GARGANTA

GARGANTA

Nessas férias resolvi visitar a cidade onde meu avô viveu. Um passeio para relembrar os velhos tempos.

Com certa emoção, estacionei o carro em frente à antiga casa.

Desci admirado. A vegetação já não é mais a mesma. Muitos prédios avançaram na encosta do morro. Sobrou pouco do marrom e do verde agora sem força. Apesar das mudanças, a garganta ainda estava lá. Garganta foi o apelido que os moradores deram ao corte feito no alto do morro por onde passa a principal avenida e que sempre me pareceu ser o fim da cidade porque os prédios pareciam proibidos de avançar morro acima. Minha dúvida de criança voltou. Naquela época não podíamos subir. Era perigoso; muitos carros já transitavam por ali garganta adentro. Morríamos de vontade saber o que havia do outro lado do morro. Criamos lendas sobre possíveis reservas indígenas, o fim da cidade, o fim do estado de Minas Gerais, quem sabe o fim do mundo, um abismo sem fim. O que acontecia aos que ousavam atravessar? Nunca mais voltavam à cidade? Memorizávamos as placas e cores dos carros que subiam e ficávamos horas esperando que voltassem... Nunca voltavam. Nenhum carro jamais voltou das profundezas da garganta. Sentávamos em frente à casa centenário do meu avô e admirávamos os homens que subiam o morro a pé. Alguns com enxada nos ombros, outros com sacolas pesadas... Provavelmente desbravadores dispostos a escavar as profundezas da garganta, talvez buscassem ouro, uma civilização perdida, quem sabe? Caminhões baú, sem qualquer inscrição, às vezes, seguiam em direção ao abismo, certamente homens e equipamentos da NASA em missão secreta, só nós sabíamos. Durante a noite, meu avô nos contava histórias de sua juventude. Uma vez ele disse que depois da garganta havia um imenso lago onde sereias, tristãos e botos construíram uma cidade encantada. Ele namorou uma dessas sereias, e quando foi pressionado pelo pai da moça a virar um Tristão ele fugiu com ela para a cidade, casaram-se, constituíram família e ela se transformou numa mulher aparentemente comum, mas com poderes e encantos de sereia que só ele conhecia, por isso, todos nós, seus descendentes, também tínhamos poderes sobrenaturais que não sabíamos ainda muito bem como controlar. Eu sentia isso todas as vezes que entrava na água. Quando criança, ganhei cinco competições de natação e, tinha certeza, todas graças a minha progênie encantada. Já minha avó ria e desmentia tudo, chamando-o de mentiroso e besteirento. Ela dizia que depois da garganta havia apenas um bairro muito pobre. Sabíamos que era mentira, apenas para nos ajuizar a não tentar desbravar o desconhecido, projeto esse, que nunca tivemos coragem de por em prática.

Quase trinta anos depois, todas essas lembranças me vieram ao pensamento ao chegar ao lugar onde passava minhas férias de inverno. Tranquei o carro e venturoso subi o morro, até o topo, pela primeira vez. Não foi surpresa pra mim, constatar que do outro havia apenas mais um bairro, que já não me pareceu tão pobre como minha avó o descrevia na época. Foi como se um encanto tivesse sido quebrado. Olhando o caminho de volta até o carro, ponderei que não deveria ter subido.

Soltei um grito que estava preso há tantos anos e voltei caminhando ladeira abaixo, enquanto conclui em meus pensamentos que a paisagem do passado vai ficando mais azul, mais distante, muito além daquele horizonte que acabara de ver e que se fez abater sobre mim mesmo, para viajar pelo tempo perdidamente em minhas lembranças. Vã tentativa de reencontrar um lugar que já havia se desprendido da minha vida nesse trajeto tão distante. Mas não é uma perda da matéria, toda a cidade ainda estava ali, com algumas modificações, é verdade, mas não é mais o mesmo lugar do passado, pra mim... Uma mudança da imagem no tempo. Percebi que em cada quilometro desse caminho foi ficando um pouco de mim e é inútil voltar, porque o vento levou aquilo que o tempo ainda não modificou. Aquelas imagens fictícias que havia criado em minha memória de criança nunca mais se reproduzirão em mim, agora só me resta rememorar as histórias de infância contadas por meu avô, porém, depois de descobrir o que realmente havia atrás do morro, e saber que nada lá é infinito como pensava, percebi que na verdade as coisas e os lugares estão no tempo e não no espaço. E só podemos revisitá-los, realmente, dentro de nós mesmos.