O dia

Desperto unusualmente ansioso, espregiuço-me vagarosamente, sinto os ossos estalando e múlsucos agradávelmente se extendendo. Ainda desprovido de pressa, sento-me a beira da cama e separo as cortinas sem cor, um vento frio passa por meu corpo nu, sinto os pelos se eriçando; a brisa gélida me desperta, afasta a moleza causada pelas cobertas e o calor aconchegante por elas trasnmitido. Com pés descalços deslizo silenciosamente pelo cômodo, passo as mãos pelos meus cabelos curtos, a maciez deles me surpreende; me pego sorrindo em frente ao espelho. Hoje levantei propositalmente cedo, queria caminhar a esmo por um tempo, antes de fazer o que me é devido.

Ponho os pés porta a fora, agora, obviamente, não mais despido, e passo a passo vou cobrindo preguiçosamente uma distância incógnita, entre dois pontos quaisquer. Algumas pessoas me encaram de modo estranho, olhos repreensivos, como se fosse pecado capital, ou crime hediondo, caminhar alegre, rumo a lugar algum, sorvendo dos detalhes do mundo, que sempre nos escapam por entre os dedos da percepção. Ouço o cantar de um passarinho, que pia irritantemente, em protesto solene a sabe-se lá que diabos, tento aproximar-me sorrateiro, ele prontamente me nota, e o som de suas asas lutando contra o ar substitúi seu cantar. Noto o contraste entre o marrom poeiril e o azul do céu, olho para cima, fixamente, como um imbecil, e com os olhos, sigo o trajeto percorrido por uma nuvem com formato de nada. Sigo-a até que uma torre de metal surge em meu campo de visão. Vou do esguio topo, que parecer querer partir o firmamento, até a larga base, que se crava fundo no solo, ferindo-o, um gramado verdejante cerca o colosso de ferro; quando me dou conta, estou pisando nele. Ajoelho-me, arranco uma das tantas folhas que se espalham pelo chão, assassinato premeditado, o cheiro de relva invade minhas narinas, cheiro de mato, fazia tempo que não reparava nisto. Tudo é deveras maravilhoso, dói pensar que em qualquer outro dia isto me passaria despercebido, como passou tantas outras vezes, tantas que chego e me sentir envergonhado. O passar das horas acaba com a aleatoriedade do meu movimento, como disse, há coisas a fazer, e compromissos vêm atados a horários, caso contrário, não seriam compromissos. Ainda que possuídor de um objetivo, não deixo de me atentar a tudo enquanto me locomovo até ele; no cinza escuro do asfalto, no dourado majestoso do sol, na cacofonia de buzinas e vozes, nos seres humanos que vagam apáticamente.

Encontro-a sentada onde combinamos, seus braços delicados repousam sobre o duro mármore de uma mesinha, ela fita o horizonte, estática, parece esculpida do mesmo material; fico uns bons batimentos do coração parado, a observando. Os cabelos dourados como o sol, os olhos castanhos como a penugem da ave que de mim fugiu; percebe-me, sorri, os dentes alvos como a nuvem que cortara os céus, me aproximo. Sento ao seu lado, dou-lhe um leve beijo na face, que se torna rubra, é minha vez de sorrir, começamos a conversar. Ora mostro-me amigo fiel e verdadeiro, ora um tolo feliz, ora flerto indescentemente, a faço gargalhar, e acidentalmente, a se preocupar. Ela me idnaga sobre o que me entristece, o que acontece que nubla meu semblante, digo-lhe que nada, ela veêmente não acredita. Não quero ser falso então não sorrio, não quero mentir, então não falo, apenas a encaro, mais profundamente do que jamais ousei encarar alguém; se os olhos são realmente a janela da alma, ela tornou-se conhecedora da minha, de cabo a rabo. Com suavidade arrumo seus cabelos, depondo um tanto atrás de uma orelha, perto da maciez de suas madeixas, meu cabelo lembra uma lixa; minha mão repousa em seu rosto, com o polegar, acaricío uma maçã rosada de seu rosto. Ainda perdido em seus olhos, aproximo meus lábios entreabertos, transbordando desejo, dos seus, selamo-os num beijo. Não um beijo selvagem, com línguas descontroladas, em que os amantes de apertam como se quiesessem ocupar um mesmo local no espaço. É um beijo tenro, intenso, o que se apertam não são nossos corpos, mas nossos sentimentos, uma paixão nascida em um milésimo de segundo, que oprime nossas respirações; um fogo gélido incendeia meu peito, minha mão livre se agarra as duas dela, ou é o contrário, não sei ao certo. Tudo dura um mísero instante, que abarca o melhor beijo de minha existência, que foi mil vezes melhor do que jamais ousara imaginar que pudesse, meu coração literalmente para de bater. O beijo termina, mas não permito que a dama de mim se afaste, puxo-a para perto, nossas testas se tocam, os olhos mais próximos do que jamais estiveram, sorrio de um modo que seria capaz de iluminar uma noite sem lua, ainda com o peito em chamas, colos nossas faces, e num único sussurro, lanço uma inusitada declaração de amor, e uma despedida. Ignoro seus protestos e lamúrias, ainda que sinta um nó doloroso em meu corpo ao fazê-lo, enquanto me afasto, sinto-me egoísta, vilão, mas não importa, farei o que achar que devo; e sinceramente, não saberia como encará-la passado tal momento, foi tudo tão diferente do esperado, do planejado, o que me faz pensar, que planos são para tolos que se enganam, pensam ter algum controle sobre qualquer coisa. Enquanto tento voltar ao meu lar, outro encontro parece acontecer para mostrar-me a futilidade de planejamento, um amigo vem até mim, de algum lugar que não sei qual, e me convida para tomar uma cerveja, frisando minha incapacidade de negar-lhe o convite. Derrotado, uno-me a ele.

