Bordados da Alma -EC
 
Quarenta e nove casas divididas pelos dias da semana dava um total de sete casas. O sete e seu múltiplo, um número mágico. 3+4. Três o triângulo, representando a Santíssima Trindade. Quatro, o quadrado, representando os quatro elementos: terra, água, ar e fogo. O Espírito sobre a Terra. Ainda se lembra da toalha de mesa que bordou baseada nessa sua compreensão. E do espanto que sentiu quando lhe deram pela toalha a quantia exorbitante que pediu simplesmente porque não pretendia vendê-la. O dinheiro arrecadado deu para sustentar a vida simples que levava por mais de um ano. Enquanto ia preparando as outras peças, que comercializaria no dia do Jubileu.

Além das casas do povoado arvorou-se  senhora e dona também da pequena Igreja e do Cemitério. Cuidava deles como se fosse a sua própria casa.Cada dia da semana abria as janelas de um bloco de sete casas para que arejadas ficassem. As segundas ia ao cemitério, aos domingos, a Igreja.  E a todos  replicava em seus bordados contando suas histórias.

Bordados da Alma. Foi assim que sua amiga batizou o conjunto formado pelas poucas peças que fizera no primeiro ano da mais completa solidão ali. E insistira em colocá-las a venda, estendendo-as no gramado em frente a sua casa, onde pregou uma tabuleta rústica: Bordados da Alma. A amiga, a última pessoa a desertar da vila, sabia de suas dificuldades financeiras. A partir daí passou a bordar sob encomenda, com uma especificação: entregaria todas as encomendas no dia do Jubileu depois de expor toda a mercadoria sobre a grama em frente a casa. Não queria ver sua solidão maculada pela presença de pessoas que viriam em busca de sua arte. Eles compreenderam e as encomendas e as entregas se faziam anualmente. 
 
Mas havia uma peça, um lençol de cobrir que ela nunca mostrou a ninguém. Esse era realmente o seu bordado de alma. As lembranças daquele amor que vivera totalmente, ali expostas nas figuras mais delicadas, ponto por ponto. Ali estava a sua história, a sua vida. Guardava protegido por um alvíssimo lençol branco, envolto ainda em papel de seda branco. Nunca deixara ninguém ver e só o retirava do envoltório quando estava completamente sozinha dentro da pequena casa, portas e janelas cerradas.
 
E agora nem mesmo sabia por que o tirara para fora e o estendera na cama, como se a tivesse preparando para uma noite de amor. E noite após noite, após colocar a lanterna em frente da casa, ia dormir no velho sofá da sala, a espera. Sim ela sabia, mas temia confessar. O medo da desilusão não a deixava ver claramente que a espera logo teria fim. A hora da redenção estava chegando.