O ELEVADOR
Aquele elevador era velho. Do tempo quando eu era criança. O aparelho ainda funcionava muito bem quando dona Maria entrara nele para subir até o décimo terceiro andar. Um prédio muito alto para uma Fortaleza dos anos 70. A cidade estava crescendo, mas ainda não para cima com tanta fúria. Maria de Timê era uma angolana que viera morar no Maranhão, e depois se mudara com seu marido para o Ceará. Ela já havia se adaptado ao o estilo cearense de vida. Na terra do caju o povo tem o rosto muito branco, e a cara muitas vezes de caboclo. O elevador fazia um barulho estranho sempre que subia, e outro ensurdecedor ao descer. A descida parecia mais sofrida que a subida. Coisas da terra. Dona Maria estava em pé segurando sua bolsa barata comprada na feira livre. A senhora de 45 anos estava pensando sobre como pagar uma dívida que seu finado marido havia contraído por causa de uma propriedade rural. Estava como que embriagada, tomada por suas preocupações: “E se eu vender a televisão?” Fazia contas intermináveis e nada de chegar a uma saída. Enquanto isso o elevador sobe sem paradas, parecia que todos haviam saído do prédio. No sétimo andar, ela ouve um sinal e acende uma luz verde no painel. “É alguém”. Pensou ela. Contudo ninguém entrou no velho elevador. Maria continuava só. Os outros andares vão passando, e ela nem os nota. Então, ela trava uma conversa consigo:
- O que você fez comigo Sebastião? Deixou-me cheia de dívidas!
- Mas, também, você só pensava em jogo.
- Ainda bem que nunca me traiu. Isso conta. É o quesito fidelidade, isso é válido.
- Mas, cara, apostar a roça numa mesa de jogo, que vacilo!
- Mas o coitado não tinha mais nada para apostar?
- Apostasse o carro!
- Não, o carro já havia apostado.
Enquanto a senhora Maranhense discute com seus botões, o elevador pára. Era o décimo terceiro andar. Ela abre a porta, e dirigi-se pelo corredor até a porta 777. Parece um número cabalístico, mas, não o é. Era a última esperança de Maria. Um agiota trabalhava ali, era, digamos, uma sala de fachada. Dona Maria bate na porta. Uma voz de dentro a manda entrar: “Entre, por favor!” Ao entrar, Maria percebe a beleza do lugar. A sala era simplesmente linda, bem decorada, móveis caros e luxuosos. Havia no lugar um ar de alguém bem sucedido na vida. Maria sentou-se defronte um birô de vidro onde havia um homem magro, alto, cabelos brancos, curtos e bem cuidados, aparência de empresário, sentado em uma cadeira giratória. Usava um terno branco de luxo com uma gravata borboleta da mesma cor. “Deve ter custado uma nota, percebeu ela”. O homem foi direto ao assunto:
- Como posso te ajudar?
- Bem, não sei, mas, acho que o senhor pode.
- Claro que posso. Diga quanto. E eu direi como.
- Acho que uns vinte mil.
- Vinte mil? É muito.
- Então, digamos uns 18 mil.
- Vamos fechar em quinze e pronto.
- Certo.
- Vamos ver as promissórias.
- Certo.
O homem datilografou as notas corretamente e as trouxe para Maria. Fazia um silêncio sepulcral naquela sala bonita.
- Assine aqui.
- Onde?
- Aqui em baixo.
Maria assina os documentos e olha nos olhos do homem como que lhe perguntasse pelo dinheiro. Este prontamente responde: “O dinheiro você pega no sétimo andar”. “No sétimo andar?” Perguntou a filha de Angola. “Sim, só no sétimo andar”. Maria despediu-se do homem e vai até o sétimo andar. No Elevador ela se sente muito perturbada, pois o barulho da máquina velha era tão forte que quase ela prefere as escadas. Ainda no elevador no oitavo andar entra uma senhora muito gorda que a faz ir para o canto por falta de espaço. A mulher sempre em silêncio e Maria sempre apertada.
- Faz calor hoje não é?
A gorda responde: “É”
- O elevador está estranho, não é?
A gorda responde novamente: “É”
Maria parou de tentar um diálogo com a estranha. A porta do elevador abre-se no sétimo andar. Ela sai, e caminha pelo corredor em busca da sala que homem do décimo terceiro dissera, e não a encontra. “E agora?” “Vou ter de voltar lá”. Mas de repente ela sem intenção olha para uma porta branca no final do corredor e vê o número 777. “Duas salas com o mesmo número?” “Que estranho?” Caminhou até a porta e bate três vezes na mesma e esta se abre sem esforço. Ao entrar na sala havia muitas pessoas, todas vestidas de branco. No canto da sala estava o mesmo homem que lhe atendera no décimo terceiro.
- Oi moço, o senhor caminha rápido.
- Sim, muito rápido, resolvo os problemas com pressa. Você tem certeza que quer levar este dinheiro todo com você?
- Bem, eu não havia pensado nisso.
- Deposite em um banco.
- Qual?
- No segundo andar tem um banco, você pode depositá-lo lá.
- Qual é a sala?
- Sim, a sala é 777.
Maria ficou curiosa porque todas as salas ligadas àquele homem tinham o mesmo número e pergunta:
- Por que o número é 777?
- “Não sei”. Disse o homem.
