O Último Floco de Neve
"Nevava como nas minhas lembranças. Incrível e inacreditável como tudo mudara desde o Natal daquele ano."
Já fazia quase três anos que nós dois passamos o nosso último Natal com a nossa família. Nevava muito todas as noites, porém naquela noite especial os flocos caíam lentamente e planavam levados pelo vento, que não passava de uma leve brisa noturna, até chegarem ao chão onde uma camada de neve se acumulava até a altura do meu joelho.
Na cozinha minha mãe terminava de preparar a ceia de natal e na sala de estar meu pai estava sentado de frente à lareira contando-nos histórias de seres místicos, que viviam nas neves dos picos das montanhas mais altas da Sibéria. Eu e minha irmã já tínhamos dezesseis anos e não acreditávamos mais nessas histórias fantásticas, mais não era sempre que tínhamos nosso pai em casa e isso já virara uma tradição no Natal, sem falar que nosso irmão caçula de sete anos adorava ouvir essas histórias a noite toda.
Minha mãe entrou na sala onde estávamos e anunciou que a ceia estava pronta. Levantamos-nos e sentamos a mesa, nós cinco. Meu pai iniciou a prece e minha mãe terminou. Sobre a mesa repousavam uma torta de morango, uma garrafa de vinho e outra de refrigerante, algumas tigelas com comida e o peru assado ao centro. Ceiamos alegres.
Ao final da ceia era a hora que nós três mais gostávamos: a hora de abrir os presentes. Eu, Laisa e Rocha, o caçula, abrimos cada um uma caixa entregue pelos nossos pais. Eu ganhei um volante que servia de controle para os meus jogos de computador. Já sabia dirigir, meu pai ensinara-me no verão, e eu era apaixonado por jogos de corrida. Minha irmã gêmea ganhou o kit de pintura que ela tanto queria e meu irmão caçula ganhou um carro de controle remoto. Da nossa parte, meus pais ganharam um relógio, meu pai, e um vestido, minha mãe. Não eram nada de grife, mas era o que eu e Laisa pudemos comprar com nossas mesadas.
* * *
Um homem de branco passou em frente ao buraco na parede, pelo qual eu espiava, fazendo com que eu abandonasse minhas lembranças e voltasse à realidade. Era um soldado.
- Filipe!
Sentado na cama da minha irmã, encostado na parede, voltei-me na direção do sussurro:
- Mana, não se preocupe. Lá fora quase todo mundo foi dispensado. Apenas alguns homens guardam a saída e algumas das guaritas no muro.
* * *
No início do mês de novembro daquele ano, que tivemos nosso último Natal em família, foi declarada guerra na Europa e na Ásia. Dois blocos se formaram: a Liga de Berlim, formada pela Rússia, Alemanha, Polônia e Iugoslávia contra o bloco, que integrava a França, Espanha, Áustria e Itália, mas não tinha um nome, contudo era comumente chamado de Liga de Veneza, pois foi onde a primeira aliança entre esses países foi firmada.
Esses dois blocos já vinham ameaçando-se na área econômica, mas um submarino francês foi destruído pela Rússia, que alegou que aquelas eram águas russas, contudo a França com o apoio da ONU provou que o submarino fora torpedeado em águas internacionais. Assim começou a guerra.
Eu e minha família morávamos na Suíça, que se mantinha neutra, por isso mão estávamos ameaçados, a princípio, mas marcamos uma viagem para o Brasil no final do mês de janeiro. Entretanto a guerra avançou de uma forma como o mundo nunca vira: no final de dezembro a Liga de Berlim já dominara toda a área entre o Mar Báltico e o Mar Negro e agora avançava para dominar a Áustria e com isso só faltaria a nossa Suíça entre eles e a França e Itália. Com isso a guerra nos alcançara nos primeiros dias do ano de 2011.
A Suíça morreria antes do final do mês.
* * *
O alojamento no qual ficamos desde que chegamos aqui é enorme e não tinha distinção entre garotos e garotas. Cento e oitenta adolescentes como eu e Laisa dormiríamos juntos nos noventa beliches espalhados igualmente: quarenta e cinco em cada lado do galpão. No centro havia um corredor de dois metros de largura que atravessava toda a extensão da porta até a frente oposta do alojamento.
No começo não entendi o que fariam conosco. Meu primeiro pensamento foi que esse lugar era um campo de concentração assim como os nazistas na Segunda Guerra, mas logo meu medo de ser assassinado sumiu: fomos levados até um grande auditório no qual um homem trajando um uniforme militar diferente dos demais, provavelmente um oficial, nos explicou que aquele era o “1° Campo de Treinamento de Guerra” ou simplesmente “Campo”, como ele preferia chamar. Não seríamos mortos, mas treinados para lutar caso a guerra durasse mais de três anos.
