. Perdidamente apaixonado hoje em dia quer dizer sacanagem.

Naquele instante, Raimunda, rude, moralista, que vela pela vida alheia e indigna-se com tudo, ouviu e ficou zangada.

Duas semanas depois, Raimunda já tinha se esquecido do que ouvira. Estava num ônibus TEOTÔNIO VILELA–NELSON COSTA quando viu um rapaz, de mais ou menos catorze anos, assoviando para uma moça, do lado de fora do ônibus. Lembrou-se de tudo. Resmungou a seu cunhado, Rodrigo, sentado ao seu lado, mente poluída, que só pensa maldades:

– Essa juventude de hoje anda muito sem vergonha. Imagina só, um garoto dessa idade fazendo gracinha! Teve até um rapazinho que já andou beijando a namorada descaradamente no ônibus!

– Descaradamente?

– Sim. Diz que foi um beijo cheio de descaração. Um desses beijos que todo mundo chama de “apaixonado” hoje em dia.

– Como é que você sabe disso?

– Ouvi comentarem.

– E como seria um beijo cheio de descaração?

– Como assim? Como você acha que é um beijo cheio de descaração? É essa beijação sem vergonha que a gente vê por aí todo dia.

– E foi na frente de todo mundo?

– Não estou te dizendo? Esses meninos de hoje não tem vergonha de nada não. Fazem o que querem sem estar nem aí pra ninguém.

Dois dias depois, no ônibus BARRA CSU–CENTRO, Rodrigo conversava com Flávio, seu vizinho, que era estudante, um pouco tímido, mas sempre queria estar por dentro de tudo e pôr a todos por dentro também.

– Você está sabendo do beijoqueiro do ônibus? – perguntou Rodrigo.

– Eu, não. Que beijoqueiro? – quis saber Flávio.

– Um garoto que anda beijando descaradamente dentro do ônibus.

– Não. Que história é essa? Conta aí que eu quero saber.

– Diz que o cara estava na maior das putarias com a namorada dentro do ônibus.

– O quê?

– Foi isso mesmo.

– Quem te contou isso?

– Foi dona Raimunda.

– Sua cunhada? Acredito muito. Aquela ali é muito exagerada, reclama de tudo.

– Eu sei. Mas mesmo assim, eu não duvido não.

– E como foi isso?

– Diz que foi um beijo.

– Um beijo?

– Sim, mas não um beijo qualquer. Um beijo daqueles. E com certeza não ficou só no beijo.

– Como assim?

– Quando eu digo que não foi só beijo, quero dizer que não foi só com a boca, entendeu? As mãos devem ter agido muito também. Você sabe, eles devem ter passado a mão em tudo quanto é lugar.

– Safadinhos... os dois.

Naquele mesmo dia, no final da tarde, Flávio estava com seus amigos no ônibus CIRCULAR I. Foi seu primeiro comentário:

– Vocês estão sabendo do beijoqueiro?

– Beijoqueiro? – perguntou um.

– É. O beijoqueiro do ônibus.

– Beijoqueiro do ônibus? – estranhou outro.

– Ninguém aqui ouviu falar? É o seguinte: teve um cara aí que lascou o maior beijo numa garota dentro do ônibus. Quer dizer, foi o que eu ouvi dizer. Eu imagino que ele deve estar lascando muitos outros também.

– Beijo no ônibus? – interessou-se um terceiro.

– Foi. – continuou Flávio.

– Foi num coletivo normal? Desses que circulam pela cidade? – mais gente dava atenção ao assunto.

– Deve ser.

Carolina, sensual, fogosa, ardente, interessou-se naquele mesmo instante:

– Eu vou e volto da escola de ônibus todo dia. Nem de eu encontrar com ele e ele vir me beijar também.

Alguém interveio:

– Mas o que tem demais ele beijar no ônibus?

– Não teria nada se fosse só beijo.

– Hã?

– Quem me contou isso, pelo jeito que me contou, disse que ele não estava só beijando. Pelo que ele me disse, estava tendo um suruba lá dentro.

– Suruba no ônibus?

– Suruba no ônibus.

– Como assim?

– Ah, imagina aí. Eles dando aquele beijo quente, ardente, a boca o maior grude, a mão dele passando pelo corpo dela e vice-versa.

– Que delícia! – Carolina perdeu-se em imaginações.

Suposições surgiram:

– Será que o beijo fazia barulho?

– Para ser suruba, no mínimo ele apertou os seios dela.

– Ou a bunda.

Flávio concluiu:

– Pois é. Foi o que eu soube. Agora, se é verdade mesmo, isso eu já não sei.

