Funcionário Público

Eis que chega o primeiro dia de trabalho do doutor Afonso, não aquele das artes vitais de corte e costura, mas outro, um que tenta dar ponto nas palavras em oração. Menos de trinta anos e já um professor adjunto de universidade pública, que destino afortunado este, que podia ser completamente diferente, já que Afonsinho cresceu do lado de uma favela. Dizia a mãe, "pra virar bandido não precisava muito, não, na rua de trás o que mais tinha era nêgo de ferro na mão". Só que o menino era tarado no videogame, se masturbava durante a maior parte do dia, depois dos treze anos, e fraco demais pra viver além da escola e dos jogos, tanto a peladinha do recreio, quanto os eletrônicos, ele não singrava os mares e as marés da favela. Cresceu feito um passarinho de gaiola.

Sentar na mesa, passar a mão sobre a tábua zoada de madeira, mas brilhando feito uma careca selvagem, era tudo que ele queria. Quando ficou no ar condicionado, tendo o nome escrito na plaquinha indicativa de sua discrepância em relação a quase todos os outros mortais daquela instituição uma medalha de honra ao mérito. "Caralho, nunca vou trabalhar duro na porra da minha vida".

A primeira aula foi muito animada, estava bastante entusiasmado com seu começo e os alunos ficaram até contagiados com aquele sentimento. Quando terminou com aquele grupo, deixou a sala em direção ao refeitório, onde comeria sozinho antes que qualquer outro, já que gostava muito de comer com a boca aberta e apreciava que a comida fosse deglutida de maneira que seu prazer gustativo excedesse qualquer tipo de norma ou orientação de conduta. Enquanto o fazia, sentou-se diante dele uma figura que se repetiria naqueles corredores por alguns anos, seu nome era Tertúlio e seu cabelo era esquisito. Um tanto anêmico, mas tinha carcaça, não era do tipo franzino, quero dizer. Podia dar umas porradas em alguém sem parecer um desesperado que logo vai ser surrado por sua tentativa de ser algo que não é. Aos fracos dá-se o fim, mas aos fortes fica o embate.

A paz é um canto de sereia que ajuda a amolecer os nervos pela noite, quando se precisa relaxar pra dormir.

"Eu só queria que você soubesse que não acabou, ainda, ok?"

Doutor Afonso terminou de mastigar e engoliu, pra depois limpar a boca e falar com aquele sujeito. "Não tô entendendo, qual é que é?". E o moleque, porque era assim que gostava de parecer, deixou o rosto iluminar por um riso debochado. "Eu disse e vou repetir, não pensa que tudo acabou. Não vai se acomodar e fazer qualquer coisa, não vai achando que vai chegar aqui, sentar atrás da mesinha e fingir que o som da sua voz é suficiente pra nutrir a nossa cabeça, porque não vai ser assim. É bom que tenha compromisso e que demonstre isso, porque senão a coisa vai ficar muito ruim pra todos nós, Professor". Afonso ficou puto, claro. Nunca que uma pessoa tinha falado com ele dessa forma. Que porra era aquela? Levantou e ajeitou a blusa, puxando pra baixo o tecido que tinha embarrigado de leve. "Escuta aqui, rapazinho, contenha sua atitude. Eu sou o professor aqui...". E isso, por sua vez, tirou Tertúlio do sério, coisa que facilmente acontecia, mas aque ali vinha essencialmente feroz. "E daí? Você é o professor. Sim. O cara que tem um compromisso social e governamental de ensinar uma série de alunos que, por mérito, estão aqui. É isso que você é".

Como é que podia uma coisa daquelas? Afonso catou suas coisas e procurou fôlego pra dizer mais algumas. "Eu sou alguém que por mérito está aqui. Alguém mais sábio, mais culto e mais vivido que você. Sou mais experiente, por isso estou mais apto a ensinar e dizer como vão ser as coisas aqui do que você, moleque". Tertúlio riu, claro. "Sim? Então, o que está dizendo é que se andarmos com um fusca por décadas, com o tempo ele se torna uma ferrari?". Afonso se sentiu ofendido com aquela comparação. Parecia-lhe, mesmo, idiota. "Que raciocínio idiota é esse? Está comparando pessoas e objetos com a mesma intenção? Não seja estúpido". O mais novo se levantou e encarou o professor pra falar entredentes.

