Andarilho

Vivia perambulando pelas ruas.

Primeiro depois que saiu de casa, fugindo de surras bêbadas. Depois por uma questão de costume.

Após um tempo a fome parece uma amiga querida. Não é apenas a fome de comida, mas a fome de ser esquecido. À força de hábito esquece-se de si mesmo, de que tem desejos e de que um dia existiram sonhos que apontavam os caminhos.

Fica-se meio catatônico, seguindo com o espírito a esmo, uma espécie de loucura que vai acontecendo insidiosa e aprisiona o espírito. Um corpo em que o espírito é prisioneiro é um corpo em perigo. Pode ser que se torne violento, lascivo, espúrio. No seu caso tornara-se apenas vazio e sombrio.

Era no meio dessa indiferença toda que sua existência se fazia. Indiferença dos outros, mas também indiferença de si mesmo. Não importa a coisa nenhuma o nome que lhe dão, se continua sendo uma coisa. O que importa é sua utilidade, mas essas já não eram angústias que lhe afrontavam. Há muito não se dava mais ao capricho de fazer o pequeno ritual para urinar. Fazia ali mesmo, enquanto andava pra qualquer lugar, sem mudar a marcha.

E o mundo se abria à sua passagem, por repugnância e não reverência. Ele era uma chaga feia, aberta na pele delicada e sensível da sociedade, seus sonhos trancados em um baú esquecido.

Mas! Eis que numa dessas brechas abertas no asfalto, um girassol teimoso encrencou de brotar contra todas as probabilidades e bem próximo de uma ponte, em que a indiferença passava a oitenta quilômetros por hora todos os dias.

A beleza tem o dom de transformar. E de alguma forma a beleza o transformou. A flor aberta foi como uma pequena janela se abrindo pela primeira vez em muitos anos. Como o primeiro em muitos anos foi o seu sorriso de dentes estragados.

Naquele dia ele não andou a esmo. Nem mesmo deixou o abrigo do viaduto como já fizera tantas vezes. Por alguma estranha razão, decidira que aquele ali seria o seu lar e que o girassol era seu jardim particular. Não importava se um pouco acima, ninguém mais enxergava o pequeno milagre que ali acontecia.

Marcelo FAS
Enviado por Marcelo FAS em 09/08/2010
Reeditado em 16/05/2012
Código do texto: T2428539
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