Por Amor

Sabe como é chorar todas as noites? Chorar pela solidão, pelo que foi e pelo que poderia ter sido se tudo tivesse seguido o rumo que parecia seguir. Chorar a angústia desses dias vazios. Dessa vida vazia. Creio que nem todos saibam como é, mas eu sei, eu sinto, e o que sinto não é bom.

As pessoas parecem não entender o que eu sinto, mas elas também não sabem que eu não consigo, eu não posso mudar certas coisas em mim, certos sentimentos.

Minha vida nunca foi fácil. Eu acho incrível quando alguém fala de confiança, pois eu não sei o que é poder confiar, nunca soube e nunca saberei. Todas as pessoas em quem confiei me abandonaram, largaram-me quando eu menos esperei.

Quando eu tinha seis anos, perdi meu pai em um trágico acidente. Lembro-me daquele dia terrível como se o estivesse vivendo nesse exato momento. Basta fechar os olhos para sentir a dor lancinante daquele e de todos os momentos que sucederam aquele fato terrível, início de toda a minha dor:

- Maria, Maria, abra essa porta! – gritou uma voz conhecida. Era a minha tia Joana chamando a minha mãe.

- Que houve, tia? – eu abri a porta, desesperada.

- Luísa, chame a sua mãe! – gritou tia Joana, com o rosto modificado pelo terror.

- O que está acontecendo, Joana? – perguntou minha mãe, que correu até a porta.

- Foi o Cláudio... um acidente... ele, ele.. – nesse momento, minha tia pôs-se a chorar de forma descontrolada.

Depois disso, não vi mais nada, pois minha madrinha me pegou no colo e me levou para o quarto, enquanto eu gritava, querendo saber o que tinha acontecido. Quando ela fechou a porta do quarto, pude ouvir um grito que pareceu congelar o coração acelerado que pulsava em meu peito.

Não agüentava mais a agonia, quando mamãe, já mais calma, abriu a porta do quarto, chamou minha madrinha e explicou o que havia acontecido. Enquanto mamãe entrava no quarto, vi minha madrinha sair na direção oposta, chorando. Tudo aquilo estava me deixando mais nervosa a cada segundo.

- Lu, precisamos conversar. – ela me disse, com tristeza no olhar.

- Eu estou com medo, mãe. Pode me dar um abraço? – pedi, antes que ela falasse o que tinha acontecido.

Sem esperar que eu tivesse aquela reação, antes de saber o que de fato ocorrera, minha mãe me abraçou e choramos juntas.

- Filha, você vai precisar ser forte. Olhe para mamãe. – disse ela, enquanto eu a soltava e olhava seus olhos tristes. – Seu pai sofreu um acidente... – ela respirou fundo. – e... venha aqui. – ela me pegou no colo e me colocou na janela. – Está vendo aquela estrelinha no céu?

- Qual, mamãe? – perguntei, com a doce inocência da infância.

- A que mais brilha.

- Ah, sim. O que tem ela?

- Seu pai está lá com ela agora, brilhando ao lado dela e sorrindo para você. – ela respirou fundo e segurou o choro.

- Ele virou astronauta, mamãe?

- Não, filha, papai agora vai morar lá para sempre. Papai está no céu agora.

Naquele momento, quando entendi o que ela queria dizer, comecei a chorar desesperadamente.

- Não, mamãe, o lugar dele é aqui, com a gente, em nossa casa. – eu disse, em meio aos soluços.

Minha mãe me pegou no colo, abraçou-me e fez carinho em minha cabeça, enquanto eu chorava.

Passado um tempo, ela se sentou na cama e olhou para mim.

- Filha, preste atenção no que a mamãe vai dizer. Olhe dentro dos meus olhos enquanto eu estiver falando, tudo bem?

- Sim, mamãe.

