O tocador de Blues.

Eram exatamente 14:00 horas. Uma quarta-feira. O sol estava causticante, parecia que o mundo estava derretendo, na verdade, iria derreter. Os paralelepípedos estavam fumegantes para valer a distancia, dava para reparar o vapor saído do chão em direção aos céus. Alberto, com apenas 9 anos, já percorria as ruas vendendo água para os motoristas dos carros que obrigatoriamente paravam no sinal de transito. Foi quando ouviu uma freada brusca, o som dos pneus ecoou em sua mente infantil. Ao olhar com firmeza para o canto da calçada, deparou com um homem jogado ao chão sangrando. Aproximou-se e teve a certeza que a vitima esta morta. Meio perdido foi caminhando assustado, lentamente, junto ao meio fio, como se procurasse algo ou entender o ocorrido.

Não muito distante do ponto em que estava prestes a se sentar,

viu uma bolsinha de moedas bem juntinhas ao tal meio fio.

Discretamente ele sentou, afinal estava cansado de tento correr de lá para cá vendendo seu sustento e o da mãe de 58 anos, doente, quase moribunda. Seu pai era um alcolotra irresponsável, aparecia eventualmente em casa e quando isto acontecia, sempre roubava alguns trocados para manter o vício.

Alberto sempre sonhou em tocar violão, mas, isso não passava de um sonho. O menino era um eterno apaixonado por musica. Parava horas próximo a uma loja de discos na Rua Uruguaiana no centro do Rio para dar ênfase aos seus sentimentos mais profundos. Sabia que sua mãe estava nas últimas. Sabia também que seria mais um menino de rua, teria que viver na selva de pedra para não acabar em uma destas instituições que não educam, marginalizam. Ele preferia as ruas, lá ele estaria mais seguro, já conhecia tudo e quase todos os abandonados pela vida.

Sem que ninguém notasse, pegou a bolsinha e guardou no bolso da calça jeans, o traseiro claro, assim ninguém notaria nada. E se por acaso notassem, suas pernas eram curtas, mas, de grande valor para velocidade entre os carros. Foi caminhando lentamente e pensando no que estava escondido naquela bolsinha, moedas não era disto ele tinha certeza absoluta. Foi neste exato momento que resolveu ir ao bar do Joaquim.

Um português que muito o admirava, volta e meia ajudava os empregados a lavar a casa quando fechava e colocar o lixo nos latões à porta do estabelecimento para ser recolhido mais tarde pelo lixeiro. Isto rendia-lhe um bom sanduíche e alguns trocados.

Assim ele fez. Pediu ao portuga que o deixasse usar o banheiro, pois estava com dor de barriga. O velho lusitano olhou para ele e permitiu! Lógico, recomendando que tudo ficasse limpo. Alberto brincou com o velho: “Hora! Afinal eu não ajudo todo dia a lavar esta porcaria! Não enche!”.

Sem muita demora, trancou-se no banheiro, certificou-se que não estava sendo observado. Retirou a tal bolsinha do bolso da calça e pos-se a observá-la atentamente. Seu coração batia acelerado. Ao tetear a bolsa, sentiu um volume de papel grosso. Sua adrenalina aumentou, as mãos tornaram-se tremulas. Seria dinheiro?

Bem, só havia uma maneira de Alberto saber: “Abrindo a bolsa”.

E assim o fez.

Quão sua surpresa?

Era dinheiro sim, deveria ter uns três mil reais aproximadamente. Alberto sentiu medo: Como iria explicar aquele montão de dinheiro. Um dilema cruel tomou conta da sua mente infantil. Ele sabia bem o que fazer, mas, ele era uma simples criança de 9 anos de idade, Vivia nas ruas vendendo água mineral. Logicamente seria acusado de roubo. Foi neste exato momento que o destino sorriu para ele. U flash de luz iluminou seu cérebrozinho sonhador.

