Crônica de uma necrópole

Anjos sujos, presos a concreto pelos pés; donos de asas que não podem voar; donos de faces angelicais - posto serem anjos; donos de nada - posto estarem a nada guardar. Belos e viris ostentam uma juventude perene, enchendo de um falso élan a cidade dos que perecem. Figuras de uma glória opaca a defender em silêncio solene o direito inalienável de sermos esquecidos por todo sempre.

...E Natália não sentiu que estava sendo observada quando virou o rostinho de boneca em direção ao burburinho que vinha do vestíbulo do salão. "Alguém importante chegou", pensou quando espocou sobre si o clarão do flash que, poucos dias após, revelaria o lento e charmoso movimento da menina debutante num pedaço oval de porcelana, emoldurado em bronze, perfeito para adornar o jazigo da, agora, virgem leucêmica.

Aqui, o pranto deve permanecer para que jamais as almas se privem do banho que lava delas quaisquer resquícios de vida, que arrasta suas memórias, suas consciências, seus amores; e, na ausência de lágrimas, usa-se o orvalho mantido nos olhos das santas e nas trombetas das flores despercebidas ou das ironicamente nascidas nos leitos sepulcrais.

"O que há além da sepultura? Silêncio?" - eram as perguntas que fizeram brotar espessas gotas de suor da calva de Padre Josué que jazia imóvel e frio diante da cruz ao não ouvir anjos trombeteando sua entrada triunfal, assim como ele mesmo pregara milhões de vezes para seus séquitos deslumbrados. Os últimos lampejos de consciência, seu confutatis maledictis, revelaram-lhe as dúvidas de um homem que talvez não tenha sido tão pleno em seu ofício – eis sua derradeira e definitiva inquisição - e, misturadas às dores tenebrosas que lhe conferiam expressões que amalgamavam estranhamente comicidade e agonia, apareciam pernas brancas e roliças sustentadas por pés embarreados flexionando-se num infindo quarar de roupas. Não teria sido este o verdadeiro chamado divino? Mas, para o padre, claro, já não era mais possível converter-se ímpio. Uns pensam que a fé faz com que esperemos demais da morte. Os céticos crêem se precaver dessa possível e irreversível desilusão. Eles esperam demais da vida.

Não nos enganemos, pois há uma falsa paz ocupando estas alamedas. Se olharmos bem de perto, podemos ver demônios com suas boquinhas estridentes e olhos aturdidos berrando sem voz, estampados nos tampos de mármore, verdadeiros hades onde habitam estas criaturas de minério e quartzo. Entretanto, se quisermos conhecer as trevas inferiores, ergamos algum de tais tampos e então contemplemos ratos, baratas, escorpiões e lagartixas a se devorarem mutuamente, formando uma minúscula cadeia alimentar, uma vez o prato principal já ter sido devorado. E não nos espantemos se, ao bisbilhotar a tumba de algum político, este tártaro for ainda maior e a comilança mais frenética e escatológica. A morte também imita a vida.

Sempre que olhava pelas janelas baças, entre o murmúrio das ondas, ouvia seu pai a gritar com sua voz de acordeão afônico na velha Armênia: “não vá tão longe”. Mas as pernas eram como engrenagens incontroláveis, sua mão branca e leve teimava em acenar euforicamente, e a alma, tão mais quanto o apito do transatlântico, bramia. Não tinha noção de por que partia, só pressentia que ia para não mais voltar. Olhar para trás, jamais. Sentia que, se virasse o rosto, o velho que lamuriava cansado se tornaria todo um mar, todo um mundo, todo uma canção, que lhe encheria de lágrimas e morte: sabia ser a saudade o sal que nos sedimenta em estátuas.

Estátuas... Estas são a eterna espera, a espera pelo eterno, o mais justo exemplo de fé: aguardam, firmes, o momento seguinte que sabidamente jamais virá - e, sim, talvez venha daí o motivo inconsciente que nos faça adorar tanto estes deuses de calcário ou gesso que não falam e não ouvem. Estátuas de anjos podem ser de anjos que anseiam voltar para o paraíso; demônios em pedra podem ser demônios que almejam voltar às trevas, porque mesmo estas, às vezes são desejáveis, assim como era desejável, para ela - para a polaca, como era chamada pelos marinheiros - voltar para sua terra pelos turcos destroçada. Mas não. Mesmo sem ter se virado durante sua partida, tornou-se efígie ao esperar o iminente retorno. E, apesar dos tantos homens que, entre sacos de açúcar, na escuridão das docas, dela se serviram, somente restou esse: um velho todo de bronze verde-azulado pelo zinabre, ao pé da campa, que parecia engolir a própria face dada a ânsia em ser resgatado por aquela mão branca e leve. Com as pontas dos dedos cagadas de pombo, ele ainda está acariciando a letra “M” da lousa: “Heru Mertar” (não vá tão longe).

