Conhece-te a ti mesmo

Luis Paulo era um alto executivo de um banco transnacional. Era o que poderíamos chamar de “pessoa bem sucedida”: jovem, bonito, uma boa grana, um emprego que lhe oferecia a possibilidade de ascensão, viagens ao exterior, carro do ano, belas mulheres, etc. Sua rotina era cheia de compromissos: começava o dia com exercícios físicos, depois o café da manhã e as reuniões da alta cúpula do banco, isso quando não estava viajando, em visitas de trabalho nas inúmeras agências do banco no Brasil e no exterior. Nos finais de semana, quando estava em casa, gostava de se reunir com os amigos, ir à praia, namorar bastante, ir à baladas. Diversão, em suma. Muita diversão.

Mas um dia algo muito estranho aconteceu. Depois da enésima reunião do dia, já por volta das 18 horas, quando saía do banco, apressado para encontrar os amigos em um “happy hour” em um dos badalados bares da cidade, no momento em que seu carro deixava a área de estacionamento da agência onde passou o dia, quase atropela um mendigo. Na verdade chegou a se chocar com o mendigo, lentamente é verdade, pois mal tinha acabado de ligar o carro, mas a pancada derrubou o tal mendigo, que caiu inerte. Desesperado Luis Paulo saiu do carro e foi em direção ao mendigo, que jazia de olhos abertos e respiração ofegante. Tudo foi muito rápido. Saiu do carro, correu em direção ao mendigo, não viu o que se passava a seu lado, se havia pessoas ao seu redor, se havia muitos carros na via. Chegou perto do mendigo, deitado em uma poça de sangue que se formava sob sua cabeça, respirando de modo ofegante e repetindo de modo quase inaudível palavras a princípio incompreensivas. Ele abaixou-se e aproximou seu ouvido da boca do mendigo, tentando entender o que ele dizia: “Conhece-te a ti mesmo!”, era o que murmurava. Afastou a cabeça assustado, levantou-se, olhou para um lado e o outro, procurando alguém para ajuda-lo, tateou no bolso em busca de seu telefone celular, para ligar para o socorro médico, desviando o olhar do corpo caído no chão. Quando voltou a vista para onde estava o mendigo, um novo susto: não havia ninguém ali, não havia mancha de sangue, o pequeno amassado que havia ficado na lataria de seu carro, sumiu também. Percebeu então que ninguém havia se aproximado para ajuda-lo, não havia se formado nenhuma roda de curiosos em volta do local do atropelamento; na verdade, tudo estava calmo, as pessoas circulando na calçada normalmente, os carros trafegando tranqüilamente, nenhuma alteração no trânsito. Nada. Foi como se nada tivesse acontecido.

Entrou no carro de novo e seguiu ao encontro dos amigos. Mas a cena não saía de sua cabeça, as palavras do mendigo ecoavam em seus ouvidos: “Conhece-te a ti mesmo!”. Chegou no bar para o descontraído encontro de fim de expediente, mas esteve ausente o tempo inteiro. Não riu das piadas dos amigos, não viu as mulheres das mesas ao lado, que insistentemente procuravam seus olhos. Nada disse, manteve-se em silêncio, e diante das insistentes perguntas de seus amigos sobre o que tinha acontecido, levantou-se abruptamente e retirou-se, sem se despedir de ninguém, entrando no seu carro, e voltando para casa.

A partir daquele dia tudo mudou em sua vida. Na verdade, no seu modo de viver a vida. A princípio era a cena do atropelamento que insistia em lhe atormentar a cabeça. Ele não sabia se aquilo de fato tinha acontecido, ou foi fruto de algum delírio. Mas Luis Paulo tinha certeza que não era louco, nunca nada parecido tinha acontecido em sua vida. Depois foram as palavras do mendigo que se repetiam à profusão em sua mente. “Conhece-te a ti mesmo!”.

“Mas eu me conheço”, dizia ele de si para si. “Sou Luis Paulo, tenho 28 anos, sou formado em administração de empresas, com MBA em gestão de pessoas, moro em ...” De repente, o silêncio... e uma outra pergunta: “Mas é só isso?”

