Pink Floyd e o Canteiro de Porta-Retratos

As musas não morrem jamais. Quando eu morrer você estará imortalizada pelas canções e poemas que eu fiz pra você. E isto é a ponta do meu iceberg de intenções materializadas ou não; boas ou más. Mais do que as canções e poemas, eu te dou minha vida. Eu te dei minha vida – ou uma considerável fração. Merece? Não sei. Ninguém saberá, pois não se trata de comércio – tudo vale quando não se pode mensurar. Diante da conjectura aqui, nada é tão incomensurável quanto a entrega dos amantes: e todos os amantes são venais. Mas tu vales quanto pesa. Há em ti toda a insustentabilidade das musas. És a minha musa. És caminho. És uma jibóia a estrangular e despedaçar os ossos do orgulho de um homem que sangra em dor. Dor boa: é mel estar vivo contigo. É mel. Assim como há doçura nesta amorosa fuga, e em toda a dor que desta fuga advém.

Estou me lembrando da primeira casa em que moramos. Colchonete no chão; Pink Floyd no videocassete ( Pink floyd sem a presença de Roger Waters nunca me incomodou, pois não entendo muito de inglês – não o suficiente para analisá-los do ponto de vista de grandeza poética. E posso dizer que algumas letras traduzidas que li da fase pós-Waters me agradaram muito. Gosto muito do Roger Waters e tudo o que ele criou musicalmente, mas ele não foi o inventor do disco conceitual nem do rock com conteúdo crítico); Rolling Stones em show ao vivo na Globo (não amo Stones – amo Beatles); garrafas de cerveja no chão; garrafas de vinho no chão; condons usados jogados no tapete e todas as coisas em meio aos cheiros de sexo.

Começávamos a montar nossos porta-retratos. Eram, sem que soubéssemos, mais do que nossos brinquedos de estar, um exercício de afirmação do nosso estar.

Nesta época você já se transmutava em muitas pessoas e isso já confundia meus olhos. Você já era estes muitos seres que é hoje: companheira amada, mãe, mãe de minha cria, antiga namorada, antiga paixão, paixão nova, paixão platônica, Deus, formiguinha. Quantas peles você já teve? Às vezes você me chega com a pele escura; às vezes como música; às vezes como cinema; como fruta: então eu te como e trago pra mim a delícia do paladar do teu corpo multicor. Retiro cuidadosamente a tua casca – isso quando não como com casca e tudo – e me reafirmo como o teu gourmet.

Tudo o que digo sobre você é pouco e pouco compreensível. Muito já disse sobre você e não disse ainda nada. Muito já foi cantado, sentido, experimentado – e como experimentamos juntos, isso nos faz, de certa forma, iguais. Do enredo de nossa novela poucos sabem. Poucos sabem da seqüela que causa estarmos vivos e se degradando como tudo o que vive. E todas as coisas estão vivas. E todas as coisas são cinema. E todas as coisas são minerais. E isto é o meu reino; nosso reino. E isto é assim.

Tenho pensado sobre tua face negra – a que tem pele negra. Ela não está nos porta retratos, mas está presente, em forma e sutil e enigmático e microtexturizado blues, na música do Pink Floyd. A África está em quase tudo: na gênese humana, nos quadris humanos, no maravilhoso cérebro dos músicos – até nos do Floyd –, em toda a arte humana, nos alicerces e nas paredes das construções que vemos, nas minhas veias, e, às vezes, diante dos meus olhos, em forma de bela fêmea. A África é minha revolta, meu deleite, minha enciclopédia.

Muitas vezes desejei ter pele completamente negra (mulato claro, eu já sou) para que eu pudesse ter um desafio a mais: vencer na vida por méritos apenas; nunca por possuir um rosto simétrico de feições brancas. Tudo para o negro é mais difícil. Não quero falar de sociologia; todos sabemos do que estou falando: de como é pesado ser preto quando se nasce em um mundo onde os bonecos de super-heróis dos meninos são todos brancos, as bonecas são brancas, os anúncios de cosméticos para negras promete alisar seus cabelos – como se ter nascido com o cabelo crespo fosse uma desvantagem real . Essas coisas, definitivamente, me cansam. Amo, sim, as coisas dos africanos (sobre a religião: menos como coisa sagrada e mais como riquíssimo folclore). As coisas africanas que os europeus roubaram ou desprezaram, eu amo. Amo os negões. E, talvez, ame você, com essa pele marrom com que neste instante se apresenta. Quando vai parar de mudar de pele?

Mas existe uma coisa que também me é deveras cansativa: as mensagens de garrafas de mar. Me cansa, e quase revolta, pensar em como é difícil que alguém venha ler e decodificar nossa mensagem – a mensagem que escrevemos com alma e zelo, mas que sai desorientada, para jamais ser lida ou compreendida.

Sendo assim, você nunca vai saber quem sou. Nunca vai saber que eu te amo e que sofro e gozo pela tua existência – resguardada toda a ambigüidade dos verbos amar e existir .

Luciano Fortunato
Enviado por Luciano Fortunato em 21/09/2006
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