Ao cair da noite, os olhos dos cristos continuam vigilantes, alumiados fugazmente pela vela que fumega num castiçal ao longe; ela, singela, dizem, tem a tarefa de iluminar os espíritos; e, apesar do mundo que ruge ao lado de fora e das prostituas que, em sussurros e xingamentos, cravam seus saltos nos muros da necrópole, repousando seus corpos já exaustos das tantas pequenas mortes, os querubins agora cantam uma ode à estática com alaúdes sem cordas e clarins entortados para a ilustre platéia composta por algumas caveiras onde habitaram línguas velozes, ouvidos astutos e olhos brilhantes, cujos egos que as sustentaram eram tão grandes que eram capazes de encher as casas de concerto mesmo que fossem os únicos presentes. Nesta noite de gala, certamente perseguem a luz trêmula da vela tomando-a por holofote, pois o poder da vaidade é imensurável, ultrapassa qualquer barreira, até mesmo a que diz, na entrada do cemitério: sic transit gloria mundi.

Por um momento, parou e sentiu seu coração batendo compassadamente e, por isso, se desesperou em silêncio como a folha que é rodopiada pelo vento e é tombada novamente sem que ninguém perceba. Dera-se por conta, mais uma vez, de quão permanecer vivo estava fora de seu alcance, muito embora aquela máquina pulsante estivesse bem no centro de seu peito. A morte é bem assim, vive nos pregando novos sustos com suas já desgastadas constatações, sempre consegue surpreender mesmo sem ser original. O poeta observava a lápide de outro poeta que repousa num imenso mausoléu de lajes planas de granito negro, tão concreto quanto a concepção artística que lhe rendera bons livros. Era um desses gentlemen, um verdadeiro farol marítimo que se erguia, sempre com um bom scotch na mão, para alentar os amigos perdidos nas tempestades da alma, elemento tal que ele esmiuçava com cartesiana precisão; porém, como qualquer farol visto de perto, guardava em si também toda a solidão dos oceanos e todo o silêncio de suas negras profundezas. Seu gosto estético fez com que preferisse um tiro no meio do peito para que, por aquele pequeno buraco, vazasse toda condição erma de sua existência; diferente de seu amigo literato romântico que, agora, com a mão no queixo, observa sua lápide, mas que, mais tarde, desesperado pela ausência de entusiasmo criador, como Alfonsina*, partiria para o fundo do mar em busca de novos poemas, tornando-o seu ataúde. Ambos então teriam conquistado o que tanto lutaram para construir enquanto vivos: a eternidade pela arte, o que os distingue, mas não muito, dos habitantes desta polis.

Um pouco mais adiante, um coveiro assobia ao içar um esquife, emitindo um som alquebrado, assim como a própria ossada que vinha à luz aos solavancos. A névoa matutina esquadrinha as cruzes, a estrela de Davi e decepa os santos; faz com que a pequena ermida pareça estar flutuando, nos dando a imagem de que este lugar não é mais este lugar. E somos tentados ainda a pensar que, se transpuséssemos esta bruma, através do foco de claridade nela, alcançaríamos um outro espaço como se este tivesse sido criado neste mesmo instante e que jamais seria reproduzido exatamente se movimentássemos nosso corpo que fosse um centímetro à esquerda ou à direita. É uma Avalon que nos ilude. Estes lugares são a reinvenção da vida, que justamente nos afasta da morte, ou até mesmo a extingue, posto que, diante da novidade, ficamos tão vivos a ponto de pensar que conheceremos apenas os rumores do fim, sua aproximação como um marchar gradativo, mas jamais sua consumação, pois a morte só passa a existir quando começa a inexistir consciência. “Teremos então temido apenas um conceito”, diremos empolgados, mas o choque com o real se dá ao som dos ossos se batendo como canos velhos. “É bom que um homem assim tenha sido enterrado com as costas viradas para a terra, pois não corre o risco de ser apunhalado por trás novamente”, dizia em pensamento o coveiro afundado na campa quando chacoalhou o crânio do banqueiro de sobrenome impronunciável e ouviu um tilintar. Tratava-se de uma moeda de ouro como as colocadas nas bocas dos romanos para que estes pagassem o barqueiro responsável pela travessia. “Pode ficar pra você”, disse o procurador da família ao tirar o lenço do nariz.

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*Alfonsina Storni, poetisa.

- Texto livremente inspirado na música de Arvo Pärt, Christoban de Moralles e Al di Meola.

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Atibaia,

Verão de 2010

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Otto M
Enviado por Otto M em 25/11/2010
Reeditado em 18/12/2010
Código do texto: T2636739
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