Maria toma a direção do segundo andar, desta vez pela escada. Seriam cinco mãos de escadas. A negra caminhou aquelas escadas cheias de lixo e fedor de mofo. Contou o número de escadas e disse para si mesma: “Deve ser aqui o segundo andar”. Caminhou pelo corredor e todas as portas estavam fechadas e não havia banco algum. Pensou: “E agora?” Decide subir novamente, desta vez de elevador, o barulho é menor. Ao tentar entrar no elevador a porta não abre. “Puxa, hoje estou com muito azar”. “Deve ser seu azar no Jogo Sebastião que está encostado em mim”. Ficou em pé diante do elevador enguiçado pensando no que fazer. De repente uma bola de criança rola em sua direção vinda de algum lugar do corredor. “Mas, como, estou sozinha aqui”. A bola para em contato com seus pés. O silencio do lugar era grande. Não havia uma janela, contudo um vento quente soprava de algum lugar.
- Quem é? Perguntou a pobre mulher assustada.
- Sou eu. Respondeu uma voz de homem.
- Apareça, por favor, o senhor esta me assustando.
- Desculpe não foi minha intenção.
- Onde fica a sala 777 neste andar? Perguntou-lhe Maria.
- Não sei. Disse a voz.
- O senhor sabe de algum banco aqui?
- Não.
- Por que o senhor não vem até aqui para me explicar o que está acontecendo?
- Acontecendo o que?
- Este prédio está muito estranho, e eu vou dá parte à polícia.
- Por-que?
- Acho que fui enganada.
- Como assim, enganada?
- Me deram um dinheiro para depositar e não há banco.
- Que dinheiro?
A mulher de Sebastião abre o envelope e resolve conferir o dinheiro. E era dinheiro mesmo.
- Eu tenho o dinheiro. Está aqui.
- Senhora, se você recebeu algum dinheiro aqui é muito estranho porque ninguém trabalha neste prédio há anos.
- O senhor está me confundindo.
- Não estou te confundido. Posso te provar agora mesmo.
Naquele momento todas as portas do segundo andar se abrem. Maria, muito assustada inicia sua caminhada pelo corredor passando pelas portas. As salas eram velhas, bem antigas, cheias de móveis velhos e lixo por todo lado. Os ratos faziam uma festa irreverente com toda a tralha deixada no lugar. De repente, Maria de Timê ouve uma música que vinha do fim do corredor. “E agora José, para onde...?” Ela segue a música até chegar a uma sala ainda mobilhada. Havia uma cama, sob sua cabeceira e um álbum de fotografias. Na cabeceira do lado esquerdo da cama havia um relógio despertador que marcava três da tarde. A sala estava iluminada. A luz não era forte, mas suficiente para se ver bem o que estava ali. Ela entra na sala. Observa com atenção, entretanto, a música pára e um silêncio profundo invade o lugar. A voz que ela ouvira não ouvia mais. O homem invisível sumira. Ela caminha até a cama e percebe que é um quarto igual a qualquer um em uma casa de pessoas de poucas posses. Senta-se sob a cama e começa a folhear um álbum deixado sobre o criado-mudo e depara-se com uma surpresa enlouquecedora. O álbum era seu. Ali estavam os melhores momentos de sua vida. Fotos de seu casamento, da época em que ela e Sebastião namoravam quando estavam no Maranhão. Registros de sua vida, de seu amor e amigos. Sua família havia ficado em Angola, a guerra civil naquele país a trouxera para o Brasil. As lagrimas que caíam de seus olhos molhavam seu colo, seu rosto parecia triste e alegre ao mesmo tempo. “Como esse álbum veio para aqui?” Perguntou a senhora. Pôs sua bolsa na cama e o álbum segurando sobre o peito adormecera. Maria sonhara com Angola. Lembrou-se de uma menina de dois anos, filha sua que fora levada com a milícia revolucionária. Ela tentou resgatar a criança, mas não desperdiçou a chance de vir para o Brasil deixando-a a mercê dos separatistas. A criança morrera em um campo de refugiados, a inanição e a falta dos pais apressaram sua morte. Sua foto não estava no álbum. O despertador toca. Maria acorda bruscamente e vê ao seu lado seu marido Sebastião roncando muito em profundo sono. Olha o quarto e reconhece-o como seu. “Eu não estava em um prédio?” “Meu marido não havia morrido?” “Estou louca?”
- Foi só um sonho.
- Foi?
- Foi.
- Mas como? Eu me lembro do funeral de meu marido.
- Lembra?
- Sim.
- E como ele está aí?
- Não sei.
- Abra a janela de seu quarto. Falou a voz do homem invisível.
Maria foi até a janela e a abriu como pensara. E para sua estranheza ela percebe que está em um prédio no décimo terceiro andar.
- Não é aí que você mora?
- É.
- Então?
Sebastião acordou um pouco tonto, havia jogado a noite inteira. Veste-se, e diz para sua mulher: “Vou ao sétimo andar jogar com uns amigos, beijos”. E saiu do quarto deixando-a aturdida. Maria de Timê olha para o relógio na cabeceira de sua cama. Eram três da tarde. Como eu disse, aquele elevador era velho. Sabia de muitas estórias. Maria nunca mais se lembrou desse sonho. Sua vida seguiu seu curso até todos deixarem o prédio e irem morar nos condomínios novos construídos na Aldeota, um bairro nobre da cidade. Um belo dia, em um cruzamento da cidade, ela e seu marido param o carro, pois o sinal era vermelho. Uma carreta conduzida por um motorista sonolento os arrasta até um poste causando lesões fatais em ambos. Quando os policiais foram remover os corpos acharam um pacote com quinze mil cruzeiros. Nunca mais ouvir falar dessa mulher. Você sabe notícias dela?