Jornada aos dias esquecidos

Primeiro dia

Escrevo, pois sei que, se contar, ninguém acreditará; porque nem eu acreditei, e, mesmo agora, quase dez horas depois, ainda não entendi o que aconteceu, o porquê, ou como... e por que comigo.

Sei: é um intróito mais que confuso; creio que tem a ver também com não saber como começar a registrar o caso – e com a esperança de amanhã, ao acordar, tudo estar normal, deixando de haver, portanto, necessidade de qualquer testemunho. Mas se for uma fantasia, um sonho, já durou tempo demais – o problema é o ‘demais’ –, sem pensar que nenhum sonho pode ser tão coerente, eivado de cores, odores, suores e valores, concretos, indefectíveis, ao alcance de olho, nariz, mão e alma.

Hoje amanheceu há vinte anos. Houve uma espécie de retorno no tempo (é boa, essa, ‘retorno no tempo’, que sátira!); neste momento estou sentado à escrivaninha (material mor da fogueira junina de dois anos atrás) que ficava no canto da sala de uma casa da qual minha família mudou-se faz séculos. O calendário sobre o móvel – e outro pendurado na parede da cozinha – marca o ano 1983; não sei precisar dia e mês (soaria esquisito perguntar), mas presumo seja o dia contínuo ao de ontem – quero dizer, meu ontem normal.

Quando abri os olhos pela manhã notei a diferença: onde o lençol de seda, ao qual me apeguei depois do fim do caso com E. (ela mesma de seda... seda e rosas...) e que quase fede, porque não deixo lavar com a freqüência necessária, mas deixo a diarista sem entender patavina? Onde a janela escura, absolutamente imprescindível às crises de enxaqueca? Pensei que sonhava, aquela sensação de ser surpreendido pela racionalidade bem no meio de uma fantasia... Era o contrário: a surpresa da fantasia e premência em racionalizá-la.

Quem já não quis voltar ao passado: reviver alegrias, aquele passeio num dia mágico, a amizade de infância – possível até com uma menina! – o primeiro beijo? Ou corrigir enganos, atitudes, não lançar a flecha de certeira palavra, acreditar no palpite de um jogo... A chance de experimentar um caminho preterido, de testar-se em outra experiência, em outra circunstância... Quem não...?

Por enquanto, oscilo entre a angústia e a euforia. Desconfio que dormirei indeciso, como quase sempre.

Segundo dia

Presumi corretamente: hoje é doze de abril, e isso quer dizer: (primeiro) ninguém se lembrou do meu aniversário; (segundo) se eu podia corrigir alguma coisa, comecei perdendo a oportunidade.

E tudo o que aconteceu hoje perdeu a importância diante de ontem – afinal, foi meu aniversário ou não foi? Eu não farei treze anos novamente (creio, pelo menos). Aliás, fiz treze anos apenas uma vez. Não era eu, ontem, era alguém com minha cara aos treze, a virgindade aos treze, a alma agoniada e a memória de um rato: como pude esquecer que nem minha família lembrou a data?

Complicado, mesmo, foi ver meu pai se achegar “desculpa, desculpa, esqueci, você aceita parabéns atrasado?” Baixei a cabeça e ele foi se afastando, mais constrangido com minha vergonha que com a dele; eu corri atrás dele “claro, pai, antes tarde do que nunca, né?”. O pobre nem sabia que há duas décadas me devia esse carinho... Após o abraço, outra pergunta tola: “Pai, a mãe...?” A resposta recontaminou tudo de desencanto: “Você sabe como é sua mãe...” Eu sei. Ela não mudou muito. Conclui que esqueci o dia de ontem – ‘o dia em que nem eu lembrei do meu aniversário’ – por pura necessidade.

É uma coisa estúpida perceber que se tem a mesma idade (a ‘normal’, não a de fantasia) que sua mãe teve um dia, e que ela será sempre velha demais – ou jovem demais – para entender e perdoar. E o problema é o ‘demais’.