- Haja o que houver... por nada nesse mundo, em momento nenhum a mamãe vai te abandonar. Estarei sempre ao seu lado. Para tudo, para todo o sempre. Confie em mim. – disse ela, com uma segurança tão grande que me confortou. Senti-me forte. Tinha certeza de que mamãe nunca me abandonaria. Embora tivesse acabado de perder papai, eu estava segura, pois ela estaria comigo sempre.

Lembro-me de que dormimos abraçadas naquela noite. Eu estava protegida.

Mas, com o tempo, mamãe mudou. A promessa feita antes não estava mais valendo. Ela mudara para valer. Não tinha mais uma palavra de carinho, abraços eram raros. Mal conversávamos, apenas falávamos o essencial. Essa mudança começou quando eu tinha doze anos. Eu não reconhecia mais a minha mãe, não reconhecia mais aquela mulher que prometera ficar ao meu lado sempre.

Quando completei dezesseis anos, mesmo com o tempo que havia passado, eu ainda sentia falta do meu pai. Eu precisava dele. E, quando contei para minha mãe o que eu estava sentindo, ela me disse que era bobagem, que já estava na hora de parar com aquela palhaçada.

As palavras dela soaram como facas que cortavam a minha alma. Senti como se algo estivesse morrendo em mim. Onde estava a mulher que prometeu que ia estar comigo para sempre e para tudo? Ela não estava mais cumprindo a promessa. Ela estava me largando.

Alguns dias depois, ela veio me dizer que estava namorando e ia se casar.

- Que bom, mãe. – eu disse, ainda mais triste. Agora eu entendia o motivo da mudança de comportamento.

- E você vai morar com a sua madrinha. – ela disse, de forma seca, como se tivesse acabado de me dizer que ia sair com as amigas.

- Por quê? – perguntei, indignada.

- Porque sim, menina.

- Não vai ter espaço para mim, não é mesmo? – meu coração estava se partindo mais uma vez.

- Luísa, sem discussão! Pode arrumar as coisas.

- Quer me despachar logo, Dona Maria? Já virei um estorvo, não é? – perguntei, de forma irônica.

Apenas senti sua mão em meu rosto. Não era carinho, pois carinho não dói. Minha mãe, pela primeira vez na vida, me bateu. Não havia motivo para ela fazer isso.

- Satisfeita? Era isso que você queria? – ela me perguntou, exaltada.

- Sabe o que eu queria mesmo? Eu queria que você tivesse morrido no lugar do meu pai, queria que você não estivesse aqui mais. Porque ele, ao contrário de você, cuidaria de mim para sempre. Ele teria prometido e cumprido, de forma perfeita, a promessa. Ele seria digno de ser chamado de pai, ao passo que você não merece ser chamada de mãe. É um crime chamar você de mãe, um verdadeiro crime!

Sem dizer mais nada, fui para o meu quarto arrumar minhas malas, chorando por tudo, principalmente por perceber que a pessoa em quem eu mais confiava, o meu exemplo, meu referencial de confiança, havia quebrado a promessa que me fez. E quebrara junto parte do meu coração e a inocência que me fez acreditar, durante muitos anos, nessa pessoa que eu chamei de mãe, que eu amei incondicionalmente.

Quando estava tudo pronto, fui até a cozinha, coloquei a mala no chão e disse, olhando dentro dos olhos dela.

- Obrigada por acabar de me destruir. Desejo que você seja muito infeliz. – e saí, perdida e querendo que aquilo fosse um pesadelo.

Quando cheguei à casa da minha madrinha, ela já estava me esperando, com um olhar assustado. Lembrei do dia em que meu pai morreu; ela tinha o mesmo olhar.

Abraçamos-nos e choramos. Ela sabia que eu sofria, ela sabia o que eu estava sentindo. Eu só queria alguém para me dizer que aquilo ia acabar, pois era um pesadelo. Mas não adiantava me enganar. Era real e doía demais.

- Sei o que você está sentindo, mas eu vou cuidar de você para sempre, eu prometo. – e meu deu um sorriso amoroso seguido de um beijo.

E assim, de fato, foi. Minha madrinha cuidou sempre muito bem de mim. Com ela, tive tudo o que sempre quis, principalmente amor. Amor incondicional.

