Carlos e Beatriz

I

Carlos e Beatriz se conheceram bem cedo, logo na primeira turma do colégio. Amor à primeira vista, e olha que eles nem sabiam o que era o amor. Quando perguntavam a Carlos, por exemplo, se ele já tinha namorada, respondia rápido e sem pestanejar “Sim, tenho. É Beatriz. Vou casar com ela.” E realmente casaram. Em toda a vida só se amaram, exclusivamente. Um verdadeiro paraíso a relação dos dois.

Carlos seguiu a carreira de diplomata e por via das influências conseguiu rapidamente um emprego na embaixada italiana. Beatriz, que ainda cursava a faculdade de psicologia, teve que abandonar tudo a contragosto e acompanhá-lo.

Mas esse não era o futuro de Beatriz. Queria ter vida própria e lá só existia a margem de si mesma. A verdade é que Beatriz, em Roma, não possuía ninguém: nem família, nem marido – que agora andava ausente – e nem ela. Um grande purgatório a sua existência. Não agüentou. Abandonou o marido numa dessas viagens de ofício que ele fazia. Ele a esperava no aeroporto de Paris, enquanto ela olhava as águas quentes do oceano Atlântico já de volta ao Brasil.

II

Apesar da grande decepção, Carlos continuou a sua vida pela Europa. Soube do destino de Beatriz pela carta que encontrou em sua casa em Roma. Lá, ela explicara tudo. Explicara a sua covardia e seu tédio, e que nunca imaginara a separação. Mas não podia continuar a viver assim, era capaz de começar a odiá-lo, e isso ela não queria.

Berlim, Budapeste, Paris, Londres. Carlos viajava por toda a Europa, porém nunca mais quis pisar em Roma, na cidade que tinha sido feliz. A Itália transformara-se numa bota velha que lhe deu um coice. Residia agora em Lisboa e toda a sua vida estava imersa na verdade numa gigante penumbra. Desandou a beber e a freqüentar as putas sujas das grandes cidades sempre em busca de algo que lhe suprisse a falta de Beatriz. Em cada aeroporto, aquela imagem da ausência de sua amada, embasava-lhe a vista que, também influenciada pelo estado de entorpecimento alcoólico, confundia nos letreiros de pouso e decolagem o nome de Beatriz com o de qualquer outra cidade iniciada com B. Berlim, Budapeste eram sempre Beatriz, Beatriz.

Tornou-se um péssimo diplomata. Mandaram-no de volta para o Brasil para ocupar um cargo discretíssimo, burocrático mesmo, na embaixada americana do Rio.

III

Em sua viagem de volta, comprou na livraria do aeroporto, numa escala inevitável em Roma, A Divina Comédia porque encontrou nele, encruado, o nome de Beatriz.

Tornou-se obcecado pelo livro. O itinerário de Carlos tornou-se simples e doentio. Saia de casa para o trabalho, voltava e ficava imerso na leitura e na bebida. Já nem precisava ler o livro, conhecia-o de cor. O que ocorria era o seguinte: embalado pelos ritmos dos versos ele se deixava lânguido na cadeira, o livro sobre o peito, a recitar em voz alta alguns cantos da comédia:

Per me si va nella città dolente,

Per me si va nell’etterno dolore,

Per me si va tra la perduta gente.

Saía somente nos finais de semana para ficar novamente imerso na languidez. Procurava algum bar em Ipanema ou Copacabana e ficava. Livro na mão, copo na outra, a voz a recitar os versos. Quando o pôr-do-sol se anunciava, pagava a conta e saia a caminhar pela orla recitando os mesmos versos. As pessoas olhavam e sentiam pena.

Abandonou o trabalho. Endoideceu. Só sabe dizer os versos de Dante Alighieri na orla de Copacabana. O livro tornou-se a sua vida. Sabia de cor os cantos do inferno e do purgatório. Já os do paraíso foi rasgado ainda na primeira leitura.

IV

E então, o que aconteceu com a Beatriz de Carlos?

Naquela viagem de volta, sentado ao seu lado no vôo, encontrou um belo rapaz chamado Dante. Lia A Divina Comédia. Ele lhe mostrou o livro. Ela encantou-se com o livro encruado de seu nome e com os belos olhos do rapaz. Casaram-se anos depois... Sabiam a comédia de cabo a rabo. Nas madrugadas, se deleitavam com o sexo e com o paraíso.

Encorajada pelo novo marido, Beatriz retomou a faculdade de psicologia. Formada, trabalhava numa clínica em Botafogo.

Numa tarde de domingo foi surpreendida. Carlos acabava de ser entregue pela mãe para tratamento. Beatriz o reconheceu, e com remorso, fez questão de pegar o caso. Carlos, demente e mudo, nunca percebeu a sua Beatriz. Caso irrecuperável. Nenhum remédio ou choque adiantava. Depois, muito tempo depois, ela descobriu por acaso, quando recitou um verso de Dante, distraída, a cura da catatonia de Carlos. Ela compreendia tudo. Só não entendeu porque, quase restabelecido, Carlos regrediu quando ela chegou nos versos do paraíso.

de Castro
Enviado por de Castro em 12/09/2006
Código do texto: T238227