"Estou dizendo que se você não cede, meu senhor, vai se manter um fusca pra sempre. Precisa fazer da sua experiência uma moeda de troca, nunca uma bandeira. Se não cambiamos nossas partes constitutivas, não nos tornamos nada além. Então, acredite, sei quem você é agora que entrou aqui. Já vi muitos como você cruzarem aquela porta com o mesmo sorrisinho idiota de vitória, com o peito cheio de um orgulho imbecil, como se tivessem cruzado uma faixa que declara o fim de uma corrida, quando na verdade é o início de uma maratona que está sendo transformado em cadeira de balanço. Não vamos deixar que você faça isso aqui, tá entendendo?".

Afonso bateu a porta do refeitório e partiu em direção à direção. A porta trancada era sinal de que ainda não tinha retornado o velho Fonseca. Tudo bem, Afonso falaria à turma. Era a próxima justamente aquela em que estava seu agressor. Daria uma lição pública e começaria seu reinado de forma exemplar. "Não se pode dar mole pra eles", lembrou-se, ouvira isso quando ainda era um estagiário de escola infantil. "Se você deixa, eles montam em você. Mostra logo quem é que manda, se precisar manda calar a boca e mete o dedo na cara". Era isso que ia fazer, exigir silêncio e reprimir o miserável.

"Por favor, gostaria da atenção de vocês e exijo que façam silêncio. Aconteceu uma coisa muito séria". As caras eram duras, os cenhos, alguns, franzidos. "Este aluno, esse rapazinho aqui da frente, cujo nome ainda não sei", e foi interrompido pelo próprio, "oh, sim, Tertúlio, que nome, hein? Bom, como eu dizia, esse rapazinho aqui veio me ameaçar, dizer como devo me portar diante de vocês e falou de permissão, assumiu pra si um poder que me espanta ter vindo de uma criança tão débil". Tertúlio ria, roendo uma unha, sem fazer barulho, com os olhos metidos na cara de Afonso. "Eu quero deixar bem claro ao senhor, e a todos, o seguinte...", e daria prosseguimento, não fosse a repentina movimentação de uma figura de um metro e meio. Duana.

"Que fique claro ao senhor, isso sim, que nós estamos de pleno acordo com o Tertúlio. E é um nome como outro qualquer, não tente fazer piada idiota por aqui, não cola muito. Se liga, você é um professor, um funcionário do governo que deve realizar seu serviço de forma exemplar e com resultados positivos. Como você, nós estamos aqui por mérito e devemos cumprir a nossa obrigação, assim como você a sua. Então, não vem com essa ideia de falar alto, de impor um respeito que só existe em comum acordo, como se você tivesse algum precedente divino, porque não é assim que a coisa funciona aqui, não". E ela também continuaria, mas foi interrompida por uma enorme Amanda do coral. "Tá achando que passou na provinha e vai ganhar uma havaiana pra passar o dia vendo o sol, filhão? Vai fazer concurso nas ilhas Caimã, aqui não, tá ligado? Aqui você vai entrar por aquela porta e dar bom dia, vai apresentar o que conhece pra gente e vai ouvir o que a gente tem a dizer, dai vai dizer o que acha do que dissemos e, de preferencia, mostrar algum fundamento pra isso, uma linha de raciocinio, um precedente formal, teorico, qualquer merda que possa ser colocada em prática pro nosso desenvolvimento. É simples. Não fazer, fazer é complicado, mas se você queria alguma coisa mais fácil podia ter ido servir mesa. O máximo que ia fazer era derramar alguma coisa num dia de distração. Aqui você prejudica pessoas e prejudica sério, então, fica de boa, faz o teu que a gente faz o nosso".