No dia seguinte, Carolina, sensual, fogosa, ardente, prestou atenção e percebeu quando cada rapaz entrava com a namorada no ônibus CIRCULAR II. Podia ser qualquer um deles. Ou podia ser um solteiro, já que um beijoqueiro de ônibus não iria beijá-la na presença da namorada. Olhou um rapaz, imaginou que talvez seria ele. Bem que ele tinha cara de safado, e também era bonito. Certamente era ele. Ao seu lado estava Rita, sua colega de classe, que tem nojo de tudo e de todos. Quando desceram do ônibus, Carolina perguntou:

– Você viu aquele gato que sentou atrás da gente?

– Acho que sim. Eu vi que ele nem cuida da roupa dele.

– Viu como ele era sensual?

– Sensual? Aquele sujeito todo suado? Tá doida?

– Ele é tão sensual que só faltou transar com a namorada no ônibus um dia.

– Tá doida, Carol? Que mulher ia querer aquele sujeito? Ele estava todo suado, devia estar fedendo também. Eca!

– Eu mesmo queria. Já pensou? Ele me agarra, me dá um beijo estuprador, passa a mão por mim toda, nos meus seios, nas minhas coxas, me lambuza todinha, me deita no banco...

– ...Só você para querer uma coisa dessas.

– Teve uma outra que quis. Eles fizeram isso dentro do ônibus.

– Eles fizeram isso?

– É o que dizem. Não sei em qual ônibus foi, mas eles fizeram. Quer dizer... não me disseram que eles deitaram no banco, mas é só olhar pra cara dele que eu deduzo que foi bem assim mesmo.

– Eles fizeram isso? Pra todo mundo ver?

– Dentro do ônibus todo mundo vê, né!

– Que horror! Não quero mais entrar no ônibus que eles fizeram isso. Já pensou se eu sento no mesmo banco que eles sentaram?

E o cobrador? Não fez nada?

– O que o cobrador deveria fazer?

– Ué! Os dois se agarrando desse jeito e o cobrador não faz nada?

– Se o cobrador viu devia era estar com inveja.

Naquele mesmo dia, Rita entrou no ônibus TEOTÔNIO VILELA–N.Sra VITÓRIA com seu irmão, Igor, malandrão, cheio de gírias, e dos amigos de seu irmão, que tinham um perfil similar. Quando estavam se dirigindo aos bancos dos fundos do ônibus, ela sugeriu que todos ficassem na frente.

– Nunca mais sentem no fundo de um ônibus.

– Por quê? – quis saber Igor.

– Porque um garto nojento andou beijando uma garota nojenta dentro do ônibus. Aliás, beijou não, eles estavam quase transando. E se fizeram isso, deve ter sido no fundo.

– Oxe! Fizeram isso no buzú, foi?

– É. E acredita que o cobrador não fez nada? Eles lá se agarrando, passando a mão, deitando no banco e o cobrador não fez nada!

– Impossível.

– Como assim impossível?

– Se o cobrador vê isso, claro que ele não vai ficar lá paradão, deixando tudo rolar na boa.

– Mas é o que eu digo, ele não fez nada.

– Quem te contou isso?

– Foi o que a Carol me disse.

– Aí, galera! – brincou Igor – Agora tá tudo liberado aqui no buzú. Tragam suas namoradas que a gente vai fazer tudo de bom aqui.

Todos riram. Naquele momento, Hérica, namorada de Igor, que coincidentemente acabava de encontrá-los naquele ônibus, estranhou e quis saber o motivo da risada.

– Se ligue, gatinha. – começou Igor – Minha irmã aqui disse que um maluco aí tava quase transando aqui nesse ônibus.

– Aqui no ônibus? – espantou-se Hérica. – Vocês viram isso?

– Pode crê!

– Eu não disse que foi nesse. – atalhou Rita – Pode ter sido em qualquer um, inclusive nesse.

– E como é que foi isso mesmo? – Hérica estava desorientada com a informação.

– Eles estavam se beijando, aí foram se agarrando, agarrando e agarrando. Aí deitaram no banco. Aí passaram a mão naqueles lugares. Minha irmã aqui disse que o cobrador não fez nada.

– E vocês acreditam nisso?

Todos do grupo entreolharam-se e riram.

– Façam-me o favor! Acham que o cobrador ia deixar essa putaria dentro do ônibus?

– Foi isso que eu disse pra Rita. Mas ela garante que o cobrador não fez porra nenhuma. Deixou. Mas, pra mim, é impossível.

Claro que o cobrador vai fazer alguma coisa.

– Gente, se isso aconteceu, o cobrador deve ter feito alguma coisa. – concluiu Hérica – Se é que isso aconteceu mesmo.

– Pode crê. O cobrador reagiu, com certeza. Mas que uma parada bem sinistra rolou, isso rolou. Pra agente ficar sabendo assim...