Ele paga, faz questão, as garrafas tintilam na medida em que vêm e vão, a leveza do meu pensar amplia-se a cada gole dado. Não sou eu quem fala mais, nunca fui, apenas escuto enquanto ele discorre sobre sua vida e tudo que nela tem acontecido, e pela primeira vez, realmente escuto. Fascinam-me as nuâncias e obviedades daquilo que me é dito, me espanta o quanto de profundidade da vida alheia nos escapa, simplesmente por permitirmos. Em meio a uma anedota, que ainda me fosse conhecida, tomou nova força humorística, me fazendo gargalhar incontrolávelmente, ele, tal qual a bela garota que beijei, nota algo estranho em meu ser, meu agir, falar, sorrir, olhar; outra vez me recuso a abraçar a falsidade, abraço-o ao invés. Um abraço forte, que dura, da mesma forma que o beijo, mero instante, outro em que me entrego corajosamente e faz meu coração inflamar. Dou-lhe um tapa amigo nas costas, me afasto e agarro-lhe pelos ombros; em poucas palavras mal formadas, digo-lhe que dos companheiros ele é o melhor e agradeço pela cerveja. Novamente, deixo ao vento protestos que eram a mim dirigidos; rumo velozmente para casa, a fim de que nada mais me atrase, ou invada meu coração.

Tomo um longo banho, não preocupado em lavar-me, deixo que a água quente que por mim escorre serpenteando, o faça. Me seco displiscentemente, sentindo a toalha me fazer carinho enquanto absorve o resto de água morna que se agarra ao meu corpo. Em meu quarto, arrumo tudo, bugigangas e cacarecos que há anos estavam largados pelos quatro cantos do lugar, são metódicamente organizados, livros postos em ordem, tiro o pó de tudo, endireito um quadro, nada fora a perfeição me saisfaz. Ainda nu, chafurdo numa gaveta, até encontrar o último de meus escritos, o deponho afetuosamente num local onde possa ser facilmente encontrado. Numa outra gaveta acho o objeto que me é necessário, se quero fazer o que quero, sento-me novamente na beirada da cama, arrumada impecávelmente. Sinto-me calmo, foi, apesar do inesperado, um ótimo dia, melhor do que poderia ter esperado, minha respiração se acelera, fecho os olhos mas ela não diminui, sinto suor frio escorrendo pelo corpo; para minha surpresa, lágrimas impertinentes brotam em meus olhos, as deixo fluir e correr rosto abaixo ao seu bel prazer. Respiro fundo, suspiro, e sorrio para a coisa fria e escura em minhas mãos.

Como eu disse, havia coisas a fazer, e ainda resta uma última.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 22/02/2011
Código do texto: T2807224
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