CRIME DO CANTAGALO

CRIME DO CANTAGALO

Acima do barranco do rio, um enorme pé de caraíba cujo tronco media aproximadamente metro e vinte. Brotando de dentro daquele tronco como se fosse uma raiz, pendia em direção à cachoeira do Cantagalo, enorme corrente cujos elos arredondados eram do tamanho de uma ferradura.

Lá embaixo nas águas claras e correntes da cachoeira dois homens brancos reviravam o cascalho e quase nunca eram vistos noutro lugar que não fosse ali. De onde eram ninguém sabia, uns diziam que eram gringos, americanos, outros diziam: são garimpeiros que vem de Minas Gerais. Os matutos da região de Santo Amaro ficavam admirados, mas nem ligavam para o que eles estavam fazendo. Como ali era o caminho dos pescadores todos os dias viam os dois na incessante lida com suas batéias, picaretas e alavancas.

Logo mais acima do mesmo barranco, um pouco mais afastado da enorme caraíba, um fio de fumaça saia de uma trempe no chão aonde um pequeno caldeirão cozinhava traíra.

Sob a sombra de uma retorcida e velha quixabeira, uma cabana muito rústica, cheinha de burundangas penduradas por todos os lados. Nenhum girau, nenhuma fumaça e nenhuma traíra. Era o cantinho de Maria Augusta, um retirante maltrapilha, travestido de mulher, um louco barbudo e cabeludo e sujo que há muito tempo apareceu naquelas bandas. O que falava não dava para ser entendido, eram palavras soltas sem nexo, uma embrulhada sem fim, que mortal algum compreendia. A única coisa que pronunciava bem, quando estava com muita fome, era: — Dê-me um pouco de pão.

Ao que ninguém lhe negava.

Escolheu ali próximo à cachoeira do Cantagalo fazer sua toca, tosca, talvez por que tivesse água e o local não era lá muito visitado por ninguém, tinham ali como lugar de encanto e assombrava aqueles moradores que acreditavam em assombração. Por esse tempo dividia os dias quentes de sol e as noites estreladas com aqueles visinhos desconhecidos, que nem ligavam para ele.

Na cidade lá para os lados do alto do posto fiscal, onde havia um cabaré, surgiu forte comentário entre as prostitutas, de que no Cantagalo haviam encontrado muitos diamantes. Elas ficaram alvoroçadas e se entusiasmaram para irem até lá. Como não era tão fácil acabaram desistindo. Comentava-se que de tempos em tempo, na calada da noite um daqueles garimpeiro empreendia viagem até a cidade de Salgueiro onde repassava as pedras preciosas e retornava para dividir o lucro com outro que ficara.

Passado algum tempo, uma multidão aglomerava-se no porto dos pescadores em Santo Amaro. A maior agitação daquela gente humilde que não tinha pensamento malicioso e nutria grande respeito pela vida, estavam consternados. Encontrou preso à rede de um dos pescadores o corpo do garimpeiro. Vendo que o mesmo se encontrava com cabeça machucada pensaram logo: o coitado deve ter pulado de cabeça na água batendo em uma pedra desmaiou, vindo a ser levado pela correnteza e morrido afogado.

Chamaram o amigo que continuava garimpando normalmente e nem esboçou surpresa quando lhe falaram do amigo afogado.

Disseram-lhe:

_ Senhor, encontramos preso à nossa rede o corpo de seu amigo que deve de ter batido sua cabeça em pedra e morrido afogado. Viemos lhe chamar!

_ Bem que notei a sua falta, mas pensei que tivesse ido até o bordel,lá no alto do posto fiscal. Coitado deve ter batido sua cabeça nalguma pedra e se afogado, essas águas são mesmo perigosas!

Era comum, também, às vezes passarem dias bebendo e folgando com as mulheres lá do cabaré.

Quando tudo foi esclarecido a vida voltou ao seu ritmo e já se haviam esquecido.

Lá de sua toca,cabana tosca, Maria Augusta que só saia quando tinha fome, caminhava até as residências que ficavam bem afastadas do Cantagalo. Pedia um pouco de pão para Heloísa que era a primeira moradora do povoado, depois retornava à sua cabana.

Certa vez Heloísa que havia se afastado para pegar o bocado para saciar o louco, nesse ínterim sua filha Helena que varia o quintal, corria atrás de um vira latas tentando acertá-lo com o cabo da vassoura e proferindo:

_ Seu vira latas imundo sai daqui, vou te matar seu fedorento.

O louco ao observar aquela atitude da mocinha, fuçou as barbas e pronunciou as seguintes palavras:

_ "Tu quer fazer igual o homem fez com o outro lá na cachoeira. Bateu o pau na cabeça e jogou o corpo na água."

Helena pareceu não ouvir direito e tomou um baita susto ao escutar as palavras de Maria Augusta. Não era comum ouvi-lo falar inteligível e muito menos uma frase extensa. E perguntou-lhe em seguida:

_ Espere aí Seu Maria Augusta o que foi que disse?

Ele mexia nos sujos cabelos lisos e emaranhados, na barba, e como se alguma coisa o incomodasse bastante começou a falar coisas desconexas:

_ plarame, chifrudo, capenca, pilada, acoze ....arbê, polume.

E assim prosseguia por bastante tempo, até mesmo enquanto caminhando de volta à sua tenda tosca, sua toca e sua moradia.

Helena conta o ocorrido para sua mãe, ao que sua mãe lhe diz:

_ Deve ter falado besteira mesmo. Da cabeça desse louco não pode sair coisa com coisa.

Porém. Lá no fundo, entretanto, martelava-lhe a mente a lembrança do que a filha havia lhe falado.