Dez dias depois, Hérica estava no ônibus CEPLUS-C. ABASTECIMENTO com Jandira, sua mãe, sentada ao seu lado, quando um casal entrou. Hérica observou que eram namorados e ficou imaginando-os fazendo tudo o que ouvira naquele ônibus, na frente dela. Comentou com Jandira aos sussurros:

– Ouvi dizer que um cara quase transou dentro do ônibus. Quer dizer, é só o que eu fiquei sabendo. Parece que eles se beijaram, depois começaram a passar a mão nos lugares mais íntimos, depois se deitaram no banco, e por aí vai.

Jandira também respondeu aos sussurros:

– Onde você ouviu isso, minha filha?

– Foi Igor que me contou, minha mãe. Não sei o que aconteceu depois, mas eu tenho pra mim que o cobrador não deixaria, se uma cena dessas acontecesse. Você sabe, o cobrador não ia deixar isso, seria até atentado ao pudor.

A conversa continuou aos sussurros.

– É, eu sei. Mas se dizendo, minha filha, que tem muito cobrador bunda-mole por aí.

– Sim, é claro que ele era um bunda-mole. Se não, eles nem tinham começado essa putaria. Quer dizer, se isso aconteceu mesmo. Pode ter acontecido, né? Tanto doido nesse mundo. Mas é o que eu digo: por mais bunda-mole que o cobrador pudesse ser, uma hora ele ia ver que já estava indo longe demais e ia reclamar com os dois.

– É. Isso é verdade. Mas só dois loucos fariam uma coisa dessas. O cobrador deve ter ficado bem constrangido, mas reagiu bem na hora H, quando os dois já deveriam estar tirando a roupa, quem sabe até gemendo. Isso faz muito tempo?

– Sei lá. Acho que não.

Quatro dias depois, Jandira encontrou-se coincidentemente com Manoel, seu ex-vizinho, naquele mesmo ônibus. Conversaram bastante até que Jandira puxou o assunto.

– Ah, você já ouviu falar de um casal que estava quase fazendo no ônibus?

– Não. Que história mais louca é essa?

– Dois garotos que estavam no ônibus. Começou com um beijo, daqui a pouco estavam deitados no banco.

– Eu, hein! Como é que você soube disso?

– Minha filha que me falou. Disse que foi um negócio de doido.

– Dentro do ônibus? Meu Deus!

– Eles não chegaram a... você sabe. Eu acho, e minha filha também, que eles só não foram às vias de fato porque o cobrador não deixou. Porque é claro que o cobrador não vai deixar ninguém ficar de sacanagem dentro do ônibus. Mas ele só veio fazer alguma coisa, com certeza, quando eles já estavam... eh... tirando a roupa, sabe? Gemendo... Eu nem sei se isso é verdade, foi só o que minha filha me contou.

– Faz muito tempo?

– Eu acho que não.

– É porque dia desses eu vi um casal descendo do ônibus e o cobrador tinha levantado, estava praguejando qualquer coisa. Eu estava do lado de fora, não vi o que tinha acontecido.

– Sério? Então foi isso. Eles já estavam prestes a fazer dentro do ônibus, com certeza ele já estava tirando a roupa dela quando o cobrador resolveu impedir. Cada louco que agente vê por aí!

Naquele mesmo dia, no ônibus HERNANI DE SÁ–IGUAPE, Manoel voltava para casa ao lado de sua vizinha, Cláudia, romântica, que adora livros e filmes de amor.

– Cláudia, eu te contei que um dia desses eu vi um casal que quase transou no ônibus?

– Não. Você viu, foi?

– Não vi eles transando, mas foi isso que quase aconteceu. Quase, quase... Já estavam tirando a roupa e gemendo.

– Nossa! Imagina só! Aqui mesmo nessa cidade tem tanta gente sem semancol. Ai, Seu Manoel... cadê o romantismo dessas pessoas? Cadê o sentimento? Isso não é amor, é coisa de cães no cio. Eles têm muito o que aprender com um casal lindo que eu vi dia desses quando estava vindo de Olivença. Tão românticos, seu Manoel! Tão lindos!

Ainda por algumas semanas, circulou, por toda a cidade, o murmúrio de que, um belo dia, um casal havia passado dos limites dentro do ônibus. Esse acontecimento saiu dos ônibus para ferver no pátio do General Ozório, na Pracinha da Irene, no balcão de atendimento da Backdoor, na fila do Bamerindos, no setor alimentício do Itão, no setor de lactíneos do Meira.

No futuro, tudo isso seria esquecido pelo senso comum, embora ainda alguém pudesse, vez por outra, lembrar e recontar tudo, oportunamente, numa mesa de bar.

Na contramão disso tudo, porém, Cláudia não deu continuidade ao assunto. Ao chegar em casa, decidiu abstrair o fato relatado por Manoel. Preferia rememorar apenas o lindo casal apaixonado que havia visto se beijando ao voltar de Olivença.