PEDALANDO PELAS RUAS DA MEMÓRIA

"Na garupa do passado, o presente.

Ou seria o inverso?"

Segure firme aí no selim. Nas descidas todo cuidado é pouco. Está vendo aquele prédio cinza? Tem razão, é feio mesmo. Bem ali, muitos anos atrás, havia um campinho de futebol onde a gente jogava praticamente toda tarde. Junho chegava e era só alegria: o terreno servia de local para festas de São João. Queria que você visse o tamanho da fogueira. A garotada se reunia em torno do fogo para contar histórias, assar batatas, fazer balão de jornal. Não, não posso te ensinar. Hoje sei o quanto é perigoso soltar balões. Mas depois, se quiser, posso te mostrar alguns passos de quadrilha. “Pula fogueira, aia-iah...” Muito boa, a nossa quadrilha. Todo mundo participava. “Olha a cobra! É mentira!...” Cuidado, aí vem a lombada. Opa, já passou! Vamos por esta rua. Quero te mostrar o lugar onde estudei. A fábrica. Acredita? Foi aí, neste lugar, que eu me formei. Não exatamente “aí”. O prédio era outro. Depois que saí do colégio, não passou muito tempo fecharam tudo, demoliram o antigo prédio e ergueram a fábrica. Agora veja o outro lado da rua. Chique aquele condomínio, não acha? Nem dá pra imaginar que um dia foi uma chácara cheia de mangueiras. Tinha até um córrego limpinho, limpinho, que no calor era a festa da criançada. E a aquela igreja evangélica, perto da esquina: o edifício azul, tá vendo? Pois fique sabendo que ali, até uns dez anos atrás, funcionava um cinema. As poltronas ainda são as mesmas; já as intenções... Atenção: segure-se aí atrás, que vem mais uma lombada. Epa, lá se foi. Chegamos à outra rua. Que tal a gente parar ali e descansar um pouco? Ufa... Sabe, não foi à toa que parei aqui. Nesta calçada, há muito tempo, havia uma árvore, um ipê lindo e frondoso. Quando mocinha, sua avó sempre me esperava encostada nele. A gente namorava escondido. Ela dizia para os pais que ia ao cinema com uma amiga e, enquanto essa ia na frente, a sua avó me esperava aqui, neste ipê. Depois do filme, a gente voltava pra cá e aproveitava para namorar outro tanto. Não era só um ponto de encontro, o ipê: era nosso cúmplice. Imagina só como foi duro para mim passar por esta rua um dia e não encontrar mais a árvore em que tatuei as nossas iniciais. Cortaram o nosso cúmplice só porque não combinava com a fachada desse prédio moderno. “Cada geração constrói seu cenário sem levar em conta o cenário das gerações anteriores”. Profundo, não? E oportuno. Encontrei esse pensamento num livro. É por isso que nós, os velhos, “os vovôs e as vovós”, acabamos nos sentindo assim, como atores de uma peça que há muito se acabou; meio que descartados, excluídos do palco do mundo. Sei que estou exagerando, falando difícil. É que às vezes me esqueço que você tem apenas dez anos. Sua avó também era desse jeito. Falava com sua mãe como se fosse uma mulher feita, mesmo ela não tendo ainda nem a sua idade. Como era sua avó? Uma pessoa inteligente, alegre, elegante. Não, ela não quis ir embora. Acontece com todo mundo, é bom que você aprenda: um dia chega a nossa a hora e temos de partir. Mas não se preocupe; ela deve estar num lugar bem melhor agora. Um lugar onde, imagino, ainda floresce o nosso ipê. E por falar em lugar, temos de voltar para casa. Monta de novo. É isso aí, garoto. Pronto, agora vamos; seus pais já devem estar preocupados. Enquanto pedalo, vou te contar um segredo: ultimamente tenho sonhado muito com nós dois – eu e a sua avó, de novo jovens. No sonho de ontem, ela estava encostada outra vez em nosso velho ponto de encontro. Ainda posso vê-la – linda, risonha, exatamente como nos bons tempos – debaixo do ipê florido, esperando por mim.

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