Terceiro dia

Vou parar por aqui. Dormirei o resto dos meus dias; dormirei, sim – tranquilamente, sem sustos...

Recuso-me a viver essa loucura!

Só tenho que ir à escola, mas isso é moleza.

Nono dia

A semana passada se arrastou, o final de semana foi uma tragicomédia e essa quarta-feira me entedia – o que é normal às quartas-feiras!

Parece que os dias estão ficando mais curtos. O tempo tem passado mais depressa, agora que me acostumei à idéia de que realmente posso aceitar ou excluir o que vivi. E acordar certa manhã, tendo que ir ao trabalho, passar no supermercado, levar carro à oficina... Drummond ‘tava certo: ‘Êta vida besta, meu deus.’

Também hoje (re)conheci a pessoa que dará tom aos anos que virão. Somos amigos há tanto tempo, sempre tivemos muito a contar e sentir, por vezes adivinhamos o pensamento um do outro. Num período fomos apaixonados pela mesma criatura, uma loirinha sem sal do 8º ano; cúmplices jovens e adultos, quase tudo foi compartilhado. Agora, tenho um segredo. Dói.

Creio que causei uma impressão estranha, olhando-o daquela maneira, como se visse um extraterrestre, ou – pior – um ser muito humano, mesmo... Então, preciso me policiar, não posso revelar coisas fora do tempo, esconder outras; tenho que lembrar como me comportava e sentia.

Nem lembro se lhe contei da perda do meu cachorro. Acho que não. Às vezes ainda penso que ele vai voltar; nunca pude acreditar que estivesse morto.

Décimo quinto dia

Não posso acreditar é que levei bomba na prova de geografia! Afinal, eu deveria saber mais a matéria que todos os alunos juntos – se duvidar, até mesmo que o professor, que nunca saiu daqui, enquanto eu já rodei um bocado de mundo. E está sendo difícil – difícil não, desmotivante – estudar outros assuntos sem atender os objetivos de um adulto: saber e mostrar que sabe.

Mas de que adianta saber tantas coisas, ter mais experiência de vida, se levei bomba em geografia?

Vigésimo dia

Feriado no domingo, que desperdício!

A mãe está com a cara mais azeda, hoje: tensão pré-menstrual ou cólica, talvez; pode ser dor no estômago, também, resultado da gastrite nervosa. Ela diz que não é fácil criar dois filhos sem a presença constante do pai. Ele responde que trabalhar fora garante o sustento da casa. Havia esquecido essa arenga.

Tive vontade de oferecer a massagem shiatsu que aprendi com E., então pensei na dificuldade em explicar como e quando a aprendera.

Segredos são como brincadeira com bola de neve: algum dia, surpreendem a gente pelas costas ou são jogados na cara.

Ou pode ser tensão, simplesmente. Mãe também tem segredos...

Vigésimo sexto dia

A mãe falou que amanhã iremos à casa de tia Júlia (a irmã mais nova dela). Há muito tempo não a vejo; ela foi embora meio de repente, sem ninguém saber o motivo. Não recordo bem da data, só da comoção que causou. Conhecendo titia um pouco (do que lembro, é lógico – as brincadeiras, o cabelo livre voando pelo céu, as mãos calmas), acho que não foi de propósito; amanhã observarei e procurarei indícios presentes, passados ou futuros.

Nada de novo no front da escola, além da garota mais chata da paróquia ter resolvido pegar no meu pé. Antes dos trinta estará balofa, com três guris chatos (será hereditário?) fazendo com ela o que ela fazia comigo (parece que está no sangue, mesmo...). E, além de chata, chifruda e lerda: o marido apronta prá tudo quanto é lado e ela nem se toca. Meninos e meninas, eu vi! (sempre quis dizer isso; ‘taí, ‘tá dito e ninguém para apreciar. A vida é mesmo uma bestice só...).