Colocou o dinheiro de volta a bolsa, guardou e foi ter com o portuga. O bar não estava tão movimentado assim. Os dois sentaram-se à mesa do restaurante fedido, como Alberto costumava brincar com o portuga, e puseram-se a conversar.

Logicamente, o Joaquim deu-lhe uma prensa para saber se a história do menino era verdadeira. Mas o velho homem o conhecia bem. Alberto era sério e tinha um bom caráter, apesar de tudo contra ele, inclusive à vida.

Joaquim quis saber o que aquele menino queria fazer com o dinheiro. Alberto disse que gostaria de ajudar a mãe, mas isto seria impossível, pois, se o pai tomasse conhecimento de alguma melhoria na vida da mulher, logo apareceria para tirar proveito, mesmo que isto o fizesse agredir a velha e sofrida Sofia.

As lágrimas corriam no rostinho infantil de Alberto. Um infantil adulto, até mais que muitos pais de família. Mas o dilema persistia. Joaquim disse-lhe que iria ajudá-lo: Faria algumas compras e levaria a casa de Alberto como se ele não soubesse de nada. Depois o portuga compraria o tão sonhado violão e lógico, colocaria o menino com um professor destes avulsos, assim, poderia estudar e receber aulas à tarde no fundo do seu salão restaurante. O restante do dinheiro ficaria guardado com o velho lusitano. Joaquim era um homem bom, veio jovem para o Brasil fugindo da guerra, nunca se casou, não teve filhos. Vivia uma vida solitária e de muito trabalho. Na verdade, olhava Alberto como um filho que gostaria de ter. Porém, o menino tinha pai e mãe vivos.

Por sua vontade, Alberto estaria estudando e não vagando pelas ruas do abandono. Por outro lado, não tirava o incentivo do menino em trabalhar, sonhar, rir, chorar. Se o fizesse estaria cometendo um crime contra uma criança.

O que se pode chamar de justo nesta situação?

Alberto já olhava as pessoas com maldade de adulto, não a maldade do mal, mas a maldade de não ser enganado, usado, explorado. Ele já não vivia em casa para não ser explorado pelo pai.

O portuga vivenciava um amor silencioso pela criança, e naquele momento ele estava tendo a chance de ajudá-lo com o fruto da sua própria sorte. Muito embora o dinheiro achado por Alberto não fosse suficiente para fazer muita festa. Mas, o velho e bom Joaquim ia fazer este dinheiro render o máximo sem que o menino desconfiasse. Quando o menino viu o violão nas mãos do portuga ficou louco. Abraço o violão junto ao velho homem e agradeceu muito, chegaram às lágrimas. O portuga também demonstrou-se emocionado, porém fez aquela saída própria de português:

“Sai! Sai! Vá tocar teu violão pra lá raios! Eu tenho mais o que fazer seu moleque!” Lá no fundo Joaquim estava mais feliz do que o próprio Alberto.

Assim a vida de Alberto começou a mudar. Toda tarde ia para o bar receber aulas de violão. Por sinal, ele aprendia rápido. O fato é que: Alberto mal sabia escrever. Nem o portuga desconfiava disto. Foi o professor de violão que notou a deficiência do menino. Não disse nada ao portuga. O professou passou a dar-lhe aula de português, leitura. O básico para que ele sobrevivesse com uma chance um pouco melhor.

