Carta a Bernard e Ellida

Fugiram-me as palavras e serei apenas eu e essa falsa e espinhosa amargura. Depois de mim virá outro e depois do outro virá eu, assim que depois de nós não será nada. As palavras não fogem, nós as espantamos eriçados pela manhã, escolto a nova nobreza dos miseráveis queimados, o que é tão explicito, o que é tão esparramado...

O que certamente não se deixa fluir mais quer que a própria candura a faça volitar dentre os dedos que prendem, asfaltados de emoção caçada. Flerto esta estática, submirjo os cavalos a cavalgarem exaustos, eles se desprendem, eles lincham e acabam por se suicidarem na pouca alvorada que parece hoje ser tão passageira e incontrolável.

Certos sufocos: evidente que ainda estão sufocados, e quando não estiverem mais estarão alienados estes meus dilacerados delírios sobre a terra, os humanos escandidos de loucura irão pegar seus cavalos e os içarem sobre as estradas intermináveis, entre sóis deflorados: bem-me-quer, mal-me-quer.

Depois, ilicitamente depois do seu clímax de não se agüentar ou mesmo que sua pétala esteja um tanto apodrecida nas bordas, pois que ainda quer o jipe de rodas grandes e prateadas andando pela cidade... Oras, Bernard, quanta soberania e quanto sonho impiedoso.

É delírio, eu sei, sabe-se, souberam rapidamente que sim, e neste pequeno orifício na brenha onde escondido entre arvores volumosas posso ver-te ainda me espiando com Ellida a tomarmos banho juntos numa lagoa, pelados, loucos da vida, aproveitando os restantes minutos que caem-se em hemorragias freqüentes nas mãos lestas. Precisamos ser velozes antes que não haja mais solução, mesmo ela sendo o minuano de todos os nossos dias que nos passam pelos corpos arrepiados e sequer podemos perceber ou pedir para que este violento sopro se estagne indecente em nossos sucateados instantes póstumos.

Largar essas frenéticas pequenas ditaduras aqui pra ti será descabido, pois que sei terrivelmente, em mim, que sou tão bajoujo a ti e humilde enquanto desencadeio nesta fóssil aventura um bico rorejado de poesia para que eu te faça encantar.

Ingressando até possuir minha retina alcanças com tua mão sempre sorrateira a me fazer acreditar que isto daqui não tem nada a ver com uma carência tão profunda a ponto de termos cada um seis olhos esbugalhados sobre os muros que nos dividem ou caem sobre, é apenas um susto triunfal. Provavelmente será deslumbro e trigo, do mais amarelinho forrando este sangradouro molestado sobre e entre meus pés, estes estão sempre brancos no piso gelado, e enquanto sentem o pudor dessa fulminação de prole passam a correr ou mesmo eu de alicerces nos braços correr sem eles. Entre parêntesis coloca-se o desejo, e enquanto falo, ele se tornou gozo.

Ei-la, secando-se de uma alegria corrupta e da sua própria lavanda agora na portinhola jamais querendo se adentrar a casa e se fixar como um chanfalho ansiando me penetrar a carne sem ciclicamente conseguir, e forço a portinhola, puxo os braços, bato na cara, insulto, trepo nas costas ate que canse e caia e entre, mas esta não quer, lavanda passiva a sua rebelião, a sua rabugenta forma de ser, sensibilidade gilvaz, pequenas mordidas nos cantos da boca, e então como um fruto que só possui caroço novamente voltarei a ser ficção.

Após as duas da manhã ainda estarei lá, porra-louca incauta sobre o telhado lendo alguns livros indomesticáveis na minha própria medula, alcançarei meu dúbio e futriqueiro e estrambótico enterro, entretanto arrastarei os pés enquanto caminho, deitarei na terra vermelha e sujarei-me de minha hegemonia, assustarei como demônio minha própria fatalidade de quando me emboloro na paz viciosa e, no entanto, eloqüente como uma cocaína.

Quando então estiver de mãos esticadas ao céu rezando aleluias estique-as para si e se mergulhe também, que não exista essa sua inconformidade e sua sindicância com os meus escapes e minhas denúncias, não pense que pararei de te denunciar e vou sempre voltar a faze-lo porque de uma forma ou de outra tu própria te denuncia e te algema, se algema na enigmática e endurecia inércia caindo em nuvens derretidas e o amor conluia que fazes tanta questão de mostrar-se maternalmente psicodélica.