Vigésimo oitavo dia

Tia Júlia se foi por causa do meu pai. Tenho pena da mãe, que pensa que sabe tudo.

Outra coisa ruim nessa história é que eu sempre quis ter mais um irmão – de preferência uma irmã – mas a mãe sempre disse que dois filhos são o bastante.

Tia Júlia não voltará, então não posso perder sua pista. Sei que ela sempre teve vontade de conhecer o Espírito Santo; assim que puder, procurarei por lá. Engraçado: já viajei tanto, e nunca fui ao Espírito Santo.

Trigésimo quarto dia

Conheci minha princesa; pena que ela beija outros sapos também. Como vingança, ‘fiquei’ com a Menina Chata da escola. Agora ela sai do meu pé.

O professor de português perguntou se alguém já tinha ouvido falar de Clarice Lispector. Calado estava, quieto fiquei.

Perdoa, Clarice, foi covardia, sim! “... não fosse eu feito de comum argila...” Perdoa também, Oscar, que poesia aos treze pode me excluir da turma; já bastam os vendedores da loja de discos me considerando um moleque pedante, quando peço Tom, Chico ou Leila (completamente desconhecida por aqui, aí eles insistem que me enganei e oferecem Elis, que eu levo, é lógico!)

Mas eu beijei aquela chata, e por um motivo absolutamente juvenil! Isto deveria depor a meu favor, não é?

Trigésimo nono dia

A gata da vizinha pariu cinco coisinhas feias; um parece o cruzamento de uma ameba com um novelo de lã muito branca. A mãe disse que eu podia escolher um (pasmem-se!) e qual eu escolhi?

Pois é, ás vezes a vida nem é tão besta assim...

Bola de Neve. Bola de Gude. Floquinho. Arco-íris (idéia do meu irmão, só prá contrariar). Gostei; nunca vi gato algum com esse nome. Mas a Princesa sugeriu ‘White Wich’. Fiquei numa sinuca de bico. E nem parei prá pensar que amanhã posso não estar mais aqui...

Êta, vida complicada, meu deus!

Quadragésimo segundo dia

Tudo voltou ao normal.

Meu irmão não fala comigo há mais de dois meses por causa de uma camisa cafona. A mãe, como sempre, nem quis saber quem tinha razão: apenas promulgou a sentença suprema “vocês são piores que crianças!” Ela não lembra que já o fomos, um dia. O pai tenta nos unir, sem saber da promessa que titia carregou. Já quase nem consigo olhar para ele direito, parece até que (como ele, há muito tempo atrás) esqueci algo importante.

Antes dessa confusão passava boa parte da vida fabricando sonhos de qualidade duvidosa. Agora, não coleciono mais expectativas; não sei como o dia será amanhã; ontem passou, mas é tão presente quanto os dentes alinhados pelo aparelho... Mas pedi férias do trabalho, marquei passagens e reservei hotel: Espírito Santo – e tudo que há por lá – me aguarda. Ou eu o aguardo, dando tudo na mesma, ao final...

Nada contei a ninguém. Estou começando a aceitar o segredo como algo de uma pessoa só – por isso é segredo. É como o caso do lençol de seda.

E não escreverei mais. Cada página desse registro parece um cálculo renal; aceito anestesia, daquele tipo básico a quem aprendeu o possível e seguiu se perdoando, inclusive por não se amar o bastante. Não preciso da dor.

Na volta do escritório passarei na mercearia da esquina e comprarei queijo, macarrão instantâneo e vinho tinto barato. Proteína e carboidratos, isto é do que preciso. Um pileque, idem.

Então, talvez as coisas deixem de ser normais e se tornem reais...

Morada Nova-CE, junho/agosto de 1020

Gina Girão
Enviado por Gina Girão em 31/08/2010
Reeditado em 03/09/2010
Código do texto: T2469754
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