O JOGADOR

O JOGADOR

O Jogador olhou a carta que caiu na mesa. Esperou o adversário fazer o movimento de pegá-la e, mais do que depressa, exclamou: “Bati”. Os demais jogadores jogaram suas cartas sobre o monte de cartas no centro da mesa de feltro, depois de conferirem o jogo do vencedor e disseram: ”Que sorte! Dois coringas”.

Por que alguns têm tanta sorte no jogo e outros não? “É preciso chamar o coringa. Se não chamar ele não vem”, dizia o Jogador.

E assim o Jogador com sorte seguia vencendo todos os adversários, ganhando um bom dinheiro a cada noite, mais do que um trabalhador ganharia num mês inteiro trabalhando duro, pegando no pesado. Ele, o Jogador, ganhava mais e ainda se divertia.

Talvez a sensação de supremacia sobre os rivais justifica a permanência dos jogos na história humana desde há muito tempo.

“Sorte no jogo, azar no amor” diz o ditado popular.

Mas, até onde se sabe, o tal Jogador também era feliz no amor. Vencia sempre no jogo e era bem casado. A mulher nem chegava a reclamar das suas noites de jogo, já que a carreira médica a submetia a infinitos plantões noturnos.

Até que um dia começou uma série de derrotas. Nada dava certo. Chamava o coringa e ele não vinha. Chamava a carta do bate e ela não vinha. Esta ficava retida no jogo de outro jogador. Às vezes nem chegava a armar o jogo e um adversário batia. Começou a perder mais do que um perdedor normal costumava perder. Não se abateu. Voltou no dia seguinte. Perdeu de novo. Desta vez não tinha dinheiro suficiente para pagar. Ficou devendo. Tinha crédito. Faltou no outro dia. Achou que devia dar um tempo. Voltou uma semana depois. De início não pagou o que devia. Achava que ganharia no jogo e pagaria com o próprio jogo. Sua estratégia não deu certo. Perdeu mais ainda. Para não ficar mal com a turma, pagou uma parte do que devia. Não queria dar cheque. A mulher descobriria já que a conta era conjunta e ela administrava o caixa da casa.

Voltou no dia seguinte e se abateu de vez. Perdeu novamente uma quantia grande. Foi embora abatido. Passou o dia seguinte triste. Começou a filosofar, a pensar na vida. Pensava que era feliz, mas, na verdade as coisas não iam assim tão bem, vistas agora de outro ângulo. Aquele trabalho da mulher deixava-o solitário, o que o levava ao jogo com os amigos. Era pequeno empresário. Antes, ganhava e perdia negócios como qualquer outro empresário. Agora, se perdia, era por causa da falta de sorte e não da ordem natural do jogo empresarial. Os filhos, já adolescentes, não eram mais tão agarrados a ele como antes.

Demitiu um funcionário da empresa porque achou que ele era negativo demais. Andar com gente negativa dava azar, dizia. Livrou-se do “Urubú” – era assim que passou a classificar o antigo empregado. Mas, o tal empregado tinha seu valor. Ele fazia as coisas direito e era benquisto por alguns clientes importantes, que não hesitaram em mudar de fornecedor quando o “Urubú” abriu seu próprio negócio. E não é que o “Urubú” prosperou?

Os negócios do Jogador declinaram. Com o fim da sorte e do dinheiro, começaram as brigas em casa. Não tardou para que o Jogador perdesse a mulher e os filhos em separação litigiosa. Desta vez o Jogador baqueou de vez. Mais perdido do que cachorro em dia de mudanças, o Jogador resolveu arriscar alto. Passou a jogar com outra turma. “Outras caras, outra dinâmica de jogo”, pensou ele. Mas sua dinâmica de jogo ainda era perdedora e por isso continuou perdendo.

