O quadro de Rubens

Miguel olhava um mundo à sua espera pela janela da classe. Nem ouvia a professora explicar pela milésima vez como somar as frações. Aquilo não lhe importava. O que chamava a sua atenção e aguçava sua curiosidade era o farfalhar das folhas ao vento, as nuvens brincando de caretas no céu, o tio do algodão doce que passava por ali todos os dias. Miguel pensava em todas essas maravilhas quando olhou ouviu a professora que o chamava. Deveria responder a pergunta. Claro que, nem em mil anos, conseguiria decifrar a resposta de tal enigma. Limitou-se a um “não sei” meio tímido, quase inaudível, porém, alto o suficiente para ser ouvido pela professora, que o repreendeu de uma maneira totalmente desnecessária, beirando a crueldade. Seus colegas de classe, que já não o deixavam em paz por causa de sua introspecção e retraimento, aproveitaram a oportunidade para mais uma chacota, a primeira do dia, daquelas que somente crianças sabem criar e executar com maestria. Miguel olhou para fora. Que diferença havia entre aquela classe tão opressiva, sem graça e totalmente deprimente, com aquela paisagem que lhe sorria lá fora, tão convidativa e bucólica, pelo menos na visão de um garotinho de treze anos completamente só.

Miguel foi para casa e mais uma vez teve de mentir à sua mãe dizendo que tudo correra bem, que amizades não lhe faltavam. Não queria que a mãe se preocupasse com mais um problema. Era o homem da casa, deveria cuidar-se sozinho. Subiu para seu quarto, seu recanto particular. Lá estavam seus livros, suas revistas em quadrinhos, seus brinquedos prediletos, tudo que uma criança completamente só poderia desejar e possuir. Mergulhava na leitura de seus heróis, era o desbravador de aventuras impressionantes, personagem principal de seus mundos paralelos. E sempre lhe ocorria imaginar um mundo somente seu, onde ele tinha amigos, namoradinha, tirava ótimas notas, onde não seria mais preciso mentir à sua mãe, onde o mundo de fora da janela não era mais interessante do que havia do lado de dentro. Nessas horas, a divagar por caminhos que não eram seus, lágrimas lhe caíam dos olhos e deixavam rastros em seu rostinho juvenil, então ele as secava rapidamente, por causa da mãe.

Havia um quadro pendurado na sua parede, chamava-se “”Paisagem Outonal com uma vista de Het Steen”, do pintor Peter Paul Rubens. Cada vez que o olhava ficava impressionado. Era exatamente a concretização dos seus sonhos mais felizes. A paisagem, as cores, causavam-lhe uma impressão inexplicável de encanto. O quadro tinha sido dado por seu avô materno, que ele considerava um pai, um homem cheio de idéias avançadas para um senhor de idade, mas extremamente divertidas para um garotinho. A perda de seu avô foi um choque tremendo, e aquele quadro lhe trazia lembranças ternas, conforto e segurança por motivos que Miguel nunca saberia explicar, mas tais explicações eram absolutamente inúteis. Era bastante sentir.

Mais um dia amanheceu, trazendo com ele a luz e total descontentamento. Aquilo significava mais um dia na escola. Ouvir o despertador tocar era um martírio, pois era a certeza de mais humilhações. Se não apanhasse, Miguel poderia considerar-se um garoto de sorte. Aprontou-se, tomou seu café da manhã, dirigiu-se ao quarto da mãe e, como fazia todas as manhãs, ela tascou-lhe um beijo na bochecha, recebendo de volta um sincero “Eu te amo”. Era um dos poucos momentos do dia que valiam a pena.

O dia passava devagar. As horas se arrastavam. Miguel contava os minutos para poder ir embora. Contudo, algo estranho aconteceu. Um grupinho de garotos da sua classe o convidou para brincarem depois da aula. Seu coração quase pulou do peito, sua alegria era imensa. Contava os segundo à partir daquele momento. O sinal tocou. Hora da saída. Miguel juntou-se ao grupinho de garotos e seguiu com eles. Enquanto andava, a vontade de se beliscar para descobrir se era realmente real lhe atiçava a alma, mas se conteve. Entraram mata adentro. Os meninos diziam ter encontrado um campinho ideal para baterem uma bola, mas o fato de estarem sem a mesma passou despercebido para Miguel, tamanha a sua empolgação. Percorreram o caminho por quase uma hora e chegaram em um clareira. O lugar era escuro, completamente isolado. Havia várias árvores que para Miguel pareciam postes de tão grandes. Quando se virou para perguntar se era exatamente ali que jogariam, foi agarrado pelos garotos. Muitas mãos seguravam seus braços. Jogaram-no com as costas batendo na árvore. Seguraram-no ali, enquanto um dos meninos passava uma corda por cima do galho. Fizeram com que Miguel subisse em uma cadeira, e enlaçaram seu pescoço com a corda. Lá ficou ele, de pé, em cima da cadeira, como em um cadafalso. Miguel chorava, pedindo para que eles o soltasse dali. Os garotos riam e xingavam-no, como se aquilo fosse um espetáculo circence. Deixaram Miguel sozinho, apenas olhando para trás para proferirem mais xingamentos.

Miguel ficou desesperado. Tentava de todas as formas desamarrar a corda que machucava seu pescoço, mas, enquanto fazia isso, seus pés resvalaram, a cadeira tombou, e ele ficou suspenso pela corda, debatendo-se, enquanto seu pescoço era quebrado pelo peso de seu corpo. Em alguns minutos o silêncio reinava. Ele já não se mexia mais, estava morto.

Miguel foi achado três dias depois e sepultado naquela mesma semana. Sua mãe já estava perdendo a sanidade, tamanha a dor que lhe assaltava o coração. Os garotos ficaram calados, como um pacto de silêncio. Sem maiores provas e testemunhas, o caso, aos poucos, foi sendo deixado de lado, até cair no mais completo esquecimento. As pessoas pararam de comentar o ocorrido, seu nome nao era mais citado nas rodinhas de amigos na escola. Era como se nada houvesse acontecido.

Quem sabe agora mesmo Miguel seja o rei de seu castelo, com direito a cetro e reverências, ou talvez ele esteja finalmente passeando e brincando naquela paisagem tão campestre do quadro, que lhe aquietava o coração. Talvez seu avô esteja conduzindo a carroça que segue ao mercado, com o neto do lado. Talvez, onde ele esteja agora, faça sol o ano todo, e Miguel possa brincar na beira da praia sem hora para tomar banho.

Boa noite, Miguel. Durma bem.