Lembranças da chuva...

Lembranças da chuva...

Estava um dia frio e chuvoso e através das grandes janelas de minha casa, observava as crianças brincando no jardim. Elas, de formas inocentes e despreocupadas com as sombras do futuro, se divertiam pulando corda, jogando bola e saltitando nas poças d’água. Retrocedi ao meu passado e vislumbrei a minha sofrida infância. Na favela onde morava, não podíamos sair do barraco para brincar na rua, pois nos dias da semana a minha mãe saía bem cedo para trabalhar como faxineira nas mansões do lado nobre da cidade. Eu transformava as velhas caixas de fósforos em lindos carrinhos de corrida e as enferrujadas tampinhas de garrafa viravam bonecos. Brincava por horas a fio, esquecendo até mesmo a fome que batia. Naqueles dias a rua não era minha. Depois do almoço requentado por Dorinha, minha irmã mais velha, de 12 anos, eu voltava ao meu mundo imaginário com minhas corridas de caixas de fósforos e as brigas dos super-heróis de tampinhas de garrafas. Somente quando a tarde caía, a maçaneta da porta girava, era a minha velha mãe de volta. Cansada da labuta, trazia pães dormidos da casa da patroa para o nosso jantar. Era o último giro da maçaneta, graças a Deus. Meu pai, que havia morrido dois anos atrás vítima de uma briga no bar da esquina, não chegaria mais embriagado para bater na minha mãe. Estávamos todos juntos e eu, após um banho frio, de cuia, corria para o meu pedaço de colchão ao lado da parede, na esperança de acordar para o dia ensolarado de domingo. O domingo era um dia especial. Minha mãe ficava o dia todo em casa e nós podíamos brincar na rua como as outras crianças. Zezinho, Naldo e Chiquinho, jogavam futebol com uma velha bola de meia feita por uma tia que morava na última casa da rua. Dorinha, Maria e Irene, lavavam as nossas roupas sujas no tanque de cimento. Jurema tomava conta de Dedé e Mundinha, que eram bem pequenos. Enquanto mamãe se dividia entre o preparo do almoço e o estender das roupas, eu continuava brincando com meus carrinhos de caixa e meus bonecos de tampa, só que agora, eu tinha como coadjuvante a areia, que eu molhava para fazer casinhas. O cheiro do feijão de minha mãe penetrava em minhas narinas me abrindo ainda mais o apetite, no entanto, eu estava envolvido demais com minha brincadeira para sentir fome. De repente, alguns pingos começam a cair sobre mim, depois outros e outros, tornado-se uma forte chuva. Tentei proteger os meus carrinhos de papel debaixo de minhas garagens de areia, foi em vão, a forte ventania arrastou tudo. Não importava. Eu sempre sonhei em brincar na chuva num dia de domingo. Todas as vezes que chovia eu estava dentro da minha casa, que mesmo de taipa e ao pé do morro, com nossos corpos unidos, me protegia do frio. Não sei o que me deu naquele dia, senti vontade de acompanhar a correnteza. Coloquei minhas tampinhas na água transformando-as em barquinhos e saí descendo morro abaixo, livre como uma criança. A chuva aumentava e a temperatura baixava. Apesar de estar somente de calção, de tão eufórico com a nova brincadeira, o frio passava despercebido. Na minha casa, mamãe enrolava todos em panos secos para aquecê-los e os mantinha junto a ela. Todos em silêncio, rezavam para que a chuva passasse para não derrubar o nosso barraco. Eu, na rua, rezava para que ela não terminasse, para que eu demorasse a retornar para casa. No cair da tarde, a chuva foi diminuindo e resolvi voltar. Olhei para trás e percebi que estava perdido. Havia entrado em muitas ruas atrás dos meus barquinhos levados pela correnteza. Sentei no meio-fio em frente a uma igreja e comecei a rezar. Tudo o que me lembro de ter pedido era um pedaço de pão e uma roupa seca. Estava com muita fome e o vento frio me fazia tremer dos pés à cabeça. Uma oração foi interrompida por um casal que se abaixou ao meu lado e me fez uma série de perguntas; meu nome, idade, nome dos meus pais, onde eu morava... Eu só consegui responder que estava com fome e frio. O homem de imediato retirou o seu casaco e me vestiu. Pegou-me nos braços e me levou para um bonito carro com motorista. Ainda ouvi quando deu a ordem para ir depressa para casa. Com aquele calor, muito mais humano do que térmico, adormeci. Por volta das 22 horas, acordei. Pensava que estava sonhando. Estava deitado numa cama somente minha, um quarto colorido, cheio de brinquedos e bem aquecido. Em volta o casal me observava. Perguntaram o que eu queria comer. Respondi: - pão. Fizeram um sinal para uma empregada que em poucos minutos trouxe uma bandeja com pães acompanhados de uma deliciosa sopa quentinha de verduras. Comi dois pratos e adormeci. Sonhei com algo que nunca havia imaginado, o sonho de não voltar mais para casa. No outro dia, os rostos eram mais familiares, perguntaram outra vez o meu nome, minha idade, o nome dos meus pais e onde eu morava. Olhei em volta, vi uma televisão colorida ligada num canal de desenhos animados e uma bicicleta novinha ao lado da cama. Ainda era criança e não hesitei em responder: meu nome é Pedro, tenho 5 anos, não tenho pai e não sei onde moro. O casal se olhou, e perguntou outra vez: e a sua mãe? Disse minha maior mentira, minha mãe também morreu. O casal me abraçou e me disse, a partir de agora você será nosso filho. Terá uma família e um lar e jamais passará fome e frio. E assim fiquei por todo o dia até a mais triste notícia que recebi em minha vida. Na sala de jantar, vi as imagens na televisão de uma tapera que havia desabado no morro, matando oito crianças e a sua mãe. Apenas o corpo de uma criança não havia sido encontrado. Hoje faz vinte anos daquela tragédia cujas imagens trago em minha cabeça cada vez que cai uma gota de chuva. Tenho medo dela. O que tanto amava hoje me traz pavor. Parei diante do espelho e me vi um covarde. Decidi acabar com aquele poltrão. Peguei um revólver dentro da gaveta e apontei para a minha cabeça. Olhei-me por mais alguns segundos e não tive dúvida, aquele pusilânime teria que desaparecer. Engatilhei a arma e disparei um tiro certeiro. Aquele pedaço de homem havia desaparecido. Não me preocupei com os pequenos cortes na mão. Corri para o meu quarto, coloquei um calção, e desci com uma maleta de objetos que eu colecionava há muito tempo. Enfrentei a chuva após 20 anos. Abri minha maleta e espalhei centenas de caixinhas de fósforos de diversas marcas e fui brincar de barquinho outra vez na correnteza da chuva que corria nas ladeiras de minha mansão.