Também não ajude, e nem queira ser isócrona para dizer-me belezas no intuito que eu adormeça, sabes mais do que eu que dormir tornou-se a mais plena perdição dentro destas quatro paredes demolidas por minhas unhas que já não corto. Confesso, estou cada vez mais escalafobético, desengonçado e perdido, tenho certeza que apenas não estou triste por viver, estou certo que viver é algo singularmente válido. Sabendo que depois vem o depois, mas se este depois não é ao menos dito, que ele em sua complexa oratória se mostre homem num dia seco destes de verão, numa tarde de domingo vagamente disposta a me levar. Às seis horas da tarde, rendas verdes.

Por enquanto esta carta não terá nome já que sinto que quando ela o ter não saberei mais de que forma dizer, eu, que de máscaras estou em peso murmurado, escolhe-las tornou-me sabiamente afoito, de máscaras presentes, fica-te apenas nos meus pensamentos, de forma que eu não fique no seu assim tão caçula de bisturis nas mãos para te abrir inteiro e te descobrir e te colocar e te limpar na vastidão. Como se lava um neném ingênuo: com as mãos em concha pego um bocado de água e batizo-te amaciando a sua cabeça pequena e mal formada, vai-te rir, eu sei que vai, rir enquanto ainda não se é o próprio útero capaz.

A criança precisa do seu útero até a morte. E de mim? Vaporizei dentro desta concha quente.

Possuo agora o riacho de lama e de caverna, Bernard, atrás de uma árvore, como nos balaústres de gesso, bisbilhotando de olhos pequenos, enquanto Ellida, até tu, me afoga nas águas límpidas, afogo-me nas águas límpidas, Bernard nas águas límpidas.

De que forma? Qual a silhueta e qual a retribuição? Como acha-la? Aqui apenas se encontra sobre o criado-mudo uma formiga perdida e eu acorrentarei-a no meu ventre doce, o que já não te é suficiente, em Vênus te pegarei a mão e elevarei-a a minha face, e a minha face arrancarei de foco, de modo que apenas te vejo tocando Júpiter tentando alcançar Marte.

Violentarei esse jogo, e de qualquer forma, haverá seu grunhido maldito nas respostas das minhas emblemáticas questões que como diz você mesma são berrugas estranhíssimas sobre beleza abalada. Bernard (seus sonhos são inexeqüíveis?), oh, já te disse que você me é um best-seller? Sim, eu sempre digo, no entanto, o segundo próximo pode ser excêntrico demais para me permitir sempre ecoar, por saber que não ah, seu grande falastrão não-elaborável. O que pode se pode postergar, és tu, apenas. Precisamos de certo Kantismo entre eu e você, de forma que sistematicamente terá você uma razão para mim, eu a ti não sei, mas que entre ambos haja o limite sóbrio para que elabores-me do teu jeito, e eu a ti não sei.

Provavelmente enquanto nos temos, será justalinear, ambos, entenda-me, o que mascarado se tornará lépido ao seu entendimento, a face pelada não saberá ser entendida. E de todos os lados terei ódio ao meu reflexo, imperfeito serei devaneio sujo e trágico num ato de Eurípides. Três e treze da manhã. Por enquanto te amo. Tudo enquanto.

Ellida pediu: coloque a mão na minha cintura.

Eu: coloco.

Ellida: ta.

Eu: aham.

Ellida: pode beijar. (É pra se esconder simplesmente).

Vai subir até encontrar um carreador que você e seu cavalo passem monótonos no calar que provoca e que é vadio deste noviço domingo azedo, em ira vendo as folhas dos cafés estorricarem lembrará de mim, que sou teu, e de Ellida, pelados no riacho brincando com lama cinzenta, ambos percebendo um o corpo do outro e de que forma usa-los. Adultos sem hormônios porém cheios de elegância e cheios de prazer, leve toco nos seios de Ellida e seus bicos endurecidos e ela me vem tocar sobre o sexo. Sorri, desgraçadamente enquanto porteiras abrem e com teu velho cavalo anêmico passas tentando mesmo em ti te saltar e ver o cavalo brilhante sobre a imensa e tremenda claridade relinchar e pedir água, lagoa. Enquanto o sol trinca-te e tu mesmo se quebra ao meio o orgasmo de Ellida te alcança congratulado durante a nuvem ou enquanto a nuvem trinta e dois ou a nuvem elefante-parece-gato se desespera numa chuva repentina e num arco-íris de uma só cor: verde. Verde e extinção.

