O depois

Hoje me vi morto, nada de pré-cognição ou figurado, no sentido literal da coisa. Não sei bem como aconteceu, mas do alto, me vejo em repouso, com pessoas à minha volta, que bom, pessoas à minha volta.

Permito que o vento me carregue a seu bel prazer, mas quando subo muito, percebo que deste mundo ainda falta despedir-me. Não digo das pesoas em si, pois elas hei de encontrar novamente, mas de lugares e momentos, momentos e lugares. É manhã, os raios do sol me trespassam, como flechas a um soldado desprotegido. Sento meu etéreo traseiro na pedra gasta que faz parte de uma pequena escadaria, numa pracinha. Corro com a mão uma rocha que não sinto, observo a rua com olhos que não enxergam, me sinto bem, leve, em paz. Ali, sentado, vendo a brisa que não me move movimentar o capim amarelado aos meus pés, vejo a casa dum amigo. Ainda bem que minhas memórias permaneceram minhas, vieram comigo, pois são elas o bem mais precioso que poderia almejar. Recordo-me de meus amigos, amigos de verdade, e de quando jogávamos sinuca, ríamos e bebíamos toda a cerveja do pai de nosos anfitrião, o que sempre acarretava em complicações e repreensões a ele, bons tempos. Nunca acreditei que seria possível rir tanto, ainda bem que foi, é. Resolvo levantar minha bunda espiritual dali, há outros locais que quero visitar antes que, inexorávelmente, me despeça deste mundo.

Passo por todos eles, percorro o caminho com a calma dos mortos, sem pressa, o tempo, para mim já não existe, foi-se o tempo em que ele era meu patrono; só lamento não poder abrir uma cerveja e brindar a cada local. Outra vez percebo, o quanto me sinto bem, isento de sofrimentos, me sinto névoa, mas algo me perturba, muito. Passei por todo lugar que me é querido, mas não encontrei quem. Ninguém, viva alma, que irônico pensar desta forma agora. E não é cegueira ou falta de atenção que acarretou esta falta de encontros, pois tudo vejo, percebo, sorvo, aprecio, menos meu queridos amigos, amigos ímpares. Tento imaginar onde se enfiaram, procuro por todos os locais em que nos encontrávamos, e simplesmente, nada. Perambulo, agora a esmo, subo em lugares que, quando inspirava ar, ao invés de sê-lo, me eram incacessíveis. Da torre mais alta da cidade, observo o mundo, o percebo tão diferente, tão diáfano, tão belo, incrível horizonte infindo, linha tênue separa o azul do céu, do escuro do solo. Da beirada da torre me largo, me deixo cair, porém não despenco, lufadas de vento me aninham, me embalam suavemente, como uma pena de águia a rolar do firmamento ao chão. Pena eu não sentí-las.

Encontro um bar, enquanto entro, tento inalar as fragrâncias típicas destes ambientes, não consigo, mas lembro-me delas, o que me é suficiente. Sento numa mesa qualquer, aleatoriedade agora parece parte do meu ser, um casal confabula ao meu lado, ele jura mil juras de amor, pomposas, decoradas, enfeitadas, mil falsas juras de amor, e ela falsamente as aceita outras mil vezes. Ah, o amor. Flutuo sutilmente, passo de mesa em mesa, sorvendo a conversa alheia, que me chamem de bisbilhoteiro, acredito ter passado do ponto em que temia repeensão social. Como é bom conversar, um prazer inigualável, ou pelo menos, diferente de outros tantos; conversar sobre tudo, sobre nada, imagino se ao desprender-me deste mundo, terei a oportunidade de deliciar-me com este singular prazer. Espero muito que sim.

Mesmo sendo poeira rodopiando, começo a me sentir um pouco desconfortável, compartilhando segredos e palavras que não são para mim, me afasto daqueles com um coração quente ainda a bater no peito, e deixo que seus dizeres sigam em paz até se dissiparem pelo vento que não ouve. Uma música boa, que embala, inunda o ambiente fechado, deslizo até o palco onde talentosos menestréis dedilham instrumentos e vibram cordas vocais, e danço. Danço alegre, rodopio, salto, abro os braços e pela primeira vez na vida, na vida não, deslize compreensível creio eu, pela primeira vez, simplesmente danço. A melodia se encerra, o público aplaude avidamente, muito satisfeito faço elegantíssima reverência, agradeço com acenos transparentes, faço de conta, de que são meus, e de mais ninguém, os aplausos. Ah, como sou tolo, não sei de quanto tempo por estas passagens disponho, por quanto tempo posso prolongar-me por estas bandas, e ainda não encontrei as pessoas mais próximas de mim, tenho uma idéia, atroz e dolorosa ideia.

Pego carona com a brisa, e em seu colo, me desloco, passo por conehcidas avenidas, o asfalto parece se mover sob mim, e não o contrário. Ouço choro, lamúria, pesar, indignação. Encontrei todas.

Alguns perambulam com olhares foscos, leitosos, apáticos pelas proximidades, outros se consolam, outro tanto está dentro da sala, onde um caixão fechado, com barras douras, que refletem as lágrimas do recinto, serve de decoração, junto com uma grande grinalda de flores sortidas. Não entendo a causa de tamanha tristeza, eles, acima de qualquer criatura, deveriam saber o quanto me fizeram feliz. Se ao menos pudesse lhes dizer, que me sinto tão bem, sereno, seria tudo melhor, acredito.

Vou de um em um, lhes afago com mãos que não podem fazer carinho, e eventualmente, me vejo pasmo. Um deles me encara, o vejo seguar a respiração, sinto que seu coração para no peito, por um milésimo de segundo, ele olha em minha direção, com olhos estupefatos. Alguém pousa a mão em seu ombro, ele chacoalha a cabeça, a fim de realocar as ideias, penso, dá um sorriso amarelo, e se afunda novamente no luto. Ouço o som de uma pancada, carne e osso contra concreto, um punho atacando uma parade, esta mesmo pessoa, com voz emabrgada por soluços, de raiva e tristeza, olhos mareados e vermelhos, me chama de idiota. Várias, e várias, e mais outras vezes. Quando tento inferir, o motivo de alguém, que me é tão querido, alguém cujo carinho sempre mantive em meu peito, se despedir de maneira tão atípica, eu me recordo; e tento com todas as forças me comunicar, mas neblina não fala, meus esforços são vãos, mas ainda assim, me recordo.

Da carta que redigi, do gatilho que puxei.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 22/02/2011
Código do texto: T2807243
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