Afonso saiu da sala e bateu a porta atrás de si. Aquilo tinha chegado ao limite. Em seu primeiro dia, na posse de suas funções pela primeira vez, e era tratado como se fosse um delinqüente? Que absurdo havia despertado naquela manhã e o seguia nos calcanhares? Esperaria pelo Fonseca na sala dos professores, só daria a próxima aula depois que recebesse um pedido de desculpas formal, cerimonioso e público, por parte da turma. E também por parte dele, claro, que era responsável direto por aquela conduta anarquista. Maria de Fátima, a professora de Artes, esquentava um salgado no microondas.

"Eu estou pasmo, Maria, desculpa, preciso falar com alguém". Maria deu uma boa bocada no salgado e fez um sinal com a cabeça que indicou a Afonsinho que podia continuar. "Os alunos me ameaçaram. Disseram que estão me vigiando, que se eu não for um bom professor eles vão me denunciar, que eu não me atreva a isso e aquilo". Maria sentou e abriu a lata de refrigerante que já esquentava sobre a mesa, toda suada. "Eu não entendi. O que aconteceu depois disso?". Afonso franziu o cenho. "Como assim? Eu saí e vim pra cá". Maria deu outra bocada no salgado, mastigou cinco vezes e engoliu. "Mas você não disse que teve um problema?". Afonso se sentiu irritado. "Maria, eles me ameaçaram, esse foi o problema". Ela limpou a boca, jogou os guardanapos amassados fora, a lata também, mas não sem antes dar um último gole. "Olha, eu não acho que eles tenham te ameaçado. Conheço os alunos. Eles devem ter te dado um aviso. Acontece que os últimos dois professores que ocupavam o seu lugar eram dois sanguessugas e eles estão de saco cheio disso, sabe?". Afonso bateu na mesa, com os olhos fixos em Maria de Fátima. "Isso não dá direito a eles de me ameaçarem! De fazerem do meu primeiro dia como professor esse inferno". E a professora se aproximou, pegou o cara pelo pulso, pressionando a palma da mão espalmada na mesa contra a mesma. Afonso tentou sair, mas Maria o mantinha preso. "Olha aqui, doutor, não bata sua mão na mesa e não fale alto comigo, porque não tenho a menor obrigação de aturar essas coisas no meu trabalho, entendeu? Se o aluno foi a você e disse-lhe o que ele espera de um profissional, diga a ele o que você espera dele, conversem, resolvam sua relação. Eu garanto que eles estão apenas escaldados, e não vai ser com essa atitude de machão que você vai conseguir tirar leite da pedra que arrumou, entendeu? É melhor se comportar, ou não só eles vão ficar de olho em você".

Ultraje número 3, do século, coisa que precisava ser documentada pra que no futuro acreditem quando ele disser que foi vítima do momento mais bizarro de sua vida. Ah, mas o Fonseca vai chegar, e quando isso acontecer, diz ele, tudo vai ser diferente e a ordem vai ser colocada em prática. Aquela anarquia não ia continuar. Já na sala quatro, Tertúlio, que estava sentado na janela, com as pernas balançando lá fora, observava o carro do diretor que se aproximava lentamente da vaga que a ele era destinado. Sorriu de orelha a orelha quando a figura de Fonseca sumiu na entrada do prédio. "Fonseca", disse Afonso, "nós temos muito o que conversar", e se aproximou, tomando o diretor pelo braço e partindo na direção de uma sala vazia. "Um instante, doutor Afonso, primeiro vou tomar um café e depois nós vamos conversar", disse, tirando o braço num movimento seco. Era um grande complô de todos os patamares de poder naquela instituição. Sua fortuna era ter passado no exame, mas a posse se tornara um inferno. Os frutos de sua figueira eram podres, ele pensava...

Avati
Enviado por Avati em 02/09/2010
Reeditado em 02/09/2010
Código do texto: T2474511
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