“Quem sou eu? Quem está depois disso tudo? Quem sou eu sem minhas certezas?”.

Tais questões passaram atormentar seus pensamentos ininterruptamente, tomando toda sua vida, tornando-o pouco zeloso com seus compromissos no trabalho. Passou a faltar reuniões, a não mais fazer a barba, passava dias sem tomar banho. Deixou então de sair de casa, não mais atendia seus telefones. De repente viu-se prostrado na cama, sem força alguma para levantar-se, envolvido no imperativo, que quanto mais lhe ordenava, mais confuso lhe deixava: “Conhece-te a ti mesmo! Conhece-te a ti mesmo!”.

Os dias foram passando, todos no trabalho, seus amigos, suas namoradas, sua família, todos enfim que lhe conheciam, ficaram muito preocupados com sua ausência de tudo. Depois de muito lhe telefonarem, de irem ao prédio onde morava, e tocarem a campainha insistentemente de seu apartamento, depois disso tudo, foram surpreendidos com o telefonema de um vizinho à polícia, reclamando de odores putrefatos que vinham daquele apartamento. Comunicada, sua família permitiu que os policiais arrombassem o apartamento.

Ao entrarem no apartamento, os policias encontraram o corpo de Luis Paulo deitado na cama de seu quarto. Não havia sinais de violência no apartamento, apenas poeira nos móveis e alguns poucos talhares usado e um copo sujo na pia da cozinha. Ao lado do cadáver, já em estado avançado de putrefação, uma carta que dizia:

“Aos que por ventura encontrarem aquilo que um dia fui eu,

Um dia eu fui Luis Paulo, ou pelo menos pensei ter sido. Pensei ter sido tantas coisas: Homem, católico, belo, sagaz, alegre, menino, amante de viagens, vinhos e mulheres. Pensei que sabia o que eu era, tinha tantas certezas antigamente. Mas um dia aconteceu algo comigo, quer dizer, nem sei se aconteceu, mas se não aconteceu, foi esse não acontecimento que me despertou para a verdade. Ou ausência da verdade. Alguém que matei, ou não, alertou-me de um imperativo que de fato eu negligenciava deveras: “Conhece-te a ti mesmo!”, ordenou-me um cadáver maltrapilho, que me apareceu em sonhos, ou no momento de minha morte. Depois que o matei (ou teria sido eu morto naquele dia?), suas palavras ecoaram para sempre dentro de mim. Busquei a mim mesmo aqui dentro do que um dia pensei ter sido eu. Este corpo que vêem agora não significa nada, nunca me conteve, nunca me representou. Ao olhar-me para mim mesmo, deparei-me com um boneco oco de conteúdos. Este nome que me nomearam nunca foi meu. Eu não fui Luis Paulo, Jorge, Marcio, Maria Rita, Vespaciana, ou quem quer que seja. Não fui humano, macho, fêmea, obra de um sopro divino, ou do acaso, de um jogo de dados de deuses vadios, que sem ter o que fazer, resolveram brincar de criadores.

“Conhece-te a ti mesmo!” Disse um velho sábio para mim, no momento de sua morte. Naquele dia, como diria o Gênesis, fez-se a luz, para mim. “Fiat Lux!”. Abri os olhos, amigo sábio, e nada vi ao redor e dentro de mim. Calei-me agora, deitei-me aqui apenas, porque a luz me guia. Aos cegos que me lêem agora, apenas peço, dêem às costas para este cadáver. Aqui brilha minha luz, só a minha. Partam agora para suas casas, busquem espelhos ou riachos que reflitam suas faces. Vão em busca de suas luzes, brilhem também.

Eu estou em paz. Quanto a ti, a tu que lês esta carta, um lembrete apenas:

Conhece-te a ti mesmo!"

Marcio de Souza
Enviado por Marcio de Souza em 26/04/2011
Reeditado em 12/05/2011
Código do texto: T2932350
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