Ellida que sempre fora criatura relevante e esses armários vazios e essas cinzas beijadas no cinzeiro e esses dias um pouco cardíacos demais e imprevistos logicamente, Bernard, em demora rastejo teus sonhos e teu jipe sobre o meu futuro que é tão apavorado, lustro a cada manha essas rodas metálicas e esses fac-símiles aqui pintados em entrelinhas ou mesmo escondidos porque jamais direi tudo, ainda eu não tendo noção do que mais me esconderam ou você mesmo me esconde enquanto vê-me desesperado correr pela casa me vestindo de alma. Este nomadismo que não tem auge, vidas, vidas que apenas se deixam correrem precárias, mas enfim, alegres, de certa forma tranqüilas, porque precisam ser.

Irei frágil adivinhar tua concepção: mentes então tanto assim para mim? Todos os dias, Bernard, me invoco desta sua fraternidade que tanto a protege, e aqui no peito sinto o quanto dói no teu peito, e assim, sem escapatória tudo já é. Mesmo que me esconda tantas coisas, sabes mesmo assim que ainda sei de tudo o que se precisa sentir, o que já tem sido muito pra mim nesses últimos dias. Ou não tenho mais noção de espaço.

Nossas vidas não são mais completas porque não nos temos um ao outro, fica impossível ter dois pulmões, dois olhos, duas orelhas. Tudo ficou com o tempo impossível, mas que tenhamos claras lembranças um do outro, o outro do outro, e que peculiarmente nos dirigimos pouco a pouco a direções distantes uma da outra, já que tudo parece querer não ser real e sem querer estamos nos escapando e nos fugindo e sempre, e sempre nos acorrentando a passados cruéis que nos ferem e nos amam e sentem paixão e nos ninam e nos queimam e nos congelam.

Baratas? Tudo isso para sermos insetos de inseticida na mão? A que tanto me desperdicei e me perdi com um rumo cortado e sem punho para eu também os corte na pia do banheiro enquanto planejo minha morte no dia seguinte? Ora, vou lucrar mais plantando (ou matando) as tulipas do meu jardim.

Ellida, está na hora de cortar o cabelo, te prefiro com eles curtos e você fica muito mais admirável de cabelos “masculinos”, corte, não esqueça porque sei que você vai deixando, vai deixando e logo esta horrível outra vez. Penso que terei de queimar tuas cartas para continuar a viver. Mas, de todo jeito estou emagrecendo de tanta solidão, de tanta putrefação, de tanta carniça, vocês compreendem? Conseguem?

Olhe em volta, qual será seu próximo bonde? De que jeito o pegar se a essa hora eles também não passam? É simples: não pegue. Fiquem ai, parados, enquanto eu também vou parar aqui para poder ter sentido a minha sanguinolenta disritmia.

Posso dizer depois de uma tempestade um ditado latin que me cabe falar a ambos que mesmo eu não tendo certeza se estão verdadeiramente me olhando, quero inutilmente tentar, quero sem estar diante da brusquidão do dia-a-dia, da esperança que desperdício em clara fiúza que ela está indo ao ralo parcamente enquanto escovo os dentes, enquanto tudo esta acontecendo tudo está para acontecer, em princípio assim as coisas se tornaram lentamente e agora todos, todos estão mundanos e todos querem peregrinar a uma extasiação camuflada, por entre jóias, por entre raras aberturas que deixam dar a vida, agora ousada. Agora tímida. “A fronte precipitium, a tergo lupi”.

É o que choca. É o que me rastela tirando-me as folhas secas e os lixos. Choco-me, pois a vocês, lobos famélicos e a mim, meu próprio, meu próprio ruir, meu próprio assomo.

Sinto que agora tudo é apenas essência sensitiva desde que estamos cheios um do outro, e, durante qualquer oscilação se pode dizer o que direito o mundo não disse: Fugere Urben! E ele mesmo assim se envelheceria idêntico a um espaldar onde nossas costas de velhos não doem enquanto civilizadamente escutamos dilacerados uns aos outros, nem Ellida, nem Bernard disseram tal fragmento de sopro verdadeiro, digo, porque sei que não vou mais dizer.

Junior Monteiro
Enviado por Junior Monteiro em 08/10/2006
Código do texto: T259116