Orlando

Era um rapaz sozinho e desde criança trazia certa dificuldade em demonstrar seus sentimentos mais profundos. Calado, quase não sorria. Os amigos, raros, e em sua totalidade homens. Sincero por demais, não conseguia disfarçar a pena que sentia das mulheres, só conseguia vê-las como seres mutilados, privados do privilégio do pênis.

Construíra ao longo de seus trinta e poucos anos uma visão paralela das coisas que o cercavam, onde parte de si se recusava a perceber a realidade e a outra trazia uma visão muito subjetiva e angustiante em relação ao outro sexo.

Para ele as mulheres eram provas vivas de que algo poderia ser extirpado de si, a qualquer momento, temia até a convivência com elas, que de alguma forma traziam em si a falta do falo, não tinha coragem o suficiente para admitir o que sentia, mas era bem isso, o medo de se ver como elas, um aleijão.

Vivia com a mãe, numa casa simples e aconchegante nos fundos do pequeno armarinho, que era de onde tiravam seu sustento. A loja ficava repleta de mulheres o dia todo, aquilo lhe causava certo desconforto, ficava horas observando as pobres escolherem linhas, babados e rendas para confeccionarem seus ricos enxovais, ou para matarem seu tempo livre.

Não sabia explicar porque em certos momentos observá-las sem ser notado era extremamente prazeroso, as mãos, os seios que dançavam dentro do decote. Muitas vezes se escondia e oferecia seu gozo em homenagem a alguma de suas clientes, fosse ela quem fosse.

A debilidade feminina não lhe causava asco e sim o prazer de sentir-se superior, de poder submetê-las às suas vontades e desejos mais sórdidos. Cultivava um pseudo-romance com uma das garçonetes do restaurante que ficava há duas quadras dali, ela servia bem aos seus propósitos. Tinha uma boca linda e falava pouco, como ele.

Orlando tinha um segredo. Gostava de ir para as docas, disfarçado com grandes gorros e bonés, toda quinta-feira. Os freqüentadores daquele lugar eram em sua maioria travestis que por uma pequena quantia o levavam ao gozo supremo, seu falo exigia sexo anal, mas feito com homens era infinitamente melhor. Talvez por fetiche, talvez por terem falo, e poder tocá-los enquanto penetrava, a sensação era mágica.

Desde os seus dezesseis anos tinha esse costume, suas quintas eram recheadas de prazeres profanos, punia-se por ter essa vida dupla, lembrava-se da primeira vez que ouvira: “seja homem, seja homem!” - e das outras tantas, da família, da sociedade, mas não conseguia se afastar daquela perversão.

Por muitas vezes sua mãe lhe perguntara onde passava aquelas horas e depois veio Lidiane, que tentava prendê-lo nas quintas, talvez pela insegurança, por pensar que haviam outras mulheres. Pobrezinha, ingênua, presa em sua debilidade e religião. Ela cheirava jasmim, e se entregava por inteiro, sem cobrar nada mais que fidelidade.

Já as docas eram mal cheirosas e sujas, aqueles homens eram a escória, ladrões, bêbados, drogados, cafetões e patifes, queriam mais do que ele podia dar e mesmo assim apetecia-lhe fazer parte daquele cenário. Quando descia próximo aos trapiches, o odor do pescado e da maresia faziam arder as narinas, eriçar os pêlos todos, cada dia um homem diferente, cada dia um prazer inigualável.

As meia calças rasgadas, o cigarro jogado no canto fino da boca masculina pintada, o jeito quase desengonçado de andar naqueles sapatos baratos, o afastar das pernas, o penetrar sem cuidado e incessante, tudo o inebriava, tudo conduzia ao gozo único.

Quando o sexo terminava, eles tentavam esboçar um sorriso, mas o que lhes interessava eram os espólios do gozo remido. Será que gostavam de ser tocados? Ou faziam pelo dinheiro?

Por vezes não transava com eles, apenas pagava para ouvir o que os afligia, o que os afetava, e o que os excitava.

Orlando era uma boa alma, dava conforto aos que o procuravam, seu sexo era bom, e era um amigo nas horas difíceis, o único defeito dele era se esconder, e se escondia tão bem que o chamavam de “O fantasma”, não pedia ajuda, não falava de si, apenas ouvia, aconselhava e se servia. Sua fama pelas docas se espalhou e por vezes apareciam homens que o queriam apenas por prazer, recusavam-se a receber uma moeda sequer.

A única lei era não mostrar seu rosto, ou falar de si mesmo. Nos últimos dois anos, seus parceiros eram quase uma constante.

Le Petit, que deixou sua vida estável, mulher e filho para viver nos prostíbulos próximos ao porto. Pâmela, que sustentava homens jovens para seu bel prazer. Nina, que apanhava de bêbados e os curava de seus desesperos. Seu preferido era Narciso, o mais jovens, até se parecia com ele quando começara a freqüentar aquele lugar, menino perigoso, subversivo, queria ver-se nos olhos de seus amantes. Fora advertido e ameaçado por Orlando várias vezes, por tentar quebrar a única regra estabelecida.

Numa dessas noites de quinta, o rapaz conseguiu retirar seu amante das sombras e ao ver-se indefeso e exposto, num ato quase involuntário, Orlando retira uma navalha no bolso traseiro da calça, a lâmina brilha e Narciso não tira os olhos dos olhos dele, parecendo não temer o corte e em um só golpe, Orlando castra-se ainda ereto dentro de seu inocente amante.

Cai depois do ato e desfalece, todos os seus amantes se poem em volta de seu corpo, ele ainda respira, quando a ambulância chega ao local. De alguma forma salvaram Orlando, que não pode ter seu órgão transplantado, e que de alguma forma, se sentiu aliviado por isso.

*nota ao leitor:

O nome do personagem é uma homenagem a grande escritora: Virginia Woolf.

Larissa Marques
Enviado por Larissa Marques em 25/06/2010
Reeditado em 25/06/2010
Código do texto: T2341453
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