O Sangue Trancende Teu Amor - Mariana de Aura Clara

Era uma tarde fria de outono, ou talvez inverno, Mariana olhava hesitante para a navalha. Lhe ocorrera noite passa um pensamento, lhe faltava uma certeza e havia acabado sua carteira de cigarros. Deitada num lençol manchado do sangue que outrora escorreu de seus pulsos, ela tremia do frio, mas não encontrava a força necessária para encontrar um cobertor, se tapar e adormecer até chegar a noite com suas garras de aço.

Juntos forças sabe-se lá de onde e desceu as escadas do prédio, se deparou com a rua suja, estava igual lembrava dela pela ultima vez. Sentia o medo lhe ofuscar a visão, o olfato, o tato, as pernas tremiam, os lábios se batiam e um frágil olhar notava a movimentação de um bar logo na outra calçada.

- Um Marlboro maço...

- 3,75!

- Aceita cheque?

Saiu frustrada do bar, ainda ouvia do outro lado da rua as risadas dos fregueses felizes, bebendo cerveja ou cachaça pura, aliviando suas dores e se preparando para a morte. Para ela era um pouco mais difícil aliviar a dor, era um pouco mais difícil viver, era um pouco mais difícil morrer.

Atravessou a rua e pensou ter sido atropelada, quando olhou pra trás o carro dobrava a esquina buzinando, o motorista revoltado gritando, e até pedestres perguntando:

- Quer morrer sua louca?

Ela pensava, "o que sabem sobre a morte?", mas só pensava. Não falava. Havia dor no seu olhar, também nas mãos, nos gestos, nos sentidos.

O sol se pôs, encontrou cigarros com um velho e os pediu. Carentemente lhe foi cedido quase um maço, Hollywood, o cigarro do sucesso.

Sucesso. onde?

Mas foi o fracasso que lhe seguiu, entrou junto dela no apartamento 208 e não se afastou. Lá ele estava, ao lado da navalha, seduzindo Mariana. Tanto peso em suas costas, tanta decepção; a valvula de escape. Não era fácil morrer, queria matar apenas a parte ruim de seu ser. Não sabia como. Fumou o terceiro cigarro.

Olhou seu rosto no espelho, fez um corte nele para que o sangue escorresse por ele e lhe ocultasse a face. O sangue correu pelo pescoço, foi até os seios nús e tocou seu coração. O líquido vermelho e quente fez se lembrar de um conturbado amor, amor quiroguiano, do tipo que ele pintava em suas estórias. Un Amor Turbio. Lembrou do aborto, a decepção, a escolha dele pela navalha. Lhe cortou o peito aquele sangue quente. Precisava se livrar daquilo, o amor dela não podia perder para a dor, aquele sangue não era maior que seu amor!

Um soco no espelho afastou suas duas caras, uma Mariana de Aura Negra e a outra clara, frente a frente como o fantasma e o padre. A morte era a única saída, sabia e não iria hesitar dessa fez. Foi até a cama, afastou o fracasso e pegou a navalha. Mariana de Aura Negra cravou no seu pescoço de uma só vez e o sangue jorrou atingindo o espelho, manchou os cacos em pedaços, mas somente a parte onde sua Negra face aparecia. O sangue quente escorreu até acabar, sobrou um corpo sem vida que desapareceu junto do sangue.

Mariana de Aura Clara se olhou no espelho e um rosto apenas ela viu, o de uma vida inteira pela frente.

Reny Moriarty
Enviado por Reny Moriarty em 20/07/2010
Código do texto: T2389328
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