Conversa franca

É fim de tarde, o crepúsculo aproxima-se, raios de luz, outrora dourados, avermelham-se e iluminam cada vez menos o mundo. Assistindo a este fenômeno, que se repete desde que o mundo é mundo, sem jamais perder nada de sua resplandescente beleza, um velho. Sentado em uma antiga cadeira, de boa madeira e impecável fabricação, deposta na varanda de uma casinha modesta, provinciana, segura um cachimbo com mãos trêmulas e observa coisa nenhuma, com olhos que só parcialmente são capazes de fazê-lo. Escuta o som seco do solado de um sapato velho contra a madeira que range em protesto, em seguida, uma voz doce, que há muito conhec eo ancião:

- Oi pai.

- Oi filho.

- Trouxe umas cervejas, achei que era uma boa.

- Acertou, abre uma aí pra mim, essas mão já tiveram dias melhores.

O jovem, já não tão jovem, retira o pequeno anel de alumínio, o agradável odor de lúpulo se alça ao ar. Ele alcança a lata ao seu progênitor, que deita o velho cachimbo no colo, e sorve um bom tanto do líquido, estalando os lábios de prazer. O filho se senta numa segunda cadeira, de plástico, recém adquirida, ao lado do velho pai, gozando do silêncio em boa compania. A mesma voz adocicada, carregada de carinho, quebra o repouso das palavras:

- Tava pensando naquele tempo né?

O velho, de tolo se faz:

- Não, só olhando o Sol se esconder outra vez.

- Pai, você nunca conversou comigo, mas acho que podia te fazer bem, sei lá, desabafar.

Um sofrido suspiro depois.

- Tá certo, é da guerra que cê quer saber né? Abre mais uma antes de me perguntar qualquer coisa.

Outro anelzinho de metal é levianamente arremessado sobre a cerca. Com cuidado, que não suplanta a expectativa, é feita uma pergunta:

- Foi tão ruim assim?

- Pior, mas pelo menos – ele da um sorriso que carrega anos de cansaço – essa conversa vai ser mais fácil do que pensei.

- Eu pergunto pai, porque você voltou normal, mais fechado, mas normal, e tanta gente voltou maluca, aí achei que sei lá, podia não ter sido tão ruim.

- Te garanto que foi.

- Se você tá dizendo.. e também, você voltou com medalhas e tudo, isso faz de você um herói não faz?

Uma risada alta, esganiçada, seca, transbordando escárnio escapa da garganta enrugada do patriarca.

-Meu filho, meu filho, antes de qualquer coisa, saiba que você é o maior orgulho da minha vida, e que eu fiz tudo que pude pra te passar todos os princípios certos, valores e tudo mais. Mas as vezes, eu acho que fracassei, tem tanta coisa simples que cê não entende.

-Mas...

- Calma, calma, deixa eu terminar. Mas não é culpa sua, afinal, tem muita coisa que você não teve que encarar.

- Como guerra?

- Como guerra. Vai lá, dá um beijo na tua mulher, põe os filhos na cama, deixa a cerveja aqui, e depois volta, prometo que te explico.

Relutante, vai-se o filho. Fica o pai, em pequenos goles, vai-se a cerveja.

Os olhos desgastados do idoso parecem perder o foco, fitam o infinito, voltam ao passado. Tamborila, com dedos nodosos, a coxa, deposita uma das latas vazias no chão, respira fundo, com dedos calejados massageia as têmporas, onde ainda lhe restam fios cinza, remota lembrança de seu cabelo. Aguarda com incerta ansiedade o regresso de seu primogênito, pensa em entornar outra cerveja, mas sua voz velha já é pastosa o suficiente, deixa para beber depois. O filho retorna, com um suspiro senta-se ao lado do pai, e mira o horizonte; não faz qualquer tentativa de apressar o diálogo, bom filho. A mão seca e dolorida, bate a cinza do cachimbo no braço da cadeira, o barulho de madeira contra madeira ecoa brevemente, um cão ergue as orelhas em alerta; a brisa carrega a cinza, o cachimbo é trasnferido para mãos mais novas, que começam a prepará-lo novamente. O velho limpa a garganta, pela qual décadas de palavras já passaram, e começa titubeante, a falar:

- Pra mim é difícil te explicar o que é herói e o que é vilão, na verdade, o que foi, na guerra sabe? Porque me envergonha, sinceramente, não queria nunca ter que te dizer isso, mas sempre cobrei honestidade de você, não posso ser diferente, não é?

