Fechado numa casca de noz

CONTO EM 1 ACTO

PERSONAGEM:

ROSA NA FIGURA DE ROSA

NARRADOR (SEMPRE EM VOZ OFF)

CENA 1. Uma única luz incide no pano do palco. A luz de forma redonda incide no pano do palco, a meio do lado esquerdo do mesmo, tudo o resto está às escuras.

NARRADOR (em voz off) “ Fechado numa casca de noz, eu poderia julgar-me rei de um espaço infinito.” Claro que esta frase é de Shakespeare, e, este teatro é o sítio mais indicado para a dizer.

Pode ser dita em todo o lado, em todos os espaços finitos ou não, mas aqui é o sítio por excelência para a proferir, este sítio mágico, onde tudo e nada se passa.

Sim, já sei...., a comédia, o riso, a boa disposição, o drama, a tristeza, aqui e ali uma lágrima, mas como estamos fechados nesta “casca de noz”, com cadeiras, por vezes incómodas, que por vezes até rangem, com pessoas atrás, à frente, por cima, ao lado, um ou outro atrasado, pessoas que dizem “-Shiu..!” quando cochichamos com o ou a parceira que veio connosco até aqui, podemos julgar-nos reis, e rainhas deste espaço infinito, quando este pano já gasto (teatro é espectáculo sempre em crise) subir e mostrar o que se vai passar.

Eu como sou rei quero (voz mais alta) MÚSICA!

(começa a ouvir-se Libertango (quinteto de Astro Piazolla) (pausa)

Até me calo para ouvir, mas tenho uma curiosidade enorme em espreitar também pelo buraco da fechadura, sem chave é claro, e observar o que está do outro lado, do outro lado da fronteira, que é uma porta, mas que aqui não passa de um pano.

A história que vão ver é a de uma costureira, que vive num quarto, numas águas furtadas que têm uma pequena janela de onde vê os pombos no telhado. É um fragmento da vida.......... Como é que iremos chamá-la? Rosa, sim, um fragmento da vida de Rosa, uma costureira com nome de flor.

Por enquanto vou calar-me, já chega de palavras, até porque são levadas pelo vento.

Senhoras e senhores, meninos e meninas, o espectáculo vai começar: Rosa a costureira.

CENA 2. O Pano vai subindo. A luz mantém e começa a incidir sobre um vestido de mulher, camisa vermelha com decote quadrado, de meia manga e saia comprida preta, que se encontra no manequim posicionado do lado esquerdo do palco, a meio.

O restante cenário não está iluminado, está na escuridão total.

Um outro holofote incide numa personagem feminina, que se encontra de pé, perto da assistência da primeira fila da plateia, também do lado esquerdo.

A mulher veste saia comprida e camisa castanhas, calça chinelos pretos sem meias nos pés. No seu braço esquerdo tem uma pequena almofada preta, onde se vêm alfinetes presos. Um dedal no indicador esquerdo. Tem a mão direita no queixo, olha para o manequim onde está o vestido.

Nota-se que tem ainda um alfinete na boca, que tira.

ROSA Ponto, está feito (suspiro de alivio prolongado, ao mesmo tempo que põe as mãos nas ancas. Expressão de satisfação). O vestido está pronto, parece o calor desta tarde de Verão numa noite escura. Eh Rosa, hoje estás a falar muito bem, até dizes coisas bonitas, lindas (ri-se). O meu vestido está lindo, lindo, lindo, mas........

CENA 3 Nessa altura, Rosa, começa a subir as escadas laterais que dão acesso ao palco. O projector segue-lhe os passos. Chega perto do manequim onde está o vestido também iluminado e pára olhando-o de frente. O restante cenário está na escuridão total.

NARRADOR (em voz off) Já chega de escuridão e de apenas dois projectores, está na altura de darmos mais claridade a tudo. LUZES (fala mais alto ao mesmo tempo que bate as palmas. As luzes do lado direito do cenário acendem-se)

NARRADOR (em voz off) Do vosso lado esquerdo uma cama de ferro pintada de preto, com os lençóis desalinhados, uma almofada aos pés da cama. A nossa Rosa não fez a cama. Como podem ver, por cima da cama está um grande rosário de madeira que termina numa grande cruz pendente, sem o Cristo. Ao lado da cama uma pequena mesa-de-cabeceira, com um candeeiro, e um livro grosso, que eu depreendo ser......, sim uma Bíblia. Peço desculpa mas a minha vista já não é o que era, a idade...... Ao fundo conseguem ver uma porta semi aberta, uma casa de banho, pelo menos vejo uma banheira e um pequeno lavatório.