Eu já estava na faculdade, com dezenove anos, quando cheguei à casa um dia e encontrei minha madrinha sentada, com a mão na cabeça, e uma amiga dela, aparentando estar muito nervosa.

- O que aconteceu? – perguntei, nervosa. Naquele momento, minha madrinha começou a chorar.

- Minha filha, eu vou ter que ir embora. – ela me respondeu.

- Para onde? Por quê? – perguntei, temendo a resposta.

- Sua mãe me ligou e está precisando de mim. – quando ela respondeu, eu fiquei muda. – Não vai perguntar o motivo?

- Nada vindo dela me interessa. Eu não tenho mãe, e você sabe disso. – respondi friamente.

- Ela está doente e precisa de mim. Deixarei dinheiro para você. A casa é sua. Você conseguirá se manter até conseguir um emprego. – ela me informou.

Quando percebi que não havia mais nada a ser dito, fui para o meu quarto, tranquei a porta e chorei. Chorei de forma descontrolada. Outra promessa feita e quebrada. Outra vez a confiança destruída. Agora eu havia entendido algo: nunca, em hipótese nenhuma, deveria confiar em ninguém. Sempre vão me deixar sozinha, sempre vão me abandonar.

Mesmo sabendo que eram irmãs, não entendo porque minha madrinha tem que ir embora para cuidar da minha mãe. Ela havia se casado. O marido dela podia cuidar de tudo, inclusive dela. Mesmo longe, ela conseguiu me destruir mais um pouco, tirando a única pessoa que parecia se importar comigo. Ela era devastadora e cruel. Eu a odiava mais que tudo.

- Luísa, abra a porta. – disse minha madrinha, tentando abrir a porta.

Fui até a porta e abri.

- Eu sei como você se sente, mas eu realmente preciso ir. Ela precisa de mim, você tem que entender.

- Quando você vai? – perguntei, de costas para ela, com toda a frieza que fui capaz de mostrar.

- Amanhã de manhã. Deixei o dinheiro em uma conta no banco e o cartão está em cima de sua escrivaninha. A casa é sua.

- Obrigada por tudo. Não posso deixar de te agradecer. – falei, segurando as lágrimas. Ela me abraçou sem que eu pudesse evitar.

- Seja feliz. Eu te amo muito. Um dia, você vai entender o motivo da minha ida. – ela me disse, chorando.

Quando ouvi a porta bater, caí na cama, chorando e olhando uma foto nossa.

Dois anos se passaram desde que a vira pela última vez. A gente se comunicava por telefone de vez em quando. Ela nunca havia me dito onde estava morando e eu nunca perguntei.

Enquanto eu me lembrava de tudo isso, o telefone tocou.

- É a senhora Luísa?

- Ela mesma. – respondi, estranhando o tom e a voz do homem que falava.

- Aqui é do Hospital São Marcos. Estou ligando para...

- Olha, se for para falar da senhora Maria, nem perca o seu tempo. – disse, cortando o homem.

- Não, estou ligando para falar de Célia Cordeiro, senhora. – ele falou, de forma educada.

- Ah, pode falar então.

- Ligo para informar que a senhora Célia piorou durante a noite. Seu estado de saúde agravou.

Quando o rapaz concluiu o que tinha a dizer, eu caí no sofá, muda. Não sabia de nada, não sabia que ela estava doente.

- Alô? A senhora está me ouvindo?

- Oi, desculpe, mas eu não sei de nada. Poderia me explicar?

- A senhora poderia vir aqui? – perguntou o homem.

- Claro, poderia me dizer o endereço? – perguntei, pegando o papel e anotando o que o rapaz dizia. – Ah, tudo bem. Estou indo agora. Obrigada Até logo

Olhei o endereço. Estranhei. O hospital é perto. O que minha madrinha está fazendo lá? Minha mãe mora em outra cidade. Este é bem perto daqui. Há alguma coisa errada.