Cinco anos se passaram, Alberto agora trabalhava junto com o portuga no bar. O velho português já demonstrava cansaço da longa vida de trabalho. A mãe de Alberto havia morrido dois dias depois de o menino completar 11 anos. Com toda dor do mundo, Alberto sentiu-se aliviado e livre, sentia falta da mãe, mas ao mesmo tempo sentia-se realizado interiormente, pois não à via sofrendo e na miséria sendo explorada por um homem sinistro e mau caráter. Isto para uma criança que estava ingressando na adolescência era uma maneira adulta e fria de analisar a vida. Poupava-lhe o sofrimento destruidor. Suas energias eram dimensionados para seus sonhos e projetos. O trabalho com o portuga o fazia aprender mais ainda sobre a vida. Passou a ler bons autores. Começou a escutar Blues! Comprava CDs piratas e com isto foi aprendendo a falar um pouco de inglês. Ma Alberto queria entender o inglês. Desta forma passou a comprar encartes na banca de jornais. A esta altura, o rapaz dormia no bar do portuga. Passará suas noites entre Blues, leitura, inglês e seus sonhos. Passado todos estes anos, Alberto já dominava o violão com maestria. E ao cair da tarde, sentava em um banquinho enfrente a igreja na Rua Uruguaiana e tocava sem parar por mais de três horas. Seu chapéu ficava repleto de moedas e notas, algumas de valo respeitável, se é que assim se pode dizer de uma nota de dez reais. Mas isto não importava mais, Alberto está flutuando no espaço, não pensava no dinheiro e sim no prazer orgásmico de tocar Blues. Os acordes iam surgindo sem que ele percebesse. Sua vida e emoções eram traduzidas pelo dedilhar dos seus segredos mais íntimos. Joaquim ficava de longe emocionado assistindo Alberto viajar no violão que era tudo em sua vida. Esquecia até dos fregueses do bar. Certa manhã, Joaquim chamou Alberto para conversar de homem para homem.

Joaquim disse a Alberto que estava velho demais para continuar no butiques. Disse que daquele dia em diante Alberto tomaria a frente no negócio. Disse também que iria fazer um testamento deixando tudo para ele. Alberto não aceitou!

Alberto disse que era muito grato por tudo que estava fazendo por ele, mas, que seus planos eram outros. Disse ao portuga que vendesse o bar e fosse passear em Portugal, rever suas origens, descansar. Alberto garantiu que iria ficar bem e que as coisas iriam se ajeitar. O Portuga se calou, estava fulo da vida, sentiu como se fosse uma ingratidão de Alberto. Por outro lado, teve a certeza que não havia errado ao amparar o jovem, e mais, ele mesmo sabia que a vida de Alberto seria outra. Ele havia nascido para ser livre, do mundo, das ruas, das calçadas do universo, da musica. Passaram-se três meses e o portuga chamou-o novamente para conversar. Mas desta vez foi diferente. Joaquim saiu com ele, pegou um táxi e foi em direção à Lapa. Alberto não estava entendendo nada.

O carro parou em frente a um prédio antigo, pagou a corrida e convidou o jovem para entrar junto com ele. Assim foi feito. Ingressaram no velho elevador que mantinha o cheiro de urina de gato bastante forte. Era lento, mas chegaram ao décimo segundo andar. Corredor escuro, paredes pintadas à tinta óleo, portas antigas. Assim Joaquim abriu uma delas e entrou junto a Alberto. O jovem ficou maravilhado. Um apartamento pequeno, quarto, sala, cozinha, banheiro, e uma varanda que dava vista para o mar e o pão de açúcar. Já estava mobiliado, tudo antigo, menos o aparelho de som e a televisão.

Alberto achou lindo, pensou como seria bom morar ali, porém, manteve-se calado. Para não dizer que ficou calado, elogiou a beleza e a arrumação do apartamento do portuga. E mais, ele achou estranho um violão novo sobre a cama de casal no quarto.

Joaquim disse-lhe que o apartamento não era sua moradia. Disse a Alberto que era um presente que estava lhe dando para que pelo resto e por toda sua vida ele não tenha que voltar a dormir na rua.

Disse-lhe também que: os três mil reais ainda tinham troco e estava depositado em uma poupança e entregou-lhe um cartão com a senha. Disse que daquele dia em diante, queria ver Alberto ir atrás dos seus sonhos. Afirmou que estaria no mesmo lugar de sempre e que fazia questão de ser visitado todos os dia e mais, que nunca deixasse de tocar seu Blues enfrente a igrejinha da Uruguaiana. Entre abraços e lagrimam, agradecimentos. Portuga abriu uma garrafa de bagaceira e os dois brindaram o futuro.

