UMA HISTÓRIA ESQUISITA

UMA HISTÓRIA ESQUISITA

05.11.10

Wagner saiu apressado de casa. Nem percebeu que tinha esquecido as chaves do carro. Teve de voltar quando o elevador chegou à garagem. Antes que o elevador chegasse ao subsolo percebeu que estava sem as chaves do carro. “Bem feito”, disse para si mesmo, “quem mandou não ter colocado as chaves do carro em um único chaveiro junto às chaves de casa!”. Pressionou o botão do andar e subiu novamente. Ao sair do elevador, já no hall do andar, ouviu o toque do telefone de casa. Correu à porta apressado. Ainda ouviu dois ou três toques antes que pegasse o fone. Mas, mesmo antes de abrir a porta do apartamento, o telefone havia parado de tocar. Quem ligou não quis deixar recado na secretária eletrônica. “Quem poderia ser?” pensou ele. Não fazia a mínima idéia. Tanta gente ligava para ele todos os dias. Poderia ser qualquer um dos amigos ou colegas de trabalho. Ou algum agente da tevê. Desde que alugou o apartamento e passou a morar sozinho, tinha aumentado o número de amigos e de namoradas. O encontro com Bel para irem ao cinema já havia sido marcado e desmarcado várias vezes. Sabia que o encontro naquela noite de sábado poderia ser o último, caso cancelasse de novo ou atrasasse mais uma vez. Wagner não era lá uma pessoa muito preocupada com horários. Por isso, estranhou quando se irritou ao voltar ao hall e, ao tentar abrir a porta, ver o elevador movimentando-se para outro chamado. “Droga, quando a gente mais precisa desse elevador, alguém chama”. Apertou insistentemente o botão, como se isso fizesse o equipamento andar mais depressa. O visor indicou que o elevador havia subido para o andar acima do seu. Alguns segundos depois, Wagner ouviu o ruído do elevador movimentando-se. Abriu a porta apressado e deu de cara com Helô.

Não conhecia Helô, já que havia se mudado para o prédio recentemente. Helô era linda. Estava bem vestida e perfumada, saindo para um encontro. Wagner escancarou o seu mais sedutor sorriso e cumprimentou Helô, que retribuiu sedutoramente ao cumprimento. “Prazer. Wagner” disse estendendo a mão, “mudei-me há pouco tempo para o prédio”. “Prazer, Helô”, respondeu a moça estendendo a mão, retribuindo o cumprimento. “Seja bem vindo ao nosso condomínio. Vai gostar daqui. Moro aqui há dois anos”. Trocaram mais algumas palavras e chegaram à garagem. Prometeram se falar no domingo, já que Helô mencionara um grupo de amigos e amigas, moradores do prédio, que se encontraria no dia seguinte ao redor da piscina. Era verão e os dias estavam ensolarados e propícios ao banho de sol na piscina. Wagner dirigiu-se ao veículo, não sem antes agradecer a sorte por ter esquecido as chaves do carro e de ter podido conhecer Helô.

“Nem adianta me pedir desculpas, senhor Wagner. Estou aqui plantada há quase meia-hora. E depois, vocês homens, dizem que somos nós, as mulheres, que atrasamos!” disse Bel, com uma ponta de irritação na voz. Wagner deu um beijo no rosto da moça e pediu desculpas. De tantas desculpas já pedidas, Wagner havia desenvolvido um jeito especial de fazê-lo. Ainda não eram namorados, mas aquele encontro poderia resultar em namoro. “Já comprei os ingressos”, disse Bel, “a fila estava imensa, então, aproveitei o ‘seu’ atraso para ganhar tempo”. Entraram na sala justamente no momento em que as legendas do início do filme estavam aparecendo. Encontraram um lugar embaixo, diante da tela. Para quem havia entrado na última hora, não podiam reclamar.