Peguei o carro e fui para lá. Pensamentos confusos passavam pela minha cabeça, mas nenhum era coerente. Não dava para entender.

Cheguei ao hospital em vinte minutos. Estava nervosa. Pedi para falar com o rapaz que havia me telefonado. Expliquei o caso e a recepcionista me mandou para o assistente social.

Ao entrar na sala, senti um aperto no peito. O que estava acontecendo?

- Senhora Luísa, correto? – perguntou-me, de forma educada

- Sim, senhor.

- Sente-se. Precisamos conversar. – disse o homem, em tom sério.

Quando me sentei, ele começou a explicar o que havia acontecido.

Há dois anos, minha madrinha havia procurado um médico, pois não estava se sentindo bem há um tempo. Vinha tendo alguns problemas de saúde. O médico descobriu que ela tinha uma doença chamada Mal de Azheimer e os sintomas eram decorrentes dessa doença. Não havia cura, e ela sabia disso. Por isso, havia ido embora. Ela sabia que fim teria, sabia que ia morrer.

Quando o rapaz terminou de falar, eu estava chorando. Não havia entendido tudo, mas entendi o principal: ela havia ido embora porque estava doente. Ela estava, não a minha mãe.

- Bom, ela deixou essa carta comigo desde a primeira vez que ela ficou internada. – ele me entregou um envelope. – Pediu que eu entregasse quando ela não estivesse mais aqui. Vou deixar você sozinha para ler. Com licença e meus pêsames. – disse o rapaz, enquanto saía.

Abri o envelope, nervosa, tirei a carta e comecei a ler.

“Querida Luísa,

Deve estar me vendo, nesse momento, como mais alguém que te abandonou, como alguém que quebrou a promessa de cuidar de você sempre.

Quero que saiba que fiz isso para o seu bem. Não queria te ver sofrendo mais ainda, não queria ver a tristeza em seu rosto diariamente. Sei o que irá acontecer com você se eu estiver em casa. Por isso, para o seu bem, estou morando perto do hospital, pois assim não te darei trabalho.

Não te abandonei porque eu quis, apenas preferi deixar você viver plenamente, sem que precisasse se preocupar comigo. Sei que você cuidaria muito bem de mim, mas não quero que viva presa a algo que não é bom para você.

Hoje sei que não vai me entender, mas, quando ler esta carta, entenderá tudo perfeitamente.

Com todo o amor do mundo.

Sua madrinha.”

Ao ler aquilo, senti meu chão desabar. Ela havia mentido para mim, mas havia mentido para me proteger, havia mentido por amor.

Lágrimas rolaram pela minha face. Cada uma delas representou a culpa por ter sido seca com ela, a dor de perder alguém que eu realmente amo e a única pessoa que havia me protegido e me acolhido, enquanto todos os outros me deram as costas.

Agora entendo tudo. Entendo também que julguei mal a única pessoa que me amara de verdade.

Não havia mais nada a ser feito. Ela havia partido, mas havia cumprido o que prometera anos antes. Havia me dado todo o amor que eu precisei, havia me ensinado tudo o que eu sei. Eu devia tudo a ela. Ela, sim, precisava me perdoar por ter sido tão injusta.

Apesar de tudo, carrego no meu coração a certeza de que ela foi a minha verdadeira mãe, e eu não precisava de mais ninguém que me desse amor. Ela me ajudou a encontrar o meu caminho e agora eu teria que seguir sozinha. Ela estará comigo sempre, tenho certeza. Sempre estará em meu coração.

Abri a minha carteira e tirei uma foto nossa que sempre levava comigo. Na foto, estávamos felizes, sorrindo. Enquanto olhava, lágrimas rolavam pela minha face. Respirei fundo, guardei a foto e saí, sabendo que teria que enfrentar muita coisa ainda, e que precisava ser forte, como minha madrinha havia me ensinado a ser.

Paula Vigneron
Enviado por Paula Vigneron em 12/06/2010
Reeditado em 25/07/2012
Código do texto: T2315916
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.