Vamos iluminar a parede de fundo. LUZES (quase que grita ao mesmo tempo que bate as palmas. As luzes da parede de fundo acendem-se e iluminam-na totalmente)

NARRADOR (em voz off) Um frigorifico pequeno com tachos, panelas por cima e um copo com duas rosas já murchas, pelo menos parecem. Segue-se uma pequena mesa com duas cadeiras tendo por cima uma fruteira com laranjas e limões. Ao lado o lava loiças com loiça suja, amontoada. Um armário de várias portas com frascos em cima de farinha, açúcar, massa, um saco de pão. Por cima um armário com duas portas.

Uff......

Bem vamos continuar a pintar este quadro LUZES (grita ao mesmo tempo que bate palmas com mais força. As luzes da parede da direita acendem-se e iluminam-na totalmente. O cenário fica completamente iluminado)

NARRADOR (em voz off) Uma porta com chaves na fechadura, a porta da rua. Ao lado um espelho grandes de corpo inteiro, a que se segue uma máquina de costura, tecidos, e mais tecidos de várias cores, branco, amarelo, vermelho. Penduradas na parede tiras de bordados e um quadro com a cara de Carlos Gardel.

Como podem ver, já temos o palco todo iluminado, já começámos a espreitar pela fechadura. Só falta esta cerca suspensa que é uma janela a fingir.

Agora calo-me.

CENA 4. (Rosa em frente ao manequim)

ROSA Está quase perfeito o meu vestido. (retira uma linha que estava a mais na manga. Afasta-se, volta a aproximar-se e ajeita com as duas mãos delicadamente os ombros, apertando-os com suavidade. Volta a afastar-se e põe a mão no queixo)

ROSA Hum...... (põe-se de cócoras e puxa a saia para baixo) Esta bainha tem de ser subida um dedo...... deixa ver..... sim um dedo, se calhar nem tanto, senão fica o vestido a roçar no chão e não se vêm os sapatos pretos. (levanta-se e afasta-se). Está lindo, uma obra-prima feita com restos de tecidos que sobraram.

Como foi possível fazer tudo isto, com restos? A camisa vermelha de decote quadrado, com fazenda da protecção da cama da Dª. Mariazinha (tira a camisa e põe na em cima da cama) Um pequeno corpete de seda branca que a menina Adélia não quis para o casamento do primo que veio de França. (tira-o e coloca-o também em cima da cama). Este espartilho branco com pequenas riscas vermelhas de renda na vertical, devia ser da minha bisavó (ri-se), e que para ali estava naquela confusão. ( tira-o e coloca-o em cima da cama, ficando o manequim sem nada vestido da cintura para cima)

A saia preta, lindíssima, feita com os restos do tecido que a D. Manuela, a viúva, levou ao centenário da Cooperativa (tira-a e coloca-a em cima da cama). O saiote foi a camisa com que o Gervásio fez a Primeira Comunhão e a mãe zangada depois de ele partir um vidro da Igreja, disse que a roupa é que tinha azarado tudo (tira-o e coloca-o também em cima da cama). A ceroula (ri-se) foi cortada porque era uma ceroula completa do marido da Dª. Lurdes. Coitado nunca a chegou a vestir (tira-o e coloca-o em cima da cama, ficando o manequim nú).

CENA 5. Rosa fica ao pé da cama a olhar para a roupa misturada com os lençóis e a coberta.

ROSA (sorri) Só me lembro do tango, do Nat King Cole e da Ansiedad (canta) Palavras di amor, Ansiedad ti quiero en mis passos e en tu boca volver-te a bessar. (música Ansiedad de Nat King Cole ouve-se ao fundo).

NARRADOR (voz off) Continua Rosa, queremos mais.

ROSA Que coisa, a camisa não termina em vê, vês Rosa? (pega na camisa vermelha ao mesmo tempo que sorri). Já não dá para alterar, só pegando na tesoura e cortando..... não vou arriscar. Está perfeita, se não levantar os braços..... Lá estou eu a brincar com o meu trabalho. Posso levantar os braços, as pernas, andar aos saltos, a correr, a dançar, o rock, a valsa, o merengue, o samba, o tango, sim o meu querido tango que o vestido não parte, não dobra, não rasga, nem se desfaz.