O filme era americano e tratava de comédia de costumes. Três irmãs conheceram o mesmo homem em situações diferentes e iniciaram um relacionamento com ele, sem que soubessem do caso de cada uma. Com uma o relacionamento era profissional, no ambiente de trabalho. Joyce, uma das irmãs, havia sido transferida para aquela filial quando conheceu Wilson, um dos executivos. Encontraram-se algumas vezes fora da empresa em barzinhos das imediações do escritório, quando colegas da empresa promoviam festinhas de aniversário ou comemoração por terem atingido as metas. Sentiram-se atraídos um pelo outro e combinaram se encontrar no final de semana. Joyce gostava de praticar esportes ao ar livre e costumava andar ou correr em um parque da cidade. Encontraram-se lá antes de agendarem um novo encontro à noite que resultou em romance.

Wilson havia conhecido Cristina, irmã de Joyce, no casamento de um amigo de infância. Sentaram-se lado a lado na igreja e entabularam uma conversa respeitosa. Mais tarde encontraram-se na recepção que os noivos ofereceram em um elegante Buffet da cidade. Wilson deu um jeito de ocupar a mesma mesa de Cristina. Dançaram e divertiram-se bastante naquela noite. Amanheceram juntos no apartamento de Cristina. Cristina havia se separado há poucos meses e não tinha filhos. Resolvera dar um tempo e buscava apenas relacionamentos passageiros, sem projetos ou planos de futuro. Se o relacionamento fosse se intensificando, estaria aberta a uma nova tentativa. Mas, definitivamente isto não estava em seus planos imediatos.

Já com Natália, a caçula das irmãs, a coisa tinha sido diferente. Foi paixão quase à primeira vista, quando se conheceram dois anos atrás. Natália jogava tênis em uma academia quando Wilson esperava a sua vez ao lado da quadra. Começou a admirar a leveza e agilidade daquela tenista loira, de sorriso fácil e belas pernas. Wilson e dois amigos já estavam prontos aguardando um dos parceiros. De última hora o parceiro ligou avisando que não poderia ir ao jogo. Teriam que arranjar uma pessoa para completar a parceria. Wilson foi quem convidou Natália quando a partida que Natália jogava terminou. Natália não estava cansada, já que mantinha a forma física em corridas com a irmã e malhava em uma academia. Para ela, aceitar o convite dos três amigos não seria problema. Teria fôlego para mais duas horas de exercício. Por cortesia, Wilson sugeriu que formassem a dupla. Pediu aos amigos que tivessem cautela no jogo, já que ele estava em desvantagem por jogar com “uma mulher”. Natália, como esperado, não gostou do comentário e desdobrou-se para jogar melhor que o parceiro. Depois da partida Natália foi convidada a tomar uma bebida com os três amigos. Recusou, já que tinha outro compromisso. Depois desse dia, Natália e Wilson viram-se com mais freqüência. Primeiro na quadra de jogos. Depois em pequenos encontros. Até que começaram a sair com mais freqüência, ainda sem considerarem sério o compromisso que tinham iniciado. Isso, no entanto, não impedia que Wilson tivesse outros encontros com mulheres. Por isso Wilson saia com Joyce, do escritório. Cristina, a do casamento e Natália, a tenista. Mas, o relacionamento, inicialmente superficial, foi se alongando e se tornando mais firme. Já tinha passado dois anos desde aquele primeiro encontro na quadra de esportes.

Tudo corria bem até que Natália convidou Wilson para um jantar em sua casa, no sábado, em comemoração ao seu aniversário. Convidaria as duas irmãs para que Wilson as conhecesse e também os pais. Os pais! Isso era o que Wilson temia. Conhecer os pais poderia ser o começo de um compromisso mais sério. Mas, não se importou. Como em toda comédia americana, os pais têm pouca influência na vida adulta dos filhos.

No dia marcado para o jantar, Natália passou a manhã no SPA. Havia agendado massagem tailandesa e hidratação no corpo. Marcou hora também com a cabeleireira, a manicure e depilação. Era seu aniversário e desejava passar um dia maravilhoso. O jantar seria servido pelo serviço de Buffet que havia contratado especialmente para a ocasião. Não precisaria se preocupar com a comida, a bebida, os pratos e talheres e nem com o dia seguinte.

Ainda na recepção do SPA, enquanto aguardava para o primeiro agendamento, começou a folhear uma revista feminina quando uma moça a abordou, comentando sobre a repercussão do caso da atriz Josephine Jackson, reportagem em destaque na revista. Natália ainda não sabia do caso. A moça admirou-se: “não soube? Ah! Você não vê tevê, mulher?! Pois eu vou contar”.