- Eu não aceito isso!
Um garoto da minha idade levantou-se e começou a gritar que não aceitava isso, mas um dos soldados que estava imóvel atrás do oficial sacou a pistola e, com a mira lazer, apontou para a testa dele esperando a autorização de seu superior.
- Não aceitaremos insurreições nem revoltas! – Gritou o homem perdendo totalmente a calma e a postura com que falara até agora, chegando a quase babar de raiva.
O som do tiro sequer ecoou e o garoto tombou para trás. Morto.
- Vocês todos, os cento e oitenta, digo, cento e setenta e nove, viverão aqui até o mês de janeiro de 2014. Com guerra ou sem guerra. – Ele fez uma pausa enquanto nos observava. Voltara a falar de forma mansa e com uma pequena pausa entre cada frase. Gostava daquilo.
Nós estávamos petrificados de medo, surpresa e ódio.
- Todos. Garotos e garotas passarão pelo mesmo treinamento. Não voltarão para casa sob hipótese alguma: estão em território Russo. Sem falar que seus pais estão mortos. – Essa última frase foi carregada de pura falsidade e o maldito esboçou um pequeno sorriso. – Ninguém tem conhecimento desse lugar além de meus homens. Este é um projeto do governo e vocês são nossas cobaias. Dispensados.
Com essa última palavra os soldados que estavam o tempo todo imóveis atrás do oficial desceram do palco e começaram a nos empurrar até a saída e dela ao alojamento.
Logo na primeira noite no alojamento sonhei com a noite na qual os soldados invadiram a nossa casa, e essa não seria a última vez que teria esse sonho.
Nosso país sempre se posicionara neutro até mesmo nas guerras mundiais e isso nos tornou inexperientes na arte da guerra. Por conseguinte a Liga de Berlim invadiu e dominou a Suíça em menos de um dia, com seus tanques e pára-quedistas.
Nós cinco estávamos escondidos no sótão e meu pai trancara a saída, mas a porta foi destruída e cinco soldados entraram, além de um homem que em vez de capacete utilizava um quepe. O homem de quepe não portava fuzil, apenas uma pistola. Apontou a arma no peito do meu pai que nos protegeu ficando na nossa frente. Nunca vou esquecer o som do disparo, nem meu pai tombando com um tiro no peito. Minha mãe me segurou. Eu tinha só dezesseis anos, mas queria matar aquele homem.
- Matem a mulher e a criança. – A voz do oficial sequer se alterou, como se o assassinato da minha família fosse mais corriqueiro e banal do que amarrar os sapatos.
Dois soldados seguraram minha mãe e outros dois dominaram a mim e a Laisa com uma chave de braço cada um. O soldado que sobrara segurava Rocha pelo braço mantendo certa distância da criança. O homem de quepe atirou sem pestanejar matando minha mãe e meu irmão.
- Levem os dois para o caminhão. Deram sorte.
Eu olhei para o lado e vi Laisa ser acertada por uma coronhada e desmaiar. Na mesma hora olhei para frente e senti uma forte dor no lado da cabeça, enquanto eu via os corpos dos meus pais e do meu irmão inertes em poças de sangue. E tudo se apagou.
Quando acordei demorei um pouco para perceber, mas estava no chão de um vagão de trem junto com outros adolescentes da minha idade.
- Laisa! – Chamei.
- Filipe? Aqui! – Ela respondeu e sua voz vinha do outro lado do vagão.
Atravessei o espaço entre nós com cuidado, pois mais de trinta garotos e garotas estavam deitados no chão, alguns acordados, outros dormindo ou desmaiados. Quando cheguei até minha irmã, ela me abraçou e começou a chorar.
Não sabíamos, mas nosso trem tinha destino certo: o Campo.
* * *
No alojamento, eu voltei a espiar pelo buraco e depois virei novamente para Laisa, que também estava sentada na cama dela ao meu lado:
- Vamos conseguir! É como eu te disse: no Natal e Ano Novo as patrulhas diminuem.
- Você tem razão: ano passado foi assim.
- Isso! E esse ano conseguiremos fugir!
- Eu sei que tem menos segurança, mas como vamos passar pelos que sobraram?
- Não sei. Só sei que vai ser naquele caminhão. Olhe.
Laisa se aproximou e olhou por um tempo para o buraco na parede de madeira. Enquanto ela olhava, eu expliquei que ao lado do alojamento ficava o estacionamento para as viaturas dos oficiais e mais adiante para os comboios, onde estavam estacionados diversos caminhões.
Ela voltou a olhar para mim e comentou:
- Perfeito!
- É. Agora descanse, porque só acontecerá amanhã. Na noite de Natal.