Lembrava-se dos dias de glória. Sempre ganhava no jogo, mesmo que fossem míseros trocados. O importante era não perder, dizia. Lembrou-se de dias passados que houve noite em que estava perdendo bastante. “Mas”, dizia, “às onze horas o jogo vai mudar”. E, como num passe de mágica, seu jogo mudava, para melhor. Não só recuperava o dinheiro que tinha perdido como ainda saía com uns trocos no bolso. Essas eram as noites ruins. As demais eram lucrativas. Como estava acostumado a ganhar sempre, era ele quem pagava a rodada de pizza e cerveja que a turma consumia no restaurante da esquina depois do jogo. Era notório que esbanjava alegria e dinheiro. Mas agora aqueles eram outros tempos. Ainda em devaneio, não percebeu quando o meliante se aproximou da janela do carro, quando parou no sinal. Só percebeu quando a arma estava apontada para a sua cabeça. Fez menção de sair do carro. O meliante ordenou que abrisse a porta do passageiro. Ele abriu e o meliante sentou-se ao seu lado com olhar ameaçador.

O Jogador temeu pela vida. Tentou negociar. Ofereceu o carro e os poucos trocados que tinha na carteira. O meliante recusou. “Toca pro Embú pela BR”. O Jogador obedeceu. No trajeto tentou entabular conversa. Ouviu um "cala a boca" e se calou. Turbilhões de pensamentos lhe afloraram à cabeça naquele momento. O que iria ser dos filhos se o meliante o matasse? Não queria nem pensar no desfecho. Dirigiu tenso até os limites da cidade onde pegou a rodovia. No trajeto fez algumas barbeiragens por causa da tensão. Foi cutucado com o cano do revolver: “Tá me tirando?” disse o meliante, “quer chamar a atenção da polícia? Dirige direito ou vai cair aqui mesmo”. O pânico se instalou. Não sabia mais o que fazer. Começou a rezar baixinho. “Cala a boca, ô Mané, essa reza tá me incomodando” falou o meliante agitando a arma. O Jogador se calou, mas continuou suando frio e fazendo mentalmente promessas aos seus santos protetores. Chegaram ao desvio da estrada que o meliante indicou. Avançaram mais uma centena de metros quando o momento que temia aconteceu. “Pára o carro” ordenou o meliante. Ele parou no meio da rua de terra, esburacada. “Agora desce que a gente vai ter uma conversinha”.

Desceram do carro. O meliante ordenou que seguisse por um atalho. Os dois homens caminharam uma eternidade até que chegaram numa pequena casa mal iluminada. Um homem saiu da casa e gritou com o meliante. “Tá atrasado” disse o homem. O meliante disse que tinha cumprido o estabelecido. Estava ali com o carro encomendado. “Por que trouxe esse Mané?” Perguntou o homem. O meliante disse que não sabia o que fazer com o Jogador. “Devia ter apagado o cara no caminho” respondeu o homem.

O Jogador sentiu as pernas fraquejarem. Sentiu o fim próximo. Seguiu os dois homens e entrou na casa, assustado. Outros homens estavam sentados em volta de uma mesa jogando cartas. Mandaram que se sentasse em uma cadeira próxima e calasse o bico e nem pensasse em fugir. A partida estava no início. Viu o homem que mandava arrebatar todas as fichas dos adversários e ganhar a partida.

“Agora vamos tratar do seu caso” disse o homem. O Jogador sentiu um frio na espinha. Tentou ser amigável e simpático. Elogiou a jogada feita pelo homem: “você teve sangue frio – disse o Jogador – estava batido com as nove, mas esperou cair a carta certa e bateu com as dez”. O homem se interessou pelo jogador.

“Sabe jogar este troço?” perguntou o homem. O Jogador assentiu. “Então, senta aí e vamos ver se você é bom”. Jogariam uma partida simples, sem valer nada. O Jogador ganhou. Recebeu uma boa mão e bateu no segundo descarte do homem.

“Dê cartas”, ordenou o homem e iniciaram nova partida. O Jogador bateu de novo. Inconformado, o homem fez uma proposta. Se ganhasse outra vez, ganharia a vida de volta já que estava condenado a morrer desde que chegou ali. Mas, já que a aposta era alta, o Jogador só poderia bater com dez cartas.