Josephine - que se casara recentemente com o ator Malcolm Michael -soube pela imprensa que o marido ainda se encontrava com sua ex. Michael tinha dois filhos do casamento anterior e era um pai dedicado e presente. Junto com a ex-esposa participava das reuniões de pais do colégio em que estudavam os filhos e, sempre que a agenda permitia, ia assistir aos jogos de baseball dos filhos. Pois em um desses jogos, abraçou a ex-mulher na comemoração de um ponto do jogo e percebeu que ainda sentiam algo, um pelo outro. Passaram a se ver às escondidas. Em casa, Michael continuava sendo um marido atencioso e amoroso. Por isso Josephine nem percebeu o affaire. Não fosse a bisbilhotice de um hóspede de um hotel de luxo em que se encontravam e tudo permaneceria no maior sigilo. Embora ambos tentassem acessar o hotel disfarçados, o hóspede percebeu que aquele senhor distinto que cruzara com ele no corredor do andar, assemelhava-se muito com o galã Malcolm Michael. Ficou de olho e, quando o casal saiu do quarto, tomou o mesmo elevador. Disfarçou um movimento, fingiu que atendia ao celular, e bateu uma foto frontal do casal abraçado. Para não ter dúvidas, abordou Michael: “Desculpe-me, senhor. Mas, creio conhecê-lo de algum lugar”. Michael, como bom ator, disfarçou a voz, emprestou um sotaque de outro estado e ruminou algumas palavras dizendo ser isso impossível, já que era a primeira vez que visitavam, ele e a esposa, aquela cidade. Moravam em uma região distante e possuíam um rancho onde viviam praticamente isolados do mundo. O hóspede não acreditou. Sabia que o ator tinha essa habilidade, a de trocar sotaques. Já havia visto o ator fazer isso em muitos filmes. Saíram juntos em direção ao lobby do hotel. Esperou que o casal fizesse o check-out e aproximou-se da recepcionista. Perguntou a ela se havia algum recado. Enquanto ela se virou para conferir no escaninho, o hóspede pegou o comprovante de pagamento do cartão de crédito que estava na bancada inferior da recepção e leu o nome do proprietário do cartão: John Malcolm Andrews. A seguir, correu para a lan-house do hotel e consultou o nome John Malcolm Andrews no Google. Bingo! Aquele era mesmo o nome verdadeiro do ator. Ligou imediatamente para um amigo, jornalista que trabalhava em um jornal local. O amigo jornalista reconheceu a ex-esposa de Malcolm Michael na foto e reconheceu o próprio Malcolm Michael. Publicaram a foto tirada do celular em primeira mão. O texto que se seguiu foi uma história montada pela imaginação do jornalista. A matéria foi vendida para outros jornais de maior veiculação. Um dos exemplares caiu nas mãos da atriz Josephine Jackson, que estava na Filadélfia para tratar do contrato de participação em um novo filme.

A notícia caiu feito uma bomba no meio artístico, já que o casal Jackson-Michael era muito badalado. O hóspede ganhou algum dinheiro do jornal local. Mas, quando a notícia repercutiu, passou a ser assediado por toda a imprensa do país. Todos queriam uma reportagem exclusiva. Até mesmo a produção de um famoso talk-show ligou para ele, convidando-o para ir ao programa.

Steve, esse era o nome do hóspede, não acreditou que uma simples foto de um celular iria resultar em tamanha repercussão. Até mesmo um agente ligou para ele, visando capitalizar o momento de fama, faturando com fotos e entrevistas. Aturdido, Steve recolheu-se em casa. Ligou a tevê para ver se havia novos fatos e sintonizou um canal de notícias.

O canal apresentava uma reportagem sobre a morte por overdose do marido da cantora Corinne Bailey Rae. Steve aproximou-se da tevê, incrédulo. Amava a cantora inglesa e seu jeito doce de cantar. Seu tom de voz e seu jeito de interpretar lembravam-lhe a doçura da voz de Billie Holiday. Ao fundo da reportagem, a emissora colocou a canção “Another Rainy Day”. Na canção, uma frase marcava a música “Por que eu sou tão tímida perto de você?”. A melodia, que tem um tom cadenciado, com a voz inconfundivelmente terna de Corinne, diz na letra que havia feito uma canção, mas que a canção não tinha ficado tão boa, e que deram um jeito de refazê-la juntos.

