Insignificante súplica

Era um tempo perdido no tempo, não se pode ter certeza se foi num passado que se tornou pó, ou num futuro que não há de vir. A única coisa que se pode afirmar, é que este tempo não é o agora, neste pútrido presente, este tempo em que se encontra o homem que fita apaixonado o Sol poente. A brisa é fresca, dócil, acaricia o homem, que estático a observar o horizonte, lembra uma estatua brilhando rubra sob a luz do entardecer. Não fosse uma única coisa, ele poderia ser realmente confundido com objeto, belo e inanimado; uma voz, serena, grave, carregada de tristeza, proferia palavras em direção ao firmamento, que perdia seu tom azulado, para entregar-se ao breu acolhedor da noite enluarada que estava por vir.

- Ah Sol que se vai, esconde-se no infinito para ceder seu posto à sua versão de prata, o que antes pairava inalcançável, dourado, derramando fogo que não fere, torna-se círculo de metal derretido, que banha com luz cálida tudo aquilo que vê o homem. Neste momento de transição, ouso lançar-vos o verbo, astros do firmamento, pois queria que me ouvissem. Enquanto vai-se o âmbar e vem o azeviche, rogo para que me escutem, ainda que saiba, que de vossa atenção sou indigno. Invejo a sabedoria que devem ter, crias celestes que há tanto observam este mundo, devem ter presenciado tantos amores, de reis, heróis, vilões, de toda sorte, então sinto uma atroz insegurança, ao tentar encontrar um motivo que fosse, para que ficassem a par do meu.

O suplicante inspira profundamente, busca os dizeres corretos para expressar aquilo que lhe atormenta a alma, dilacera sua vontade, corrói seu pensar. Os astros o encaram indiferentes do alto, ele se contorce, sente o momento se dissipando, e permanece incapaz de formular palavras que ilustrem o que sente. Ciente de que é uma oportunidade ímpar, e esguia, arrisca falar simplesmente com o coração, sem permitir que sua estúpida capacidade de raciocínio acabe por nublar a pureza do que deseja enunciar:

- Sei que sou nada mais que um leve sopro de ar no vendaval da existência, e o que sinto nada significa para ninguém, salvo a mim mesmo, mas mesmo assim, imploro que tomem conhecimento do pouco que sou, e da insignificância do meu sofrer. Não serei petulante ao ponto de tentar compreender o amor dos astros, bem como não posso saber se eu vossa magnitude e resplandecência poderiam vós, se rebaixar ao ponto de conhecer o pífio amor humano. Sendo as coisas deste modo, vos falo em tom de súplica, que tentem, com sua infinita percepção e saber sem medida, tornarem-se par com a desprezível criatura que sou, ainda que por ínfimo instante, e iluminem-me, pelo mesmo espaço de tempo.

Os astros parecem atender às lamúrias e sofríveis pedidos, num instante ambos parecem flutuar juntos, em perfeita harmonia, contra leis que regem o universo desde que este se criou. O amálgama de quente e frio, da luz e penumbra, chama e gelo, cria nos céus cores jamais vistas, que são todas exclusivamente, absorvidas por um único e insignificante par de olhos chorosos. O minúsculo homem tem noção, ainda que incrivelmente parcial, do colosso que foi a dádiva que recebera, e ainda que atônito, imerso naquele inacreditável e maravilhoso espetáculo antinatural, sabe que deve apressar-se, então separa os lábios, ressecados pela ansiedade, e permite que palavras escapem por eles:

- Sou criatura perene, desde o dia em que deslizei, gosmento e em pranto, para fora do ventre materno, as batidas de meu coração já estavam contadas, já conformei-me com enfadonha realidade, ou assim pensava. Há pouco tempo, curto até para os padrões desta risória vida que foi-me concedida, para efeito de pilhéria creio, algo cruzou meu caminho, acabando com minha resignação, inundando-me em excruciante agonia. Conheci uma dama, de estonteante beleza, ouso, ainda que corra o risco de ofender-vos, afirmar que ela seria capaz de ofuscar as estrelas que saltitam pelo negrume do espaço.

Ele mantém a boca aberta, ainda que as palavras tenham cessado de transpô-la, e o ar de penetrá-la. Aperta uma mão na outra, tentando futilmente conter o tremor que se instalou nelas. Permanece encarando os corpos celestes que encontram-se ainda imóveis, aguardando pacientemente o término de tão copioso relato. Espantado, recorda-se da necessidade de tragar ar, o faz de maneira inadequada, infestado de afobamento, engasgando, tosse desesperado, e ainda resfolegando, esforça-se para falar:

-Não vim até este local, implorar para que me escutassem, por breve momento que fosse, devido a um amor incompreendido, como tantos outros poderiam fazer. O que mina minhas forças, arruína meu breve viver, é um amor inteiramente correspondido, isto, se não me for devolvido com maior intensidade. Até conhecê-la, tinha me acostumado com este curto período intitulado vida, não era sofrível encarar um fim próximo, agora, uma mera menção a ele, faz-me urrar em pânico. Vós que sois eternos, devem falhar em compreender-me, pois são irmãos do tempo, não vítimas deste insuperável algoz, mas possam talvez, aliviar-me o pesar, valendo-se de vossa memória milenar. O que me dilacera, é ser detentor de um amor, tal como o cosmos infinito, e possuir tempo tão escasso para gozá-lo, demonstrá-lo, recebê-lo. É injusto, nefasto, velhaquisse, conceder ao ser humano uma capacidade divina de amar, e confinar-lhe num espaço de tempo, que não leva mais que algumas míseras respirações e batidas de coração, antes de esvair-se. Não é certo, o eterno e o efêmero mesclarem-se num único ser, não é possível viver desta maneira sem que seu cerne venha a rebentar-se. Peço então, que tomem as dores desta miserável criatura que vos fala, contem-me, do modo que vos for possível, a razão do homem ser assim, cria sofredora, receptáculo de um amor que não pode suportar, agarrado a um viver fadado a abandonar-lhe, que escorre-lhe pelos dedos segundo a segundo. Podem, num ato de misericórdia jamais visto, esclarecer esta crueldade atroz à qual está sujeito o ser humano?

Se tivessem olhos, o sol, a lua, as estrelas, veriam dolorosas lágrimas, brilhantes como orvalho pela manhã, escorrerem de olhos repletos de um sofrer que o devora. Se possuíssem ouvidos, escutariam soluços angustiados de um choro engasgado. Se um coração batesse em seu interior, se fossem capazes de empatia, se importassem-se com a criaturinha que os fita pateticamente tão ao longe, não voltariam a mover-se como sempre; comungaram por um instante e divertiram-se o suficiente, era hora do firmamento retornar ao seu estado usual. Então ele o fez, tornou-se inócuo de piedade, indiferente ao pesar insignificante, e se moveu como de costume, alheio ao homem que passo a passo aproximava-se, com olhar vazio do qual lágrimas tinham sido vertidas em abundância, da beirada do precipício, ele ainda fica o horizonte quando seu primeiro passo atingiu o vazio.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 26/02/2011
Código do texto: T2815832
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