LENTIDÃO

Uma sirene. Foi o som grave e estridente do intervalo que levou o menino até o portão que separava o jardim de infância do aconchego do lar. Seus dedos escorreram finos pelo gradeado e os olhos deslizaram atentos para o meio da rua, onde eu estou, onde ela está, ele não sabia. O pequeno pingente – ornamentado com a imagem de alguma santa da qual hoje ele não lembra e sequer nos milagres atribuídos a ela acredita mais – o pequeno pingente preso à correntinha de um falso dourado que levava ao redor de seu magro pescoço infantil, aos poucos, ia sendo triturado pelos dentes ansiosos do menino. Em sua cabeça leve e carregada de dúvidas cruéis, vagava assustador o fantasma do esquecimento. Era este o maior temor do menino, não queria ser abandonado naquele mundo cheio de crianças tão diferentes dele naquela coletiva semelhança, crianças que não o conheciam e também não sabiam nada sobre sua debutante dor.

A palavra mãe, repentinamente, tornara-se um desejo distante. Onde ela está, por que me desamparou aqui, ele não sabia. Todas as explicações previamente fornecidas, esclarecimentos acerca do universo estudantil, a promessa de que aquele seria um dia divertido, naquele momento de nada serviram. Ficar sozinho não fazia parte do acordo de frequentar o pré-escolar, e a companhia das outras crianças não lhe parecia uma permuta capaz de substituir satisfatoriamente a indispensável presença materna, o colo, o hálito, as unhas correndo o couro cabeludo.

Permaneceu ele ali parado por muito tempo. Os outros garotos brincavam nervosos, como se o recreio fosse uma bomba-relógio prestes a explodir. Mas o tempo do menino era infinito, os dias arrastaram-se ronceiros e morosos dentro daqueles breves trinta minutos. Cada segundo passado era imediatamente absorvido e transformado em horas pelo olhar atento daquele pobre aprendiz de órfão, nada o fugia, nutria esperanças de que uma fenda se abriria no tempo e então sua mãe surgiria, me leve para casa, mamãe, em seus seguros braços.

Sem piedade, martirizava a santa com a qual sua mãe o havia presenteado no dia de seu batismo, quando ganhara um nome pelo qual ele achava gostoso ouvi-la chamar, Marcelo, Marcelo. Seus olhos atravessavam o portão, perdiam-se em uma incompreensível multidão de incertezas, a solidão açoitava seu coraçãozinho que mal tinha aprendido a bater direito e que de dores pouco entendia. Não chorou. Sim, precisava com tremenda urgência desfazer-se em lágrimas, pois elas sempre o ajudaram a contornar suas pueris frustrações, mas, se o pranto turvasse-lhe a visão, como faria para enxergar a mãe aproximar-se sorrateira? Chorar estava completamente fora de cogitação, era necessário manter-se atento a fim de degustar desde o primeiro instante o momento do reencontro.

Ali, preso ao portão daquele novo ambiente repleto de possibilidades que ele ainda não queria, sonhava com o retorno da mãe, o menino. E ela viria com aquela roupa bonita, meio azul, meio rosa, toda luz, traria no rosto o enfado e o cansaço que apenas ele parecia capaz de decifrar em códigos de amor materno incondicional. A mãe do menino flutuaria até aquele lugarzinho detestável do qual ele se encontrava refém e o levaria pela mão a um mundo distante, farto e viçoso no que tange todas as oportunidades que existissem além daquela tortuosa espera. Enquanto sonhava, seus olhos míopes observavam vacilantes o movimento das pessoas do outro lado do mundo, cheio de irmãos, pais e mães que não eram os seus. Não pestanejava. Não permitia que os cabelos escorridos atrapalhassem sua visão. Sonhava.

Ao chegar em casa, iria dizer, ao chegar em casa, iria falar, só de pura maldade, o quanto não havia sentido falta de ninguém, o quanto fora feliz sozinho, para que, assim, sua mãe pudesse experimentar do abandono que, aos poucos, o consumia. Mas o desejo de vingança perdia-se vão dentre a fumaça verde de esperança que o sonho do menino exalava. A fé no reencontro o mantivera ali, unido ao portão como se dele fizesse parte, compartilhando com o cosmo infantil seus trinta anos-luz de solidão.

Como balas açucaradas e anéis de vidro, a esperança cristalina do menino se quebrou dentre os incisivos. O mesmo som que o levara ao portão, mais uma vez encarcerou-o naquela que seria por um ano inteiro sua primeira sala de aula, tão colorida, cheirando à tinta e a biscoito com leite, mas sem sua mãe a dizer seu nome. Ninguém fora buscá-lo. Ninguém. Perdera metade de sua vida naqueles trinta minutos de espera secular e perderia a outra metade tentando recuperar-se do cansaço de aguardar por tanto tempo.

O pingente, pobre coitado, bode expiatório desta história verdadeira, acabou engolido pela continuação deste conto verídico – apesar da falsidade íntima que me levou a contá-lo. Já o menino – protagonista de sua própria vida, segue além dos portões, pelo mundo afora – este sim teve um fim realmente intrigante. Com a experiência adquirida durante o tempo dedicado à espera e com a morte de uma crença atribuída a seus crocodilares dentes-de-leite, não virou nada do que a escola esperava e muito menos do que sua mãe – a inocente vilã desta história real – para ele calculara. O menino, quem diria, agora é percussionista e montou uma banda com outros caras que, como ele, se cansaram de esperar.

Dedicado a um grande músico, grande amigo e grande cabeça-de-vento chamado Marcelo Holanda (Nunca conheci ninguém com pensamentos tão leves).

EMERSON BRAGA
Enviado por EMERSON BRAGA em 07/10/2010
Código do texto: T2542596
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