O medo da noite - Prólogo

Começando a história pelo começo. Amarrando todas as brechas e frestas e... É chegada a hora e desse momento não se pode passar. É a ordem dada, a ordem rolada entre os envolvidos, os vivos e vivas sejam dados em silêncio sepulcral. É hora, é hora, é hora... No Céu as imagens de nuvens se formam em devaneios, misturam-se ao clarão da lua cheia e cheia de tantos nuances a paisagem se torna bela. Início da noite e quantos anjos arpão dos seus esconderijos para soarem as suas trombetas...

Para começo de história não cruze os dedos em figa, não jogue ao vento palavras arrebatadoras que venha a se arrepender depois; não jogue pedra na lua para não receber recompensa contrária, não cuspa para cima para não lhe cair na cara, não resmungue orações decoradas de trás para frente nem pragueje o padroeiro. Não tenha um pé de coelho escondido no bolso feito chaveiro, nem pé de raposa ou carneiro ou se quer tenha pisado em rastro de corno, seja ele manso, brabo, coxo ou encubado.

Escute o canto do vento nascente na boca da mata escura em noite de lua crescente. Esse frescor que caminha suave ao seu lado a cantarolar soprano sua escala em partitura de percussão de vozes choradas anunciando a passagem do tempo paulatinamente como quem sopra folhas secas sobre o mato da caatinga, folhas soltas ao vento fresco nascido ao seu redor, de dentro do ventre da noite, uivado pela dança sutil dos galhos das árvores centenárias, elementos cenográficos da passagem naturalmente estabelecida; canto de encantamento permeado no imaginário de tantos caçadores e homens do mato, de provocar arrepios, bradado pelo assobio da curupira menina sapeca dos pés para trás sentada a espiar de cima, da cumeeira da algaroba nascida ali a tanto tempo. Espiar caçadores e lenhadores maltratando animais ou cortando árvores para entrar em ação; seres baixinhos com o corpo coberto de pelos, unhas azuis, olhos injetados, protetores das matas e dos animais. Espio de rabo de olho como quem tudo vê, tudo sabe, tudo ouve e nada diz.

Ouça as vozes da mata pulsando dentro de você como vozes guerreiras de guerreiros que se somaram a esse espírito envolvente. As vozes dos cantos tristes de noites de chibatadas, de dias de trabalhos forçados arando a terra do senhor coroné, vozes de acalanto para a terra brota de liberdade, o canto espalmado na palma da mão, na palmada ritmada a evocar os guardiões da dor, do sangue derramado. Vozes nascentes de todos os cantos, somadas, vozes de almas em tantos tons ao mesmo tempo entre riso e choro e clamor e vibração. O canto do povo com o canto do vento somado ao marujar as águas do córrego que corta a terra de fora a fora. Água corrente da fonte, pura, água que lava, que batiza.

Ande ao redor de si mesmo e escute a si dizendo ave-maria três vezes, ave-maria três vezes, ave-maria três vezes. Em círculo fechado. Pise firme com o pé esquerdo e pule a cada cinco passos. Pule alto sobre o medo que está em você. Pule você mesmo e seja pulo. Uma cabeça de alho, um galho de arruda ou folhinha de pião roxo por trás da orelha, nessas horas ou em qualquer outra hora, qualquer coisa ajuda. Dê preferência a carregar um terço pendurado no pescoço. Não faça esconjuras, não jure, não arrenegue sua sorte ou cuspa em terra desconhecida. Engula o cuspe e sinta. Use água de cheiro de rosa do campo para agradar as moças, cheiro de rosa lavanda do campo, de rosa lavanda perfumando todo o corpo para elas, só para elas. Encharquem o corpo de cheiro, encharquem a roupa de cheiro, seja cheiro e fique cheiroso.

Despache uma pinga aos pretos, pinga de preto velho despachada na quenga do coco debaixo das árvores de raiz fincada. Pinga braba da fonte, alambicada, curtida pinga de preto de encruzilhada, de flechas. Aos caboclos um pouco de fumo, defume seu corpo e o conserve fechado. Faça a penitência, enfeite-se de pena e tenha pena de si mesmo. Açoite-se com a pluma do rabo do pavão, se entregue e pinte seu corpo com a tinta do sacrifício pedido.

De preferência, use roupas brancas engomadas com água benta benzida na última procissão do senhor morto. Benza-se, faça reverência com as mãos sobre a cabeça, lembre-se que é ela o seu guia e bata sempre o pé direito no chão cada vez que for dizer assim seja...

Assim seja toda à noite, assim seja o que está dentro e fora. O que entra e o que sai, o que trouxe e o que leva, assim seja toda a legião de anjos soltos pelo ar. Porque já é chegada a hora. Seis horas e tudo se acomoda debaixo dos alpendres. Uma legião de anjos descendo para a contemplação e tantos oratórios em chamas acesas para a anunciação...

Se cruzar com gato preto não o espanque, não o tanja, deixe-o ficar, pode ser um mensageiro da jurema, pode ser um ser divino materializado.

Se tiver de mascar, não masque tudo, sempre tenha um de reserva, reserve espaço no seu coração para as encruzilhadas e abra as porteiras, deixe-as todas escancaradas. Não ria, guarde o riso das moças, lembre-se das fivelas, brincos e objetos de brilho. Caso tenha lenha, acenda uma fogueira e se não tiver acenda as velas, vele, seja ativo, esteja acordado, faça o acordo, não deixe para última hora. A última hora sempre sobra...

Se alguém puxar um ponto, cante, acompanhe, faça-o correr por todos os cantos. Se ninguém puxar, seja responsável, solte a voz, agrade aqueles que tanto te agrada, bata os tambores, esqueça as mágoas, os cansaços, as invernadas esperadas. Sorria, encante, vibre. Na hora da roda girar, não se finque pé parado, bata palma, no compasso, use os passos marcados e os de improviso, não vacile, atenção para as obrigações do dia, veja suas guias, venere sua devoção.

A partir de agora sinta-se preparado. Cruze as mãos sobre a testa e a fonte. Eleve seu pensamento, faça o assentamento. É hora, é hora, é hora...