* * *
A cama de Laisa era acima da minha. No começo não era, mas conseguimos convencer uma garota a trocar com ela. Hoje, no entanto, isso não seria necessário: menos de cem camas estavam ocupadas. Vários morreram numa rebelião logo no primeiro ano, na qual eu e minha irmã nos escondemos no local aonde treinávamos artes-marciais, e alguns poucos se mataram.
A rotina era pesada: acordávamos cedo na alvorada e estudávamos até a hora do almoço. No período da tarde, tínhamos aulas específicas como estratégia de combate, tiro com pistola e fuzil e vários tipos de lutas, além da educação física até a hora do jantar. Depois de um tempo para o banho e do jantar era a hora do estudo obrigatório até o horário de silêncio, às dez horas em ponto.
Acordar na alvorada, as seis, e ir dormir no silêncio, as dez, era obrigatório.
Vivíamos mais livres do que eu imaginara no início. Existiam patrulhas apenas nas saídas e nos muros. Conosco ficava apenas um oficial encarregado por um grupo de dez alunos, como éramos chamados: alunos.
Tínhamos folga nos finais de semana e feriados, mas não podíamos sair do alojamento, muito menos do Campo, afinal carregávamos conosco um colar, que segundo o general Schior, o homem que primeiro falara conosco, detonaria se saíssemos do perímetro do Campo. Na verdade, os “colares” pareciam mais com coleiras, mas as garotas chamavam assim e em pouco tempo todos adotaram esse nome. Nunca ninguém fugiu e por isso não sabíamos se esse “colar” funcionaria realmente e, como ele não passava de uma tira fina de metal, esquecíamos-nos deles com freqüência.
* * *
Acordei cedo na manhã seguinte e chamei Laisa. Precisávamos passar o dia observando e esperando a melhor hora, para enfim fugir desse lugar, embora eu tivesse certeza que essa hora só chegaria à noite. E ela chegou. O dia passou como uma semana inteira: cada minuto levava horas e enfim era quase meia-noite. Esperamos mais um pouco e, quando faltavam apenas cinco minutos para o dia seguinte, saímos furtivos do alojamento e corremos pelas sombras até o nosso alvo: o maior dos caminhões no estacionamento. Ele era responsável pela retirada da neve das estradas e por isso eu o escolhera.
Meia-noite. A guerra ainda ocorria e era apenas uma questão de tempo antes da Liga de Berlim destruir totalmente a Liga de Veneza, contudo a frente de batalha era longe da Rússia, logo os soldados que estavam de patrulha relaxaram um pouco e de certo modo comemoravam seu Natal: alguns guardaram o jantar para improvisar uma ceia e outros simplesmente bebiam. Nenhum deles percebeu quando o imenso caminhão começou a acelerar e só se deram conta, quando ele se chocou com as grades do portão principal destruindo-as e ganhando a estrada. Fora do Campo.
Eu e Laisa gargalhávamos e nada mais importava, nem mesmo as sirenes de alarme que ficavam para trás.
Com a surpresa conseguimos imensa vantagem e já distanciávamos quase três quilômetros do Campo, quando pudemos ler uma placa azul quase coberta de neve:
Com os olhos cheios de lágrimas, Laisa falou:
- Enfim saímos desse lugar!
Ela se jogou no meu pescoço me abraçando. Eu estava dirigindo então não pude retribuir, só diminui a velocidade, para poder olhar para ela.
Minha irmã me apertou forte, mas quando a pele de sua mão encostou no metal frio do meu “colar”, ela puxou a mão como se tivesse levado um choque e eu olhei para ela. A gente se encarou por um instante e depois ela se encostou novamente em mim colocando a cabeça no meu ombro.
Sabíamos que o “colar” não podia ser retirado, mas preferíamos isso a ter que lutar na guerra.
- Mana, eu te amo.
Sem abrir os olhos e com uma lagrima descendo pelo rosto ela respondeu:
- Eu também te amo.
Ficamos em silêncio e pudemos ouvir bem baixo um bip que ficava cada vez mais rápido até que ficou contínuo por dois segundos e por fim cessou.
Outra lágrima desceu pelo rosto de Laisa e nesse breve segundo eu me lembrei da neve que caía naquele último Natal, três anos atrás, e notei que também caíam alguns pontos brancos do céu agora. Um deles entrou pela janela e eu o acompanhei com o olhar antes de tudo ficar escuro. Sequer ouvimos o som da explosão do “colar”, mas era melhor assim.
Com o pára-brisa manchado de vermelho, o que contrastava com o capô pintado de branco pela neve, o caminhão desgovernou-se e derrapou numa curva capotando duas vezes antes de explodir.
Enfim estávamos livres e em breve veríamos novamente nossa família, todos juntos como naquele último Natal.
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Obrigado aos meus dois amigos que me emprestaram seus nomes.