Seis meses depois o velho portuga partiu para sempre. Morreu dentro do bar, trabalhando. Foi o pior dia da vida de Alberto. Ele quase enlouqueceu. Passou dias e dias tocando Blues no tal banco da igreja. Não comia, não falava com ninguém. Só cantava.

Passado cinco dias, Alberto se auto intitulou; “Alberto Blues”. Anunciou a todos que o assistia e ouviam, depois foi caminhando até seu apartamento e de lá só saiu quinze dias depois.

As marcas da dor eram flagrantes, abatido, magro, olhos fundos. Mesmo assim foi até a porta do bar, este continuava fechado, como se até ele houvesse morrido de tanta dor e ausência. Parecia sentir falta daqueles palavrões e sacanagens do portuga tão amado por aquele menino.

Já com 25 anos, Alberto continuava a compor a cantar seu Blues. As noites na Lapa, mulheres, bagaceira e cerveja. Gravou alguns CDs independentes. A vida estava levando-o à vida. Vivia feliz, mas, nunca como antes. Alberto estava envelhecido, maduro em demasia. Portuga deixou tudo que tinha para Alberto. Mas, nem assim ele deixou de ser um “Blues Man” na essência do tremo. Trocava o dia pela noite. Sua voz a cada dia tornava-se mais modelada ao estilo musical. Porém o sucesso não surgia. Só na igrejinha ganhava por tarde R$ 400,00, 500,00 reais todos os dias. Quando seus CDs eram apresentados, eram vendidos rapidamente.

No dia que completaria 27 anos, Alberto brigou com um camarada que queria agarrar sua dama da noite e levou três tiros. Ficou entre a vida e a morte por 12 dias. Belmira ficou velando-o o tempo todo. Mas, como todo bom Bluseiro sobreviveu. Mais um mês e Alberto eslava de volta, e com isso resolveu reabrir o bar após uma boa reforma. Com isso mudou o nome para “O portuga e o Blues”. Lógico que a casa voltou a sorrir e com ela Alberto. A casa era simples, lembrava um pouco os noturnos do Mississipi. A noite era triunfal, muito movimento, mulheres, músicos, artistas, Alberto fez muitos amigos, mas um em especial o “MOTINHA”, este tornou-se praticamente um irmão para Alberto. Mas, lembrou-se dos tempos de rua na infância e estava sempre atento ao amigo. Na verdade, Alberto não confiava em ninguém. Principalmente nas mulheres. Amava todas como única, mas nada além de uma boa noite de prazer e ponto final. Os anos foram passando, Alberto foi envelhecendo, e o sucesso nada. Um belo dia motinha convidou Alberto para viajar com ele para conhecer a terra do Blues: O Mississipi. Alberto se viu fascinado com o convite e a possibilidade de ver a história de perto, viver a história e quem sabe, escrever a própria como protagonista. Assim viajaram e conheceram o mundo do Blues, rodaram como hippies por tadas as cidades e capitais do mundo da musica. Mas, foi na Espanha que gravou seu primeiro e único cd de sucesso estrondoso. Viveu intensamente todos os dias da sua vida. Foi preso diversas vezes em vários países do mundo, sempre por causa de mulher, bagaceira e blues. Nunca foi a frente de um juiz de direito. Alberto era ensaboado, inteligente e convincente. Sem falar quando cantava tocando seu violão.

De volta ao Brasil, já aos 65 anos, estava cansado, dedicava-se ao Portuga e o Blues. Com o passar do tempo sua saúde foi ficando precaríssima. Mas, todo dia estava lá, no banco da igrejinha com seu violão e seu chapéu no chão. Antes de morrer Alberto dividia o tocar e cantar com as história de sua vida. Quem sabe um dia eu consiga escrever um livro? Sempre dizia isto ao final de suas apresentações. Mas, não foi premiado em vida. Mas, com certeza viveu tudo que quis e mais gostou. O Blues.

O Bruxo

Bruxo das Letras
Enviado por Bruxo das Letras em 17/04/2011
Código do texto: T2914449
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