-Vergonha de mim? Nada do que você me fale vai fazer com que eu me envergonhe de você pai.

- Espero que não, mas como você pode ter certeza sem ter ideia do que eu vou dizer? Bem, você disse que eu devo ser um herói por ter voltado vivo, com medalha no peito, pensão e tapinha nas costas. Mas na verdade, todos o que lutaram, e realmente foram heróicos, das duas uma: vieram numa caixa de madeira pra casa, ou suas esposas receberam uma porcaria de bandeira dobrada.

- Não tô entendendo.

- Se parar de me interromper, talvez entenda.

Uma silênciosa desculpa depois.

- Vou te contar, como foram os heróis que lutaram. Eles não eram aqueles que matavam milhares, ou que saltavam uivnado sobre trincheiras, carregando todos junto com ele. Lógico, eles mantinham sua posição, seguiam ordens, protegiam os outros. Não era somente o fato de eles seguirem essas ordens que os fez assim, acho que a principal razão, foi que eles jamais deixaram de lado, seus princípios, aquilo em que acreditavam.

“Parece piegas, mas ele nunca alvejaram crianças, mulheres ou gente indefesa. E muitos pagaram caro, muito caro, morreram pelas mãos daqueles que pouparam. Essas caras, os heróis de verdade, conversavam, ao invés de apertarem gatilhos, cuidavam dos outros, não de si mesmos. Tentaram meu filho, fazer daquela merda toda, algo melhor, e morreram, todos.”

O filho respira profundamente, coça a cabeça, quase crava os dedos nas coxas, morde os lábios, tenta formar palavras, mal balbucia qualquer coisa e desiste frustrado. Olha para o pai, nunca o viu mais velho, ou acabado, vê-lo assim parte-lhe o coração, deseja com todas as forças nunca ter feito a pergunta que fez, é tarde, o tempo passa e não volta, é cruel. Afaga com ternura infinita o ombro paterno, percebe um brilho na face idosa, sulcada por antigas rugas, pode ser uma lágrima, tenta dizer algo, mas um gesto brusco, de uma mão imperativa, o detêm. Uma respiração dolorosa depois, seguida de profunda introspecção, e as palvras tornam a se arrastar, do passado do velho, para os ouvidos do filho:

- E é aqui, que você vai passar a entender quem foi herói ou vil, e também, a me olhar, ainda que sem querer, com reprovação, mas acho que nada mais justo. Eu fui fraco filho. Segui meus instintos, quis viver acima de tudo, e ninguém, ninguém, sobrevive numa guerra sem descer até o fundo do poço. Fiz de amigos escudo, matei gente que não precisava ter morrido, me escondi quando precisaram de mim. Fiz tudo isso e muito mais meu filho, e voltei vivo, ganhei uma porra duma medalha, me chamaram de herói. Você diz que sou forte, mas tudo que fiz, foi sobreviver, esquecendo que era gente, vi gente boa morrendo e não fiz nada, e vou carregar esse peso comigo; o peso de ser fraco, de ter desistido de tudo que acreditava, de ser chamado de herói, quando não passo de um rato leproso.

-Pai..

-Quieto filho. Deixa a cerveja aqui, me deixa aqui, sozinho, você perguntou o que tinha para perguntar, eu falei o que tinha pra falar, e você ouviu o que tinha pra ouvir. Agora vai, e me deixa, eu tenho muitos fantasmas pra encarar.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 26/02/2011
Reeditado em 28/02/2011
Código do texto: T2815819
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