Como gostava de voltar lá bem atrás e com ele vestido o penteado ao alto. (puxa o cabelo para cima e dirige-se ao espelho, recua , olha para o manequim e hesita....

NARRADOR (voz off) Vá lá Rosa, despacha-te, senão nunca mais saímos daqui. Decide-te se o vestes ou não. Não nos obrigues a gritar (grita) Veste, Veste, Despe, Despe, como naqueles espectáculos de streap.

CENA 6 Rosa fica perto da cama de costas para a plateia.

ROSA Ah, ah, ah ....... agora é que vão ser elas, Volta Rosa estás perdoada.

(Rosa começa a despir a saia que tem vestida, depois a camisa, os chinelos, fica nua e grita Rosa, Rosa, Rosa, Força, Força, Veste, Veste)

ROSA Primeiro esta pequena calça (pega na calça), sem mais nada por baixo, nem calcinha de renda, nem nada, que macia (toca nela com as pontas dos dedos ao mesmo tempo que a começa a vestir). Depois este espartilho com rendas vermelhas, finíssimas, verticais. As pregas encaixam, aqui, aqui e ali. Tenho de ajudar as minhas mamas, que são grandes,(agarra nelas e comprime as de maneira a entrarem no espartilho), pronto já está.

Agora o saiote, com um ligeiro folho que se vai ver, pouco.(veste o saiote). Devo estar linda. A blusa transparente por cima deste espartilho que me achata toda (veste-a)

A saia preta, fatal (que veste de seguida) e para terminar a camisa com decote em quadrado deste vermelho fogo ( veste-a)

Posso calçar os chinelos, é o que vou fazer (calça-os), a imaginação fará o resto. E o que é que faço ao cabelo? Já sei. (dirige-se à mesa onde estão os frascos da farinha e do açúcar) as molas da roupa devem servir (pega em molas de roupa, e prende o cabelo com elas ao alto)

CENA 7. Rosa dirige-se e fica à frente do espelho a olhar.

NARRADOR• (voz off) Parece-me que posso ir apagando as luzes do quarto. LUZES (grita e bate as palmas. Nesse instante as luzes apagam-se todas, ficando só um holofote na direcção do manequim e outro a iluminar Rosa)

ROSA Lembro-me de olhar para o espelho e dizer para mim: Rosa, vais ser a mais bonita da festa, e assim foi. Quando entrei no salão de baile, os rapazes sussurravam, o Frederico, o Gonçalves até o Fernando e o Xico que coraram de surpresa por me verem assim. Rosa a filha dos ciganos Maia, do acampamento à entrada da vila, estava linda. Eles com aquela cara de parvos, de terno e gravata que lhes apertava o pescoço e os fazia suar por todo o lado.

As raparigas que antes troçavam de mim, roídas de inveja, sim de certeza, que era a mais bonita, a mais bem vestida. Podiam pensar que a saia estava comprida, que a blusa era feia, mas rendiam-se à evidência, A Rosa cigana era a mais bonita.

Lembro-me então do Artur vir direito a mim.

NARRADOR (em voz off) Danças? Dás-me a honra de dançar contigo Rosa?

ROSA Sim. E nessa altura começámos a dançar. O Artur agarrou-me pela cintura, eu estiquei a mão direita (faz o gesto), e começámos a dançar o tango.

CENA 8. Neste momento começa a tocar o Libertango pelo quinteto de Astor Piazolla. Rosa começa a dançar o Tango sem par.

NARRADOR (em voz off) Está na altura de.......

ROSA (ao mesmo tempo que dança) Sim, o tango, mais um passo, mais uma volta a cabeça para trás. Já estou velha, mas ainda não lhe perdi o ritmo, ainda sou capaz de lhes mostrar que mesmo filha de ciganos, sou como elas, até sei fazer os vestidos que elas sempre usaram.

Rosa dança até parar a música. Quando a música pára, dirige-se às escadas do lado esquerdo do palco e começa a descer, sempre iluminada pelo holofote. Ao chegar à primeira fila, pára, põe a mão no queixo, e ri-se enquanto olha para o manequim iluminado.

NARRADOR (em voz off) Bem, senhoras e senhores, está na hora de pôr a chave na fechadura e acabar de espreitar. Pano (grita e bate as palmas. O pano começa a descer lentamente. O holofote que ilumina Rosa apaga-se.

NARRADOR (em voz off) Adeus Rosa, gostei muito de dançar contigo. Fim (grita, escuridão total).