Carta ao amor distante

Mendes, 07/12/1999

Minha doce, eterna e distante amada, mais uma vez sento-me pra escrever-lhe uma carta. Nos últimos quarenta anos, esse momento tem sido um dos mais prazerosos na minha vida. Pegar um papel e colocar nele todas as minhas alegrias, angustias, decepções, tristezas, esperanças... Enfim, toda dor e prazer que um ser humano pode experimentar. Antes de continuar, preciso lhe contar que dias atrás me tornei viúvo. Célia, já não vinha bem de saúde há algum tempo. Problemas nos rins. Não resistiu à última crise. Estou envergonhado por que, de certa forma, me sinto feliz pela partida de Célia. É como se eu tivesse tirado um peso de minhas costas. Há muito que nós já não nos amávamos. Só você é meu amor. Como eu gostaria de poder te abraçar agora, nesse exato momento. Também, não vou mais precisar sentir remorso, por estar escrevendo pra você aqui na mesa da sala com Célia do meu lado, aproveitando-me do fato dela ser analfabeta. Sempre dizia pra ela que eu estava fazendo anotações sobre as despesas do mês. Ontem, olhei no espelho e a minha imagem envelhecida me assustou, mas também, me fez lembrar do ano de mil novecentos e cinqüenta e nove, quando te escrevi a primeira carta. Você se lembra? Peguei seu endereço naquelas sessões do Correio Sentimental, que existia em algumas revistas da época. Resolvi te mandar uma carta sem qualquer pretensão. Para meu espanto, sua resposta chegou alguns meses depois. Desde aquele ano, nunca mais paramos de nos corresponder. Ficamos enamorados, nos tornamos apaixonados, porém, nunca nos vimos. Há momentos em que não acredito nisso. Correspondemos-nos há quarenta anos e não nos conhecemos pessoalmente. Nem sua voz eu conheço. Minha linda amada, porque nunca tivemos coragem de largar tudo para ficarmos juntos? Éramos jovens, tínhamos a vida inteira pela frente, você era livre. Talvez eu devesse ter tido essa atitude. Faltou-me iniciativa? Não sei. Talvez receio, de que nós dois descobríssemos que nossa paixão só resistiria com a distância. Não adianta nada eu ficar fazendo esses questionamentos agora, eles só servirão como uma forma de tortura. Estou com oitenta anos, sinto-me cada vez mais fraco e dependente de outras pessoas, mesmo que eu não admita isso. Você está casada, tem seus filhos e netos. Que desculpa daria a todos eles pra sair de Curitiba e vir até aqui, no interior de Rio de Janeiro? É muito doloroso ter a certeza de que vou morrer sem conhecer meu verdadeiro amor. Você, sendo essa excelente poetisa, ainda pode usar do artifício de transmitir para as letras todo esse sentimento de perda. Perda de um amor tão belo. São incontáveis às vezes que já li aqueles três livros de poesia escritos por você. As páginas estão amareladas de tanto que eu os folheio. Esses livros foram os melhores presentes da minha vida. De certa forma, eles te trazem pra perto de mim, assim como suas cartas. Durante todos esses anos, meu coração acelerava cada vez que via o carteiro entrando aqui na rua. Ainda é assim até hoje. Nunca consigo esconder a euforia por encontrar sua letra, por saber que aquele pedaço de papel contém um pouco do seu cheiro, da sua pele. Será que eu não sinto ciúmes desse papel? Afinal de contas, ele recebeu o toque das suas mãos, coisa que eu nunca vou ter. Mãos que você já me descreveu tantas vezes. Mãos de dedos longos e suaves. Minha única e verdadeira paixão, vou me despedir de você, já torcendo para que sua próxima carta não demore a chegar. Como te peço todos os anos, não deixe de pensar em nós dois na noite de Natal. Estarei aqui pensando em você. Beijos eternos.

Mário

Esta carta é fictícia. Porém, baseada em uma história real, que me foi relatada pelo sobrinho do senhor Mário, que conviveu com ele nos seus últimos dias de vida. O senhor Mário faleceu no ano de 2000, sem nunca ter se encontrado com sua amada.

Elano Ribeiro
Enviado por Elano Ribeiro em 19/09/2006
Reeditado em 18/11/2006
Código do texto: T244079