O Jogador sentiu-se tenso novamente. Mas, pensou, minha sorte finalmente voltou. Embaralhou e ofereceu o baralho para o homem cortar e virar a carta que definiria o coringa. O homem virou um oito de ouros. O coringa era, portanto, o nove de ouros, a carta acima da carta da vira. Distribuiu as nove cartas para cada um, de três em três. Filou uma a uma as cartas que recebeu. Suou frio. Sentiu que estava morto. Na mão não tinha nenhum coringa. Veio com três dublês, três cartas dobradas. Dois duques de paus, dois setes de ouros e dois reis de espadas. Todos os pares estavam repetidos em sua mão. Tinha três outras cartas bêbadas. Com cartas repetidas seria difícil armar o bate. Esperou o homem comprar e descartar. Recolheu a primeira carta descartada. O sete de copas descartado pelo homem juntou aos dois setes de ouros que tinha nas mãos. Descartou uma das cartas bêbadas. O homem comprou do monte e descartou um rei de ouros. Recolheu o rei juntando aos reis dobrados e descartou outra carta bêbada. O homem recolheu o dez de copas que o Jogador dispensou e descartou uma carta que não significava nada para o jogo do Jogador. O Jogador buscou uma carta no monte. Filou e achou um coringa. Seu rosto se iluminou. Jogou a outra carta bêbada. O homem foi ao monte e descartou uma carta: um duque de ouros que o Jogador recolheu e juntou aos duques de paus dobrados. O Jogador dispensou um dos reis de espadas dobrados. O homem não quis. Comprou do monte e descartou outro sete de copas. O Jogador comprou nova carta no monte e achou um seis de ouros. Dispensou um sete de ouros que estava dobrado na mão. O homem foi ao monte e comprou um rei, mas pôs a carta no jogo. Dispensou uma carta que não servia ao Jogador. O Jogador foi ao monte e comprou outra carta. Filou e viu que tinha comprado o segundo coringa. Arrumou as cartas na mão juntando o par de duques de paus, o duque de ouros e o coringa, na esquerda da seqüência. Os dois setes, ouros e copas, mais o seis de ouros e o coringa no meio. No lado direito da seqüência pôs os dois reis que tinha. Estava batido, mas, com as nove.

Precisava bater com as dez. Dependia de mais uma carta. Tinha trinca de duques com coringa, dois setes e seis com coringa e um par de reis. Se caísse uma das três cartas, duque, sete ou rei, que não repetissem em sua mão, bateria com as dez. Serviriam o cinco de ouros e o oito de ouros. Refletiu sobre a carta que iria descartar. Pensou em se defender e descartar um dos duques de paus pois lembrou-se que o homem havia jogado um duque de ouros. Mas aí sairia das dez. Decidiu descartar o sete de copas que havia levantado da mesa e que o homem havia descartado duas vezes. Não descartaria o seis de ouros. Era carta nova. Preferiu ficar na sequência seis de ouros, sete de ouros e coringa. Descartou confiante. O homem olhou firme nos olhos do Jogador e perguntou: “Jogou o sete de copas?” O Jogador olhou nos olhos do desafiante. Eles brilhavam de satisfação. O Jogador retesou os músculos, recostou-se na cadeira afastando-se da mesa, assustado, respondendo desconfiado e hesitante. "É, o sete de copas...". “Então bati com as dez”, respondeu o homem. "Joguei a carta fora no descarte anterior e depois precisava dela de volta. Ela voltou".

O pânico era visível nos olhos do Jogador. Perdera com dois coringas uma partida que julgava ganha. “A casa caiu” disse o homem levantando-se. “Vamos lá pra fora”, ordenou. O Jogador tentou ganhar tempo. Mostrou suas cartas, disse que estava armado para bater o jogo. Queria uma nova chance. O homem olhou o jogo do jogador e exclamou: “Dois coringas? Que sorte!“. Os outros homens zombaram do Jogador: “que jogadorzinho é esse que perde com dois coringas? Merece mesmo morrer”. Falavam enquanto o empurravam para o quintal de terra diante da casa.

Lá fora, olhando a mata escura, o Jogador suplicou pela vida. Disse que tinha mulher e filhos pequenos, mas não adiantou. O homem estava decidido a matá-lo. O Jogador conhecia seu esconderijo. Poderia denunciá-lo. O Jogador resolveu arriscar uma última cartada. Disse que também era jogador e que estava atravessando uma maré de azar. Que não ganhava nem com dois coringas. Que tinha perdido mulher, filhos e a firma que tinha por causa do azar. O homem pensou um pouco. Ele também tinha tido seus maus momentos e sabia como era perder com mão boa. Jogador conhece jogador e sabe que o baralho é traiçoeiro. Por isso tem duas caras. Tem dias que nada dá certo.