Steve recolheu-se aos seus pensamentos e não mais prestou atenção no resto da reportagem. Pensou que as pessoas se encontram e se separam de uma forma ou de outra. Lembrou-se de Michael, o ator que tinha ajudado a ferrar com a foto do seu celular, da ex-mulher de Michael e, principalmente, de Josephine Jackson, que estava arrasada com a história. Comparou suas vidas à sua própria vida. Também ele havia sido abandonado pela mulher que amava. Outro homem, mais charmoso, provavelmente mais rico, havia tomado Ellen de si. E olhe que ele havia feito tudo para que Ellen fosse feliz com ele. Mas, nunca dera sorte com as mulheres. Tivesse tido ele uma mulher como Corinne, que era meiga, tinha uma voz sedutora e tímida e, além de tudo fazia canções incríveis, e talvez fosse feliz. Fosse ele o marido de Corinne não buscaria prazer nas drogas, já que a verdadeira razão da vida está em buscar uma alma gêmea, se é que isso existe, e viver com essa pessoa até o fim dos tempos. Não partiria um coração doce e terno como o de Corinne.

Envolvido nestes pensamentos Steve adormeceu diante da tevê e sonhou com Corinne. Na verdade, as imagens se alternavam. Às vezes Corinne era Ellen, a ex-mulher, e, às vezes, Ellen era também Josephine, a atriz traída. Ele era o ator Michael, mas às vezes era o amigo jornalista. No sonho, Steve não queria trair Corinne, mas Ellen e Josephine eram tão sedutoras, que se perdia com o encanto de cada uma. Uma completava a outra e todas juntas formavam a mulher ideal. Foi no sonho que Steve teve uma experiência incomum. No sonho não se chamava Steve, mas chamava-se Wagner. Havia perdido Corinne, com quem tinha vivido em conjunto algum tempo. Decidira viver sozinho. Conheceu muitas mulheres desde que vivia a vida de solteiro, até que conheceu Bel no trabalho.

Marcaram diversas vezes irem ao cinema, já que Bel adorava os filmes de Josephine Jackson, especialmente quando contracenava com o marido Malcolm Michael. Atrapalhado como sempre, Steve, na pele de Wagner, esqueceu as chaves do carro, quando encontrou a tenista Helô no elevador, com quem se encontrou no dia seguinte à beira da piscina do prédio que moravam e encontraram-se muitos outros dias depois. Até que Helô convidou-o a jantar em sua casa onde apresentaria suas irmãs, Ellen e Natália, que Wagner conhecia de outros lugares. No sonho, Steve se via na pele de Wagner, como se estivesse sentado em uma poltrona de um cinema. Na tela do cinema o ator Michael fazia o papel de um senhor caseiro e comportado. A ex-esposa do ator era atriz e chamava-se Josephine. Fazia o papel de uma prostituta de luxo que marcava seus encontros com famosos em hotéis de luxo, com o intuito de obter fotos comprometedoras para extorqui-los. No colo de Wagner, o balde que segurava não tinha pipocas, mas estava coberto de pedras de gelo. Na poltrona ao lado, com uma garrafa de uísque nas mãos, Steve enchia o copo de Helô. Wagner tomava o copo cheio de uísque de uma vez só, e Steve tornava a enchê-lo. Bebia pela falta de Ellen. Pela falta de Cristina. Pela falta de Josephine. Pela irritação de Bel. Pela falta de si próprio.

Foi por causa da bebida que a batida do carro foi forte. Só lembrava-se de Corinne de jaleco branco tomando o seu pulso na maca, aplicando uma overdose de droga na veia do próprio braço, suplicando desesperada: “fique comigo, fique comigo”. Ao fundo, os acordes de “Another Rainy Day”, que Corinne cantava docemente, enquanto Steve sorria adormecido.

Paulo Sergio Medeiros Carneiro
Enviado por Paulo Sergio Medeiros Carneiro em 06/11/2010
Reeditado em 17/01/2014
Código do texto: T2600495
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