Quando seu marido chegou ao cair da noite, deu-lhe o jantar: pirão de curimatã, batata doce e cuscuz. Depois lhe fez um saboroso cafezinho torrado a caco e adocicado com rapadura. Chegou-se a ele na rede enquanto ele pitava um cigarro de fumo da Dinda de Zé de Chico Preto. Fez-lhe uns três carinhos e seguida lhe perguntou:

_ Oh Zé! como ficou aquele caso do garimpeiro que morreu afogado. Acharam algum parente dele?

_ Por que essa pergunta mulher! Por acaso tu ouviu falar alguma coisa?

_ Não Zé! Não Zé! É que hoje aconteceu uma coisa interessante com aquele doido, Zé!

_ E que foi mulher, por acaso apareceu uma esposa ou um filho do coitado, até viado é?

_ Não Zé, não, Eu vou te contar Zé! Estando hoje pela manhã a debulhar milho e enquanto Helena varia o quintal, apareceu aqui o doido lá do Cantagalo.

_ Sim, sei, é a Maria Augusta!

_ Disse Helena que quando ela correu atrás do cachorro para lhe dar umas pauladas o doido falou o seguinte:

“_ Tu quer fazer igual o homem fez com o outro lá na cachoeira. Bateu o pau na sua cabeça e jogou o corpo na água.”

_ Tu tem certeza Heloisa.

E logo pensou:

_ “Então ele pode ter visto algo que ninguém imaginou. Mas quem vai acreditar em um louco.”

_ Mesmo assim, vamos à cidade contar tudo a Seu Lô( era o apelido do delegado), que também era o sapateiro da cidade. Homem querido de todos, honesto e respeitado.

Como o caso já havia passado certo tempo, Seu Lô foi ter uma conversa com o juiz Janjão e o promotor Filó. Foram até a casa de Heloisa perguntaram para Helena como tudo aconteceu ao que ela repetiu TIM,TIM,por TIM,TIM.

Esperou o doido aparecer para ver se ele confirmava alguma coisa. Mas qual nada, quando o mesmo apareceu nada falou. Seu Lô então apresentou um plano que deveriam por em prática e rezava assim:

_ Quando ele aparecer para pedir comida sugiro ir com ele buscar a comida noutro lugar. Talvez ele queira ir e vá até lá no salão paroquial, estaremos preparados e seremos rápidos para não incomodá-lo.

Tudo preparado no dia em que o louco foi levado até o salão paroquial, tudo pronto com a presença do juiz, do promotor e delegado. Presente ao local se achavam duas prostitutas do cabaré lá do posto fiscal. Quando Helena adentrou ao recinto com seu cachorro ao colo e o pau de vassouro à mão, ficaram todos sem entender o por quê. Curiosos não faltaram nas janelas, todos queriam ver a sentença do Juiz, do promotor e delegado auxiliados por um louco, travestido de mulher. Era a primeira vez.

Indiferente a tudo, o olhar perdido no teto, parecia está sozinho naquele ambiente revolto. Só um é que não estava nada gostando daquele clima, o coitado do viralatas parecia abduzido e avistando constelações, o cachorro de roça do rabo fino é assim.

O Sr juiz tenta uma pergunta:

_ Seu, Dona Maria Augusta o que foi que senhor ou senhora viu naquela noite macabra da cachoeira do Cantagalo, dos homens brancos e seus diamantes?

O louco nem ligou, pareceu nem ouvi-lo e em seguida:

_ Pão Heloisa,pão Heloisa!

Heloisa faz menção de ir pegar um pedaço de pão em algum lugar e ao pé do ouvido de Helena, manda soltar o cão e proceder como explicado.

Helena soltou o bicho no chão pegou o pau de vassoura e partiu para cima dele:

_ Espere aí seu peste fedorento, e arregalando os olhos deu logo umas duas pauladas no chão perto do cão, para assustá-lo. Parecia mesmo que queria matar o cachorro, o cão ganiu como se lhe tivesse acertado, foi o suficiente.

O doido ou a doida, saiu de sua letargia olhou para Helena com indiferente interesse e proferiu límpido e bom som:

_ Tu quer fazer igual o homem fez com o outro lá na cachoeira. Bateu o pau na sua cabeça e jogou o corpo na água. Mas aqui não tem água!

Em seguida começou:

_ labucéu, avêcumê,pegoista, malagioski, lacéavecpogmaski, etc.etc...

A mesa levantou-se tanto surpresa quanto alegre. Os presentes, aqueles que se encontravam olhando pelas janelas ouviram aquelas palavras. Foi uma gritaria dos infernos e a alegria era contagiante e inundou a cidade.

Acho que foi a primeira vez que Maria Augusta ficou assustada pegou seus molambos olhou para os céus coçou sua barba suja, sacudiu os cabelos emaranhados e tentou sair dali. Mas apesar de seu mau cheiro foi literalmente carregada pelos braços da população alegre com seu depoimento.

O Sr Juiz Janjão não teve dúvidas, expediu diligência sem demora e mandou prender o garimpeiro. O tal garimpeiro ciente que estava de sua impunidade havia falado de seu crime para algumas prostitutas, que diante dos fatos não negaram seu testemunho no caso. Assim foi desvendado o misterioso crime do Cantagalo. Dali em diante Seu, dona Maria Augusta passou a ser mais conhecida na cidade aonde todos O, a adoram e vive até hoje.

Agora por causa da represa de Itaparica, a sua toca tosca, sua cabana se encontra armada no saco ( saco é um lugar próximo da cidade de Belém de São Francisco denominado Saco). Este fato ocorreu entre os anos de 1963-1966.

NATINHO SILVA
Enviado por NATINHO SILVA em 17/10/2010
Reeditado em 21/07/2011
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