Decidiu dar uma colher de chá para o Jogador. Fez a seguinte proposta: “o coringa do jogo era nove de ouros, certo?" Então iria contar até nove antes de atirar. Neste intervalo de tempo o Jogador deveria correr pela mata. Era sua chance. Ao final da contagem deveria parar e se virar. O homem daria três tiros. Se errasse os três tiros ele, o Jogador, estaria a salvo e deveria se embrenhar na mata e sumir de vez. Palavra de jogador. Se acertasse, ele cairia. Se ao invés de parar de correr no fim da contagem, o Jogador não cumprisse o trato e continuasse a correr, iniciariam a caçada. Toda a quadrilha iria atrás dele e todos atirariam quando o pegassem. O Jogador concordou. O homem engatilhou a arma e disse bem alto: “Um”. O Jogador embrenhou-se na mata apavorado, correndo com todas as forças que possuía. “Dois”, ouviu bem alto, como se estivesse a um passo da voz. Seguiu correndo tropeçando nos arbustos, machucando-se com os espinhos. “Três”. Levantou-se e correu meio abaixado, com as duas mãos na cabeça como se pudesse protegê-la. “Quatro”. Desviou-se de um galho e começou a correr em ziguezague. “Cinco” ouviu a voz que parecia-lhe ainda mais próxima. “Seis”. “Sete”. A contagem era lenta, mas parecia rápida demais. Não iria conseguir. “Oito” ouviu bem claro. Correu mais um pouco e a contagem chegou a nove. “Parado aí”, ordenou o homem. O Jogador parou. As lágrimas escorriam pela face. Não sabia o que fazer, se corria ou se obedecia. Era o fim. “Vire-se”. O Jogador virou-se, lentamente, levantando as duas mãos para cima em sinal de rendição. Ouviu dois tiros. Um passou rente à cabeça. O outro atingiu seu peito. Caiu de costas entorpecido pelo impacto.

O dia começou a clarear quando o Jogador abriu os olhos. Apalpou o peito e viu que não tinha sangue e nem sentia dores. Enfiou a mão no bolso da camisa, sob o paletó. Dele tirou um baralho que carregava consigo. O projétil tinha se alojado no meio do baralho. Quase a metade das cartas estava perfurada. A primeira carta do maço, ainda não perfurada, era um nove de ouros. Um reluzente nove de ouros impediu a progressão da bala fatal. Nove de ouros, o coringa da partida que jogara.

Rastejou em silêncio até a casa. Os homens dormiam sono pesado. Arrastando-se furtivamente foi até o carro. As chaves não estavam no contato, mas lembrou-se da chave reserva sob o pára lamas do veículo, presa com goma de mascar. Apanhou a chave. Controlando o nervosismo colocou-a no contato, virou-a rezando para o motor não falhar, ligou o carro e imediatamente saiu acelerando pela rua esburacada. Ainda ouviu uns tiros que vinham em sua direção, mas já estava distante. Um dos tiros acertara de raspão a lateral do carro. Acelerou o veículo em direção à esquina e entrou à direita, pondo-se a salvo dos projéteis. Ganhou a estrada e foi parado pela polícia por excesso de velocidade. Pela primeira vez na vida ficou feliz por ser multado. Tentou contar a história ao policial, mas refletiu que poderia ser chamado para testemunhar caso a polícia prendesse os meliantes, que, como sempre, logo estariam livres nas ruas. Era melhor ficar calado. Ganhou sete pontos na carteira além da multa.

Contou a história para os companheiros de jogo na noite daquele mesmo dia, depois de passar o dia todo tentando se recuperar do susto. Exibiu o baralho perfurado pelo projétil. Os amigos desconfiaram. Achavam que era uma forma de prorrogar a dívida. Mas o que ouviu dos amigos foi uma frase que pronunciava sempre que ele, o Jogador, batia o jogo, quando simulava estar com a mão ruim e batia de surpresa: “Vocês ainda acreditam em jogador?”.

26.04.11

Paulo Sergio Medeiros Carneiro
Enviado por Paulo Sergio Medeiros Carneiro em 26/04/2011
Reeditado em 28/04